30.9.09

momento

Via os carros a abrandar e continuei a olhar, a olhar. Estavam quase parados, os carros; tinham parado e eu continuava a olhar. Não sabia o que fazer. Foi um momento, maior que um relâmpago, menor que o seu som, só durou um instante, mas foi o suficiente. Estava numa passadeira. As passadeiras servem para atravessar. Atravessei.

29.9.09

mensagem em dez palavras

saltou a mensagem em dez palavras como saltava à corda

28.9.09

motivação

Trim. Trim. Trim.
- Sim?
- Boa tarde. Fala do citi. Posso falar com a dona fulana de tal ?
- Do citi? Qual citi?
- Do citibank. Como está dona fulana de tal?
(pausa, A conta mentalmente até cinco)
- Estou bem, obrigada. (sem pausa; em tom seco) Diga então o que é que quer?
- Dona fulana de tal, o meu nome é sicrana de tal, mas deixe-me dizer-lhe antes que esta conversa poderá estar a ser gravada por motivos de segurança-
(A interrompe B)