30.11.05

glossário: POLAROID ou o perfume de um formato

Com um só clic tirar uma fotografia e ter o positivo– eis o conceito polaroid.

Edwin Herbert Land , fundador da Polaroid Corporation e que em 1929 registara a patente da polaroid, um tipo de folha em plástico sintético utilizado para polarizar a luz, anuncia em 1947 à Optical Society of America a invenção do processo completo de obtenção numa só etapa de uma fotografia em 60 segundos. O termo “polaroid” passa a ser sinónimo de fotografia instantânea, servindo para designar quer a película quer a câmara necessárias ao processo, e que podemos enunciar como película fotográfica concebida para ser usada numa câmara instantânea.

Basicamente, o processo explica-se assim: cada “fotografia”, cada unidade-fragmento de filme (e em regra um cartuxo tem entre 8-10 exposições) contém os químicos necessários para a revelação e, após a captura da imagem, a câmara imediata e automaticamente (em muitos modelos, movida por uma bateria eléctrica incorporada no cartuxo) inicia o processo de revelação ao mesmo tempo que impulsiona o filme para fora. Numa ordem determinada e com tempos de reacção diferentes, os químicos actuam na superfície do filme e a imagem positiva aparece momentos depois.

Decisivo para o desenvolvimento do potencial criativo e tecnológico que nas décadas seguintes este novo (sub) medium fotográfico veio a conhecer foi o encontro entre Land e Ansel Adams, que a partir de 1948 se torna o primeiro de um sem número de consultores artísticos e cuja tarefa consistia em testar as câmaras e as películas no decurso da sua actividade como fotógrafo, em todo o tipo de ambientes e condições de luz. Para Land a criação de uma bela fotografia podia testar os limites da película de uma forma completamente diferente da matriz teórica, do paradigma matemático concebido pelos engenheiros da empresa.

As Polaroid Collections (constituídas por 23 000 fotografias, de 2000 diferentes autores, resultado de colaboração contratual ou posterior aquisição) são testemunho do instrumento para a imaginação e das virtudes expressivas dum material que, surgindo por processos simples e tendo a instantaneidade como traço fundador, se manifesta imprevisível e imperfeitamente, nomeadamente a nível da cor e do foco. E ainda material versátil, quer pela existência de, v.g, vários modelos, tamanhos, sensibilidades, cromatismos, quer pelo sua natureza aberta, de que são prova as experimentações e manipulações de que resultaram técnicas e efeitos mais ou menos populares (v.g, solarização, transferência). Por outro lado, na era da reprodução técnica a polaroid apresenta-se como objecto único, não apenas pelo facto de em muitos dos seus filmes, e simplificando, o positivo e o negativo, a película e o papel, coexistirem inseparavelmente, como porque a seu comportamento caprichoso, nomeadamente a nível da cor, assim o determina inexoravelmente. Mas a polaroid é também um objecto sensorial: uma polaroid ouve-se, uma polaroid tem cheiro, uma polaroid revela-se literalmente diante dos nossos olhos. Depois, a polaroid tem a marca da “verdade”: a realidade vê-se no instante, o espaço e o tempo marginados a branco nas nossas mãos.
Ao longo dos seus quase 50 anos a polaroid não parou de seduziu fotógrafos e outros artistas: para além do próprio A.Adams, recordemos a título de exemplo, Robert Mapplethorpe, Robert Frank, David Hockney, Helmut Newton, Robert Rauschenberg, Andy Warhol, sobretudo no seu período dourado, as décadas de 60 e 70, marcado no âmbito da tecnologia polaroid pelo lançamento da máquina SX-70 e pelo filme Time Zero, e tendo como paisagem artística movimentos, entre outros, como a pop art ou o happening & perfomance. Se podemos afirmar que a qualidade dos produtos e a constante pesquisa da empresa, a política de programas de apoio, contratos e aquisições, as potencialidades expressivas e disponibilidade experimentalista do meio, a aura de objecto único e por domesticar, atraíram muitos artistas, podemos também afirmar que esse fluxo de adesão caucionou a marca e o conceito, e é também ele constitutivo da aura de que a polaroid ainda goza.

E todavia, o símbolo de modernidade que ostentou na sua idade de ouro fere-a agora de morte anunciada. A era digital tornou-se avassaladora também na fotografia e a polaroid, como fotografia instantânea, resistirá, para além das respostas de mercado como a câmara Image 1200, se encontrar artistas capazes de a fazer viver com produtos capazes de os fazer viver.

Até hoje foram vendidas 150 milhões de câmaras instantâneas polaroid. Nenhuma à minha gata Mia. Passo a contar. A Taschen editou recentemente um belo livro – The Polaroid Book – que vem embalado e hermeticamente fechado como um cartuxo de filme polaroid, numa cobertura de papel plastificado/metalizado. Comprei o livro e, deserta por chegar a casa, apanhei o metro a correr, subi a rua cheia de emigrantes brasileiros e carros mal estacionados, meti a chave na porta e eis-me perante o momento mais delicado do dia: abrir a tal embalagem metalizada, pela qual tinha dado 30 euros, quer dizer um pouco menos do que um modelo popular de câmara polaroid, quer dizer mais ou menos dois cartuchos de filme. Tomei uma decisão. Resolvi abri-la como uma polaroid: à mão, rasgando-a, preparada para mordê-la se preciso fosse. O ruído despertou uma inusitada agitação motora, acompanhada de vibrante mas monótona agitação sonora, por parte da minha gata Mia. Clic. O ruído da embalagem polaroid sugeria a abertura das embalagens de biscoitos, dos seus amados iams cat food rico em galinha. Então pensei: qual digital, qual carapuça, a polaroid nunca deixará de produzir momentos.

introdução à teoria do campo





Imaginemos que o TPC era assim.

23.11.05

última hora

Vejo o público última hora: a Isabel de Castro morreu. Não sei o que dizer.
Volto ao público última hora: a Isabel de Castro morreu.
Só me apetece chorar. É para isso que as lágrimas servem.

10.6.05

dia de Portugal

Hoje é o dia de Portugal e eu piquei-me numa micaia. Mas não faz mal. Apanhei o catimbeiro e fui comprar uma capulana. Parei no Continental e pedi uma 2zm. Recebi o troco em meticais e subi a Avenida. No Centre Franco Mozambicain liguei-me à net et voilá! Hoje é o dia de Portugal.

13.5.05

hoje

Hoje é sexta-feira, treze. Hoje é o dia dos meus anos. Hoje parto para Moçambique, hoje não olharei para trás.

moulinex

Nessa manhã fizera contas à vida.
Uma insónia despertara-a com a cor da madrugada. Pisou o soalho com cuidado e fumou um cigarro à janela, virada para as traseiras adormecidas, naquela parte oriental da cidade.
Por um momento hesitou, mas o cheiro do cigarro acabado de fumar fizera-a tomar uma decisão: não iria voltar para a cama.
Fez café na velha moulinex que a mãe lhe oferecera uma vez pelo Natal. Vivia então em Benfica, num rés-do-chão de paredes cor-de-mel. O aroma do café invadiu a casa. O dia tinha começado.

12.5.05

o leste, o oeste e o brasil

Avistei-os mal saí do metro. Para dizer a verdade, primeiro avistei a caixa. Depois sim, vi-os. Um dum lado e outro doutro transportavam a televisão numa caixa em papel canelado que tinha impressa a azul a marca japonesa e um desenho omnipresente.
Os dois homem caminhavam em passo largo, falavam, pareciam contentes. O da esquerda era mais baixo, tinha o cabelo claro. Ambos usavam calças de gangas e camisas de verão. Não tinham parado de falar desde que os vi. E tudo levava a crer que já vinham a falar antes.
Imaginei-os emigrantes. Sim emigrantes, mas emigrantes donde? De leste. De leste ou do Brasil: ao aproximar-me vi que o loiro do cabelo não eram uniforme, apresentava uma espécie de nuances feitas com escassos meios e menor técnica, pensei.
Como eu não transportava nenhuma televisão, naturalmente aproximei-me um pouco mais. Mas não conseguia perceber o que diziam. Eram 4 e meia e a rua é das mais movimentadas da cidade.
Imaginei-os em frente à televisão, a amarrotar, uma após outra, as latas de cerveja compradas no lidl. Em chinelos e calções amarelos se fossem brasileiros, ainda com os blusões vestidos se fossem de leste. Nisto pararam, pousaram na calçada a caixa da televisão de 22 polegadas e trocaram de posição: o que estava na esquerda foi para a direita e o que estava na direita não teve outro remédio senão ir para a esquerda. Este interlúdio foi suficiente para que eu os ultrapassar. Ouvi-os falar: leste.

11.5.05

metacognição

Para fazer um intervalo, peguei num livro sobre Física, que ali estava desde manhã, exposto nas novidades da biblioteca, mesmo à minha frente. Pensei que tivesse bonecos. Se tivesse bonecos já me distraía um bocadinho, não é? Foi só esticar o braço. Pois bem, em vez de bonecos, e entenda-se por bonecos os desenhos, as fotografias, os esquemas, as gravuras, as fórmulas, enfim, tudo o que estiver impresso sem precisar de ser lido, em vez de bonecos encontrei diálogos. Diálogos num livro de Física? Havia é claro o grande inconveniente de ter que os ler. Mas não se pode ter tudo. Foi um belo intervalo.

E. - Ouçam lá! A gente quando está a pensar nesse plano tem consciência de que está a pensar ?
....
E. - Ou é assim uma coisa que ocorre automaticamente sem a gente se aperceber ?
N. - Às vezes, quando uma situação é nova, um gajo tem de estar a pensar muito mais.
E. - Mas como é que tu tens consciência de que estás a pensar ?
N. - Como é que tenho consciência ?
...
E. - Por exemplo, tu estás a pensar no plano. Como é que sabes que estás a pensar no plano e não, por exemplo, na praia ?
N. - Pronto! Estou à procura duma resposta, estou a pensar fazer aquilo...
E. - Quando tu estás a resolver um problema, sozinho, achas que se está a travar uma espécie de diálogo ?
N. - Estou a falar comigo mesmo: "Agora tenho de fazer aqui assim. Depois tenho de pegar naquele..."
E. - E ouves-te ?
N. - Ouço (rindo)
E. - Mas como é que te ouves, se tu não falares ?
N. - Às vezes falo ! (ri-se)
E. - Vocês têm ideia de que há qualquer coisa lá dentro, na vossa cabeça ?
R. - Sim, a funcionar.
N. - Sim.
E. - E o quê, o que é que vocês chamariam a isso ?
N. - As sinapses.

a camisola

INFANTÁRIO DA ROSÁRIO, EXT-MANHÃ

Ao ver chegar o rapazinho pela mão daquela mulher sem graça, socorreu-se de umas palavras amenas, já testadas noutros embates matinais:

- Tão bem que fica essa camisola ao Ricardo!
- Ai Rosário, não é por ser meu filho, mas ao meu Ricardinho tanto ficam bem as cores claras como as cores escuras.

10.5.05

(quase) despedida


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correspondência (também)


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(ainda) Areeiro-Amadora-Areeiro


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no metro

Entraram no Saldanha e sentaram-se em frente a mim. Ele, um rapaz de cabelos compridos, escorridos, risco ao meio. Barba a dissimular umas borbulhas vermelhas. Ela usava saias acima do joelho e umas meias bordeaux floridas. Não falaram nem olharam um para o outro. Vestiam os dois de escuro. Ele trazia a tiracolo um saco verde do exército, ela um saco talvez indiano. Não me lembro dos brincos dela, mas lembro-me dum casaco preto de malha lisa. Quase ao chegar à estação de Entrecampos, ela encostou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos.

9.5.05

linha 2


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5.5.05

uma dentadinha paranormal

A perplexidade invadiu a vida da Madame Castafiore. Hoje está arrependida de ter passado por ali, pelo lado obscuro da cidade, quando teria bastado uma palavra, vá lá, três, para o taxista ter virado à direita. Se o tivesse feito, em vez de virar à esquerda, não teriam encontrado aquela camioneta e aquele camionista a descarregar duas sacas de batatas e umas cebolas velhas diante da mercearia. E se aquelas batatas e aquelas cebolas velhas não tivessem tido aquele destino, também não teriam ficado a marcar passo mais à frente, esperando que o homem do gaz acabasse alegremente de fazer marcha atrás como se a rua lhe tivesse sido deixada em herança por uma tia da província. E se o Ken tivesse tido como instrutor Mr. Brown e tivesse feito marcha atrás segundo os preceitos do Código, lentamente sim, senhor, mas no menor espaço possível, teriam passado pela paragem antes, muito antes do autocarro lá chegar e, desse modo, nunca Madame Castafiore a teria visto, ou melhor, os teria visto. Porém, viu-a, ou melhor, viu-os e desde então a imagem do que viu – uma mulher, ou melhor, uns brincos, ou melhor ainda, os brincos – nunca mais a largou, a ela, Castafiore.

Os brincos são constituídos, cada um, por duas argolas em ouro. Uma é uma argola simples, na outra existe um pendente, também em ouro, em cuja base, sempre em ouro, está incrustado um pequeno dente, um dente de leite.

Em resumo, temos um dente humano, que por definição pertenceu a um ser humano, a ser exibido, transportado, passeado, arejado por outro ser humano.

A partir do momento em que ela, Castafiore, tomou consciência da condição humana do dente, um turbilhão de pensamentos a assaltou, a ponto da existência se ter tornado um tanto fatigante. Mas todos eles, os pensamentos, derivavam ou coincidiam para uma questão particular: a quem teria pertencido aquele dente?

À própria, isto é, à dona dos brincos, que teria encontrado o dente de leite numa caixinha bege da ourivesaria lordelo, onde a mãe o guardou há quarenta e nove anos atrás ? A um filho, por exemplo, o filho do meio, o seu preferido, que veio mais tarde a partir um dente incisivo quando trincava com mais entusiasmo um teclado de entrecosto num orbitur, algures no litoral alentejano? Ao marido, sim, porque não, ao próprio marido que durante anos usou o dente ao pescoço juntamente com a chapa do grupo sanguíneo, num fio de prata que comprou na tropa e de que ela se recorda muito bem, pois se ele nem na lua de mel largou o fio, o dente e a chapa, e de que a muito custo só anos mais tarde abandonou, subornado por um cordão de ouro comprado a prestações no Martim Moniz ? A um afilhado nascido na serra como ela e que depois emigrou para a Alemanha mas que nunca se esquece de lhe telefonar pelo Natal? A um netinho, por exemplo, o neto mais velho que não desfazendo tem os olhos claros como o pai dela, e que lhe dá aquele ar fino ?

Seja a quem for, e todas as hipóteses são comoventes, o que transtorna Madame Castafiore é, como direi, não quero ser brutal nem prescindir por um instante da nobre capacidade de compreensão, mas há uma certa promiscuidade pressuposta naquele dente, dum lado e doutro da corrente, dum lado e doutro como os carapaus fritos, no ex e no actual proprietário, duma boca humana para uma orelha humana. Acho que Madame Castafiore tem razão. E depois há sempre a hipótese do sobrenatural ou a das energias ocultas ou a dos pequenos anjos e demónios nos visitarem de mansinho e devolverem a funcionalidade plena àquele dente e a todos os dentes de leite desactivados e ultrajados que percorrem em orelhas alheias as ruas portuguesas, ou os que jazem envoltos em algodão amarelecido, ou os simplesmente esquecidos em açucareiros chineses, cuja asa partida numa mudança de casa destinou a depósito de pequenas coisas inúteis, ou os perdidos em gavetas de escrivaninhas que só o acaso restitui à luz do dia, ou os que servem hoje para meter medo a crianças de chuchas chico dependuradas sobre babetes com restos de sopa de cenoura, etc., etc. Pelos cálculos de Madame Castafiore, só na área metropolitana de Lisboa deve haver milhares.

3.5.05

a mulher da pradaria

A minha vizinha do andar de baixo, em linguagem de arrendamento urbano, a minha vizinha de baixo, detesta as chamadas tarefas domésticas, ou a lida da casa, como lhe chama a mulher do rés-de-chão do prédio ao lado, dona dum gato pardo que observa o universo enquanto ela ajeita um gancho. Ao pressentir a minha passagem, dirá: ai menina que dores nas costas, estou a ver que não acabo a lida da casa, dixit. Não sei bem porquê, também eu prefiro a expressão, talvez por me fazer lembrar o Lidl, instituição tutelar da minha vida doméstica.

Pois ela, a minha vizinha de baixo, não gosta de cozinhar, pois ela não gosta de aspirar, pois ela não gosta de passar a roupa a ferro, pois ela não gosta de pôr a loiça suja na máquina nem sequer de rodar o botão para pôr a máquina a trabalhar. Não, não e não, três vezes não, não as vezes que for preciso, a minha vizinha de baixo detesta as tarefas domésticas.

Há todavia uma coisa que a minha vizinha recomenda às empregadas que não façam, que nunca obriga as filhas a fazer, há uma coisa que a minha vizinha de baixo não dispensa, uma coisa que adora fazer: estender a roupa.

E como é que uma coisa tão básica, não sei como dizer, porque é que uma coisa tão simples, e às vezes tão irritante estatisticamente, sobretudo para quem deixa cair mais de quarenta por cento das molas, como é que uma coisa tão Caneças look pode deixar a minha vizinha de baixo à beira de um êxtase um pouco menos que celestial?

Interroguei-a a esse propósito.

Ainda não caí em mim. Não que a explicação não tenha lógica, claro que tem. Mas fui apanhada de surpresa. E senti-me mesmo um nadinha estúpida. É assim que eu me sinto sempre que as explicações não me passam pela cabeça. Estúpida, estúpida, estúpida. Bastava ter parado por um segundo, claro que tem lógica, e mais, muito mais do que lógica: tem um potencial poético merecedor da atenção dum poeta, pelo menos, portuense, e embora padeça de algum desfasamento geopolítico e embora historicamente deslocada a explicação faz sentido, eleva o horizonte estratégico de um prédio que, sem isso, se diria vulgar, cria todo um ambiente que em muito ultrapassa a velha polémica do caixote do lixo (afinal, quem põe o caixote do lixo da rua e quem repõe o caixote do lixo no prédio, eis a questão), um pathos, uma âncora de sugestão que me pode deixar assim, pouco precisa e volátil, mas que confere à vida quotidiana do número 8 uma dimensão cósmica.

A minha vizinha de baixo adora estender a roupa porque se imagina nada mais nada menos do que na pradaria, repito, na pradaria.

Convém explicar que o nosso prédio se situa no topo de uma espécie de colina rectangular, cuja inclinação ligeira nos põe, repensando agora todas as coisas, a nós, número 8, acima dos outros mortais, e suficientemente longa para não vermos a mulher do prédio do extremo oposto a sacudir o pó, quer dizer, o número 8 tem horizontes.

Ao entardecer, o céu fica laranja, rosa, salmão, conforme as leis e os caprichos da natureza. Os aviões rasgam o mundo diante dos nossos olhos com uma frequência que nos poderia servir para aulas práticas, caso quiséssemos ali instalar uma escola de controladores aéreos.

Os elementos que o nosso prédio atrai enchem a nossa glamorosa vida de contemplação e aventura. O vento faz baloiçar as cordas das roupas e desde logo as próprias roupas. Costumo ser fustigada, enfim, não eu pessoalmente, mas os vidros da minha marquise, com os lençóis do andar de cima. Há um, sobretudo um, verdinho com umas risquinhas branquinhas que me põe doida, talvez sejam as bainhas com excesso de dobras, sei lá, as operárias têxteis já não são o que eram desde que ao pesadelo das falências fraudulentas se veio juntar o pesadelo chinês. O tal verdinho bate com tal impacto nos vidros que nos dias de maior ventania penso seriamente num seguro de vida ou mesmo numa extensão ao seguro de acidentes de trabalho, já que a lida da casa também é trabalho.

Bom, mas não quero entrar em polémicas jurídicas e volto à minha vizinha de baixo. Ao entardecer, não há cá soturnidades nem melancolias tais. Ao entardecer, há apenas roupa lavada, seca ou húmida, mas não roupa metafísica. Ao entardecer, no nosso prédio, há uma bela vista sobre a pradaria e, se acaso alguém, entrando pela cozinha adentro, perguntar à minha vizinha de baixo debruçada sobre o estendal:

- Então o teu cowboy está para chegar?

ela responderá com a coragem resignada de um certo tipo de mulher da pradaria:

- Hoje é dia de índios.

28.4.05

o IVO FERREIRA está preso no Dubai/cronologia dos acontecimentos

O Ivo Ferreira, realizador português de 29 anos, filho do actor e encenador Cândido Ferreira, está preso no Dubai por consumo de haxe. A situação dura quase há um mês, e apesar das diligências da família e de outras pessoas, nomeadamente e desde a primeira hora do Joaquim Leitão, o Ivo continua preso, preso e só, num país que começou para ele por ser um país de esperança e se está a revelar agora um país incompreensível, como incompreensível se está a revelar as autoridades do seu próprio país, tão lentas e hesitantes a agir, apesar de, por exemplo, ser tão gritante a desproporção entre os factos de que é acusado e a situação de detenção prolongada e, no domínio das provas, a ausência de garantias de contraditório. Dado estes e outros contornos de ordem civilizacional e política, que tornam ainda mais insuportavelmente precário o equilíbrio pessoal do Ivo, peço a todas as pessoas que possam directa ou indirectamente ajudar a ultrapassar esta situação que o façam.
cronologia dos acontecimentos:
5/Abril - detenção do Ivo no Dubai (onde Portugal não tem embaixada)
7/Abril - no Dubai,  os amigos tomam  conhecimento da detenção, i.e, o Ivo é mantido incomunicável 3 dias; os amigos telefonam para o Negócios Estrangeiros e pedem para que a família do Ivo seja avisada;
9/Abril -  a família contacta o Gabinete do Secretário de Estado das Comunidades;
10/Abril - o Embaixador português na Arábia Saudita (encarregue do assunto) diz que tomou conhecimento do caso;
16/Abril - o Embaixador desloca-se à prisão;
18/Abril - o Embaixador entrega o relatório da sua intervenção;
19/Abril - com o fim de se obter um pedido de clemência, uma exposição do caso dá entrada no gabinete do Primeiro-Ministro;
27/Abril - o Ivo é interrogado no Dubai pelo Procurador e, a pedido do Embaixador português, é visitado pelo Embaixador de Espanha;
28/Abril,hoje - continua-se sem notícias positivas e a família do Ivo resolve tornar público o seu caso.

22.4.05

a dois passos

hoje tenho de ver o mar

21.4.05

sondagem

Ontem de manhã, na pastelaria:

- Eu logo vi! Eu logo vi! Assim que ele chegou à janela, logo achei que era muito simpático!
- Os alemões costumam ser muito simpáticos...

Entra na pastelaria uma outra cliente e atira para o ar, antes mesmo de dizer qualquer coisa parecida com bom dia:

- O que é que vocês acham do nosso Papa?

17.4.05

em duas palavras

Tudo se passa numa paragem de autocarro, entre a Rosário, uma mãe e dois filhos. Um deles - Artur , de seu nome, com 6 anos de idade e um azul-esverdeado nos olhos - frequentou o infantário onde a Rosário trabalha, numa zona quente da cidade. Ao vê-los, e há que tempos os não via, pois, entretanto, a família mudara-se, a Rosário pergunta, confessou-me ela que com algum contentamento, se assim se pode chamar ao olhar sorridente com que as duas partes se encararam:

- Então, já não está em Campolide, mora outra vez aqui ?!

Enquanto a mulher procura um nadinha transtornada as palavras no meio dos sacos pousados sobre o banco escavacado da paragem, ao jovem Artur as palavras saem-lhe ligeiras e breves:

- Fomos corridos!

11.4.05

segunda-feira, dia de folga


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8.4.05

noite americana


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7.4.05

hoje há muito mar

Conversas de donas de casa. Esta manhã, na pastelaria:

- Hoje há muito mar.
- O mesmo que ontem...
- Ontem não o ouvia, e hoje ouço-o lá na minha casa.
- Foi o vento que mudou.
- Vento norte ou nordeste?

6.4.05

o farol visto da praia do norte


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com uma ligeira névoa, eram sete e tal da tarde, depois de ter sabido o que era o jantar: croquetes com arroz de cenoura. acho que prefiro os restos do almoço se ainda houver: entrecosto no forno. evidentemente há uma hipótese bem mais radical. e vou parar com isto dos croquetes e das névoas, porque o que eu tenho na cabeça é o suicídio da rapariga de 22 anos, hoje, aqui, bem perto da praia do norte.

4.4.05

orgulho e preconceito

Passei a tarde a tratar da minha viagem a África. Gosto de referir-me assim às 7 semanas que em Moçambique vou passar a trabalhar. Passaporte, visto e vacinas. Cheguei ao Instituto de Medicina Tropical quase em cima das 5. Estacionei com sorte e a ajuda de um dos três arrumadores presentes naquela dúzia de lugares. Retribuí com os meus mais sinceros agradecimentos e cinquenta cêntimos.

Corri até ao Instituto, preenchi uma ficha, paguei e deram-me uma das vacinas. Tudo estava a correr como o planeado. Só me faltava ir receber um trabalho que estava a pagamento também ali na Rua da Junqueira. Fui a pé.

Quando voltei ao local de estacionamento, tinha-se passado uma hora, mais minuto menos minuto. Procuro as chaves na mala e sou interrompida por um dos arrumadores que me chama. Não o meu arrumador, mas um rapaz de cabelo claro e um blusão verde garrafa. Vejo-o agitar algo e reconheço logo a seguir o porta-chaves vermelho com o símbolo da Renault, comprado numa loja de indianos aqui ao pé de casa. Mas não nos dispersemos.

Tinha sido o condutor do carro ao lado a dar pela chave na porta, e acrescentará o rapaz: pouco depois da senhora ter atravessado a rua. Como eu não aparecia, já estavam um bocadinho aflitos. Talvez tenha sido por isso que senti, não sei, alegria ? na forma como o rapaz de verde me chamou. Não que não tivessem tudo previsto, no caso de eu não aparecer. Se eu não aparecesse: a) entregavam a chave à guarda do segurança do hospital ali em frente; b) deixavam-me depois um recado no carro a explicar o sucedido. Muito e muito obrigada e depois bebam uma cervejinha por conta da casa. Obrigada, rapazes. E enquanto fazia a manobra para sair dali, sempre com a ajuda diligente do par, um deles, o que não estava de verde, ainda declarou orgulhoso: isto é para a senhora ver que os arrumadores não são o que dizem por aí!

Foi um fim de tarde feliz para todos. Acho eu. Eu livrei-me de boa, eles sentiram-se, não sei como dizer, pareceu-me que por momentos pairou por ali o lema da revolução francesa. Não sei quanto tempo vão vocês viver, aliás, tão pouco sei quanto tempo vou eu viver. Mas quando passar na Rua da Junqueira hei-de levantar a mão e dizer: olá, rapazes. E agora vou ouvir talvez Radio Head, Doves, sei lá, se for preciso Sonic Youth, para compensar os violinos no céu. Ou então regresso ao Vou-me embora, um livro divertido que encontrei perdido no sofá da sala ontem quando regressei a casa. Amanhã já cá não estou.

3.4.05

na beira da estrada


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2.4.05

junto ao farol


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1.4.05

citações em cadeia

Para onde ir agora, pergunto, depois de não possuirmos em nós a soma bastante de delírio? A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. Precisamos de escolher: mentir ou morrer. E eu nunca consegui matar-me.

Viagem ao Fim da Noite
Céline

citação encontrada em Onde está J?, de Julieta Monginho, que também cita Conrad, citado, por sua vez, em Os Papéis do Inglês, de Ruy Duarte de Carvalho :

Compreender num clarão de luz que não se alcança a felicidade através da moral. Esta revelação foi terrível. Viu que nada do que sabia importava minimamente. Os actos dos homens e das mulheres, o êxito, a humilhação, a dignidade, a derrota - nada disso importava. Não era uma questão de mais ou menos sofrimento, desta alegria, daquela dor. Era uma questão de verdade e de falsidade - era uma questão de vida e de morte.

Histórias Inquietantes
Conrad

30.3.05

l'heure du petit déjeneur

C'est l'heure, je crois, du petit déjeneur
auriez-vous la bonté de penser à moi...


Le Petit Prince

29.3.05

estação terminal


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28.3.05

serviço florestal

Nesse tempo, ainda não tinha a ideia de que a vida está sempre a transformar-se em literatura, durante pouco tempo, claro, só o suficiente para ser o que melhor recordamos, e com a frequência bastante para acabarmos por chamar vida a esses momentos em que a existência, em vez de andar para os lados, para trás e para a frente ou de ficar parada de todo, segue a direito, tensa e inevitável, complicada, um clímax e, com alguma sorte, uma purgação, como se a vida se fabricasse, não acontecesse.

SFEU1919: o Guarda, o Cozinheiro e um Buraco no Céu

de Norman Maclean

Referi-me a Norman Maclean (1902-1990) aqui há uns tempos, quando reabri a loja. Uma surpresa. Para mim.
Com ele estive no Serviço Florestal dos Estados Unidos e conheci o rio Blackfoot. Estive com lenhadores da Anaconda Company, conheci o amigo Jim, um cozinheiro, Bill Bell e o cão de Bill Bell, uma criada grega, Aba Enorme, Aba Grande e Aba Maior. Imaginava lá que serrar podia ser uma coisa bela? Joguei pool, cribbage e poker no Oxford. Estive em Bear Creek e bati o record de salto em comprimento para trás por causa de uma cascavel. Estive aqui e estive ali, estive nas Montanhas Rochosas.

27.3.05

âmbar

A história que se segue mete a Rosário ao barulho. Mas não se passa no infantário. Nem no infantário nem com nenhum dos meninos do infantário. Nem agora. A história que segue tem para aí uns 10 anos e passa-se em casa da Rosário com uma das suas filhas.
Para aí há uns 10 anos jogava-se trivial pursuite no 2º andar. E sai uma questão deste género: "Donde se extrai o âmbar ?"
"- Ó mãe, deixa-me responder!" Quem assim falava, com urgência e decisão, era a Joana. Então com 6 anos, a Joana fazia parte da mesma equipa da mãe e o seu tom inexorável calou a sua e a outra equipa e conquistou o direito a responder.
E a Joana respondeu: "- Do material escolar!"
As gargalhadas que explodiram sem parar deixaram a Joana à beira das lágrimas. A incompreensão durou uns minutos mas a raiva só não dura até hoje porque a Joana hoje tem muito mais que fazer. Agora, por exemplo, está em Milão a passar as férias da Páscoa.

26.3.05

ontem, na outra margem


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25.3.05

dias assim

o peixe hoje não está a picar

24.3.05

semana santa

Num bairro africano de Lisboa.
-'Tás a ver aquele miúdo ali? Tem 12 anos. É correio de droga. Depois chamou-o e deu-lhe uma mão cheia de amêndoas.
- Repara nas casas onde eles vivem. Nem janelas têm.
Amanhã é sexta-feira santa.

23.3.05

flash


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22.3.05

querida

Às 5 da tarde instalei-me no café cujo dono me chama querida. Amante de ervas e cheiros, há dois dias que aspirava por uns minutos que me permitissem alinhar um post sobre o assunto.
Encontrados os minutos, encontrado o local, faltava encontrar a paz de espírito necessária para escrever sobre a minha nova condição de proprietária de uma plantação de poejos. Era o que esperava encontrar ali.
E ali estava ela, a paz de espírito, entre o bruá da clientela, da clientela de calças de lycra, alimentada a correio da manhã e toques polifónicos, porém, meus colegas de delta e um copinho de água, se faz favor.
Abri o meu caderninho de capa branca e contracapa amarela. Encontrei no fundo do bolso a discreta parker cor de laranja, Mal tive tempo de põr à frente da nota "poejos/ ver o nome em latim" um ponto de interrogação. Ouvi o dono do café chamar querida a outra cliente que não eu. Fechei o caderno e saí.

21.3.05

A Primavera Segundo Madame Castafiore

Raras são as coisas que escapam a Madame Castafiore. O seu olhar atento captou sem hesitar o meu estado de espírito, down & dark, Lda. Foi pois sem surpresa que a ouvi comentar em meados de Fevereiro: - A Primavera e o Outono são as estações propícias às depressões. Era fim de tarde, as torradas estavam fininhas como eu gosto, a conversa fluía sem sobressaltos e não constava das minhas intenções contrariar Madame Castafiore. Mas fui obrigada a dizer-lhe que estávamos em pleno Inverno. Madame Castafiore olhou para mim. Nesse dia, o risco que lhe sublinha os olhos estava tão afirmativo quanto as palavras que se seguiram: - No seu caso, o Inverno e o Verão também são.

20.3.05

Ah, um soneto...


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(...)
Lisboa com suas casas
de várias cores,
Lisboa com suas casas
de várias cores,
Lisboa com suas casas
de várias cores...

À força de diferente, isto é monótono.
(...)

Álvaro de Campos

19.3.05

nas nossas ruas


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18.3.05

uma visita

Mal a rapariga das pernas altas os deixou a um canto do recreio, a Directora insistiu:

- Tu não te lembras da Carolina?! É minha sobrinha, filha da minha irmã Ana. Também não te lembras da minha irmã? A Carolina é filha dela.

O menino portador de trissomia 21 permaneceu resoluto: não, não e não. Não se lembrava.

- A sério que não te lembras? A Carolina tocava sempre uma música de que tu gostavas tanto...

A Directora acena a alguém que passa. Precisa de afastar o desânimo. Respirar. O rapaz olha para ela:

- Dê-me mais pistas.

17.3.05

a janela grande

Eram 10 da manhã quando entrei e pedi um café. Fico sempre virada para a grande janela. A grande janela dá para o largo. E do largo vai-se para o mundo. Hoje, regressei a Lisboa.

16.3.05

codigo 113


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com ou sem acentos, o cliozinho portou-se muito mal na inspeccao tecnica periodica

15.3.05

irish coffee

Madame Castafiore telefonou antes de almoço. Telefonou e disse: - Os irlandeses é que sabem escrever.
Provas? Quase não tinha dormido e levantou-se mais cedo para acabar o livro antes de ir trabalhar. Este despertar literário fez-me interessar pelo assunto e quis saber o que é que os irlandeses andam a escrever e quem entre os irlandeses anda a escrever. Do outro lado, o silêncio, um grande silêncio indiciava o imprevisto. Madame Castafiore não se conseguia lembrar do nome do livro, nem do nome da irlandesa que a fizera madrugar. Com a emoção tinha-se esquecido. Pura e simplesmente.
O meu telemóvel vibrou quando o almoço estava no fim. Li a mensagem. A mensagem dizia: "Depois de tu partires". Acho que nessa altura sorri e, numa singela homenagem, com o café pedi uma mousse de chocolate.

14.3.05

apogiatura

ornamento que consiste numa nota estranha à harmonia e que antecede
uma nota de apoio ou notas de harmonia
harmonia:elemento da música que consiste
em sobrepor 3 ou mais notas; a harmonia é dada pela sucessão de acordes
e pela relação que estabelecem entre si
acorde: 
conjunto de três ou mais notas simultâneas

A Grande Música Passo a Passo

cadência

secção final de uma frase musical que lhe dá um carácter conclusivo

13.3.05

conversa acabada


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12.3.05

top ten

Leio no Público de hoje que "Três Cavalos", de Erri de Luca , está em primeiro lugar no top ten de vendas da livraria O Navio dos Espelhos, em Aveiro. Ficção.
Há uns meses, a A. falou-me deste livro que, aliás, lhe tinha sido recomentado pela M., durante os dias mediterrânicos do verão passado. Emprestou-me o livro com o mesmo entusiasmo com que o leu. Não sei porquê, talvez seja a mania cada vez mais presente em mim de ler vários livros ao mesmo tempo, o certo é que "Três Cavalos", livro de pouca espessura, foi sendo trocado um dia por um, outro dia por outro. Até que um dia o livro me foi confiscado. A minha palavra, de que sim, que estava a gostar do livro, de que sim, o leria até ao fim, de nada serviu. Lembro-me de um homem numa taberna, lembro-me duma mulher, estrangeira. Lembro-me dos atritos e do desenho da escrita. Uma escrita feita à mão. Uma escrita desamparada. Acho que não se pode ler este livro no Outono.
Ao escrever este post, não temo que o céu me caia em cima da cabeça. Temo estar a confundi-lo com outro. Mas não. "Três Cavalos" é um livro inconfundível.

11.3.05

página 26

- Uma vez encontrei uma raposa numa ratoeira. Estava com tanto medo que tentava morder a perna para se libertar. Tinha olhos como os teus.
- Libertaste-a?
- Não me deixou. Tinha mais medo de mim do que da ratoeira.
- O que lhe aconteceu?
- Vi-a morrer.


Minette Walters
A Câmara Escura

10.3.05

ikea kungens kurva

Sobre a Suécia sei: que é a terra da Lisa e de Sven Goran Eriksson. Posso também falar, mas só um bocadinho, de: August Strindberg, um velho conhecido. Feitio difícil, diálogos breves, conflitos essenciais. Além disso: conheço razoavelmente a Scania por causa de Henning Mankell, que costumo encontrar na biblioteca municipal, e à conta de Ingmar Bergman estive em algumas ilhas, onde aprendi a palavra que melhor pronuncio em sueco: Monika.
Ora, sabendo eu tanta coisa sobre a Suécia, não encontro explicação para isto: foi preciso a Rosário ir à Suécia para ficar a saber que os meninos suecos quando vão brincar para a neve levam um balde e uma pá.

9.3.05

boletim clinico


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A Mia foi operada hoje, durante a manha. Foi medicada e encontra-se bem. A Vera esta a tomar conta dela. Este boletim clinico nao tem acentos.

8.3.05

dupla articulação

As minhas gatas gostam do campo, isto é, imagino eu que sim, que as minhas gatas gostam do campo. Imaginar, imaginar, não será bem. Será mais um supor, um supor do género suponhamos. Como é que me hei-de explicar? Limitar-me-ei então a dizer o que vejo. Vejo uma gata em cima duma oliveira, vejo outra gata espojada no chão cor de barro. Estão ambas ao sol. E eu penso que isso é a felicidade.
É uma pena não poder falar com elas. Eu ia para cima da oliveira e falávamos sobre a felicidade, porventura o mais famosos dos não tema. As minhas gatas não falam porque não têm dupla articulação, explicou-me um dia Madame Castafiore. Mas atenção, não apenas as minhas gatas, fez questão de ressalvar, logo na altura, Madame Castafiore.
Quanto a mim, poderia de facto subir para uma oliveira e se não caísse, é só um supor, claro, desejaria que o sol viesse matar as perguntas. "O Sol mata as perguntas" aprendi eu em Madrid, Espanha, longe das oliveiras, perto do futuro. Já lá vão doze anos. Doze ou mais.

7.3.05

caderno de significados

Plétora de apreciações, pleiade sem émulos, pináculo, epitomisa são palavras ou expressões que encontrei no prefácio a Senhores da Terra, Diário de um Agricultor Alentejano . Entre 1866 e 1889 escreveu o agricultor 20 livros numa letra desenhada. A 18 deles dá a designação de Pandemónios, por se destinarem ao apontamento de coisas tão diversas como a contabilidade e a filosofia, a correspondência e o registo de histórias familiares.

Hoje, aqui no meu pandemónio, aponto duas ou três coisas.
Ontem, 0-1 sobre o Nacional, vitória do Benfica. Espero comemorar o título em Moçambique. Enquanto espero, oiço comentários sobre o novo governo em directo do Porto. Estou a ver a RTPN: O que é que tem a dizer sobre o aumento dos impostos daqui a algum tempo? Um engenheiro liga de Vila Nova de Poiares. Muito obrigada por nos ter dado a sua opinião.

Amor à primeira vista :

Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.
(...)


Wislawa Szymborska ganhou o Nobel em 1996. O Nobel da Literatura.

E com isto tudo já me estava a esquecer do mais importante, a data do prefácio: 1982. Por causa dele abri o caderno dos significados. Dúvidas quanto ao significado, dúvidas quanto aos acentos, um domingo de dúvidas. Felizmente o artilheiro encarnado fez o golo logo no início da etapa complementar. Felizmente o poema de Szymborska acaba assim:

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.

6.3.05

e as serras


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a cidade


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5.3.05

R.I.P.

Km 24, A6, ontem ao fim da tarde, em direcção ao Sul. O Sol de tão baixo cega os espelhos laterais, por isso é o retrovisor interior que me põe a par do mundo atrás de mim, enquanto controlo o binário máximo, mantendo-me nas 3750 rpm, quer dizer, a 130km/h.
Esse mundo acaba por reduzir-se a uma estrela, a do símbolo da mercedes, filtrado por um laranja bright lá atrás. É uma carrinha, alta e escura. Vejo-a piscar e ultrapassar-me: é uma carrinha de cristal, confirmo que escura, e então vejo o tecido de veludo bordado a dourado que cobre a urna. Mais uns segundos e fico só.
Quando eu morrer levem-me de volta para o Alentejo. Quero ir assim, na esgalha. Quero ir assim, ao pôr do sol. Partir de dia e chegar de noite. Dormir pela última vez onde nasci.

4.3.05

declaraçao de amor

Encontravam-se todos os dias na paragem. Bem, quase todos os dias. Já tinham chegado à fala. Bem, falado, falado, 'tás a ver, a coisa era mais feita de olhares. 'Tás a ver, uma coisa à socapa. Mas naquele dia estava decidido. Eram oito e trinta e cinco e tinha fumado quatro cigarros e meio. Mais coisa menos coisa.
Ele estava, então, decidido. Tinha ensaiado umas frases, bem, frases, frases, eram mais umas palavras. Também não era preciso exagerar, só precisava de lhe dizer que gostava dela, - gostava como?-, quer dizer que a curtia, que a gramava e que ela era gira, 'tás a ver, uma miúda gira.
Quando ela chegou à paragem sorriu-lhe. Não havia tempo a perder. E se não havia tempo a perder era melhor começar a conversa. Na paragem, houve quem tivesse ouvido o seguinte:
- Tem estado um frio!
Depois de puxar por mais um cigarro:
- Tem estado mesmo frio.
Depois de ter revirado todos os bolsos à procura do isqueiro:
-Nevou na terra da minha mãe. Pelo menos foi o que a minha avó disse ontem, 'tás a ver, quando a minha mãe telefonou. Olha aí vem o 6.
Ciao, diz ela. E põe-se na fila para entrar. Quando vai quase a entrar, vira-se e diz-lhe:
-Já viste cair neve?
Ele não soube bem o que responder, não tinha planeado uma reacção daquelas, mas quando o autocarro deu a curva tomou consciência da totalidade da situação, 'tás a ver, foi como se ela tivesse dito que sim, que também gostava dele.

2.3.05

relações de vizinhança

Os passos no soalho não enganavam: alguém viera habitar o andar de cima. Mas quem? A resposta veio célere. Nessa mesma noite, a primeira depois de férias, viu o homem à janela, iluminado pelo anúncio da farmácia que, por sorte, cumpria serviço noctuno. Não vislumbrou mais do que um queixo quadrado envolto numa espiral de fumo mas foi o suficiente. Alguém viera habitar o andar de cima.
No dia a seguir, quando regressava do mini preço e arrastava consigo três sacos e um garrafão de água do fastio, dois outros elementos, pode mesmo falar-se em factos, vieram, todavia, reabrir o processo. Por ordem alfabética: a) um bilhete de comboio suburbano, caído no penúltimo degrau antes do seu próprio patamar (bilhete inteiro, ida, início da viagem até 11:39, Lisboa SA- Amadora, 2 zonas, 1,10 eur, etc., etc.); b) um cheiro intenso a churrasco relativamente indefinido, talvez febras, talvez entrecosto, até entremeada, fosse o que fosse fez-lhe ali mesmo crescer água na boca e deu-lhe muito que pensar.
Seria casado? E que raio andaria a fazer no dia anterior na Amadora à hora de almoço? Era pessoa para ter comido um duplo cheeseburguer no babilónia? E que mulher era esta que não o deixava fumar em casa? E que homens são estes que deixam que as mulheres não os deixem fumar em casa?
Quando pousou os sacos na bancada da cozinha respirou fundo e sentou-se na cadeira desengonçada que há anos atravancava a porta para a marquise. Apetecia-lhe almoçar fora, sei lá, umas febras, um entrecosto, até uma entremeada. Mas o red fish já estava descongelado, verificou com pena e seguiu para a sala onde consultou numa revista a programação da tv cabo. Nisto pôs-se a escutar os passos no soalho. Os passos no soalho não enganavam: alguém viera habitar o andar de cima.

1.3.05

figuras de estilo (1) : ELIPSE

Mas estava a perguntar-me como é que a conheci. Eu dava aulas aos rapazes e ela às raparigas. Cumprimentávamo-nos à entrada. Apertávamos as mãos, sabe, não era como hoje. Depois ela começou a pedir-me romances emprestados. Ferreira de Castro, Júlio Dinis... Um romance todas as semanas. Ao fim de 3 anos combinámos e casámos.

28.2.05

hesitar


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27.2.05

sábado, domingo

Mal salto da cama e as gatas correm desaustinadas para a cozinha convenço-me do agradável sabor das coisas conhecidas e ponho água a ferver para o chá que se aproxima. Porém, o plano irá ser posto em causa logo a seguir. Não há pão. Tudo isto se passa antes das nove da manhã.

Apanho o metro e saio três estações depois. Estou atrasada. O filme começou há 5 minutos, diz-me a rapariga que está no bar. É o primeiro dos três filmes lésbicos a que assistirei hoje. A meio do segundo, recebo um sms da A. a convidar-me para jantar. Deve ter sido Madame Castafiore que lhe foi dizer que eu andava deprimida. Mas tudo isto se passou antes das seis da tarde e, sobretudo, antes de eu ter lido um pequeno texto de Franz Kafka.

Apesar de, repito, nessa altura ainda não ter lido "decisões", o que só acontecerá hoje no café cujo dono me chama "querida", decido ir para a Graça.

Retenho três imagens no Martim Moniz: a Almirante Reis em perspectiva, incluindo alguns médios acesos, uma mulher de peso com uma camisola cor de rosa por baixo do casaco de cabedal e o 28 a descrever uma curva, com o centro comercial inclinado para a direita. Subo depois a Calçada dos Cavaleiros. Já quase não há lojas abertas, as nuvens tudo escurecem e ocorre-me uma palavra em francês: lourd, -e.

Faço um desvio e eis-me em Santa Luzia. Azul, verde, balanço de brancos. A minha velha nikon digital que se oriente. O raio de um semi-círculo de nuvens escuras por cima do limoeiro faz-me pensar no "amor de perdição".

A A. não está em casa. Soube depois que tinha ido ao Monumental com Madame Castafiore. Espero. Quando procuro um café, ouço fado na Rua da Graça e entro.

Acabo por me sentar numa mesa à entrada. O homem que a ocupa pede uma imperial. Chega até mim um cheirinho familiar: acompanha-a um pastelinho de bacalhau. Eu fixo-me no microfone dependurado do tecto. Aqui tenho uma dúvida. Pendurado no tecto, dependurado do tecto. Palmas. O 28 passa na rua.

Era o mesmo que fez a curva no Martim Moniz, onde estava a mulher da camisola rosa? Eu acho que sim. Sinceramente. Há 5 minutos estive a pensar no tempo passado. A gente envelhece em 5 minutos. Foi o último fado que ouvi antes de comer uma morcela em casa da A. Claro que não havia só uma morcela para comer.

Tudo isto se passou ontem, sábado. Hoje é domingo.

26.2.05

a hole in the sky

"Lenhadores e chulos e SEEU 1919", assim se chama o livro que me fez conhecer Norman Maclean e lamentar não poder, quer dizer, não saber ler na língua original as duas histórias que o compõem. Mas não desanimo. Sentada ao balcão da pastelaria Lido, faço planos para o futuro nas Montanhas Rochosas, Estado de Montana, USA.

25.2.05

outro dia


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24.2.05

realmente

EXT/DIA INFANTÁRIO DA ROSÁRIO

(À hora a que as meninas e os meninos chegam pela mão dos pais, dos avós, dos irmãos ou mesmo dos vizinhos.)

- Não sabia... Então o irmão da Sónia está preso?
- Ai Rosário, aquele meu neto não tem sorte nenhuma. Ou passa os anos na prisão ou no hospital.

fim da tarde sobre o tejo


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23.2.05

um shot natural

Madame Castafiore gosta de trazer notícias da rua. Não há como o futebol para produzir notícias imparáveis. Pelo menos no nosso país. À beira das passadeiras, enquanto o sinal não muda, entre dois folhadinhos e antes de enfrentar um bábá com sabor a rum, até se encontrar os dois cêntimos de que a caixa precisa para fazer o troco ideal, nos taxis, ah, sim, concerteza, nos taxis, mesmo no silêncio duma biblioteca pública a notícia acabará por chegar. Hoje foi um dia proveitoso. Simão Sabrosa e o jogo que se aproxima, o Conselho Disciplinar mais o salto de segunda à noite, etc., etc., mas sobretudo o nome. O que reteve a atenção de Madame Castafiore foi o nome, a sugestão que um nome destes arrasta: sumaríssimo. Sumaríssimo só pode ser um sumo que se bebe em pleno Verão, como um shot, um shot natural.

22.2.05

obras


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3 da tarde


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curraleira


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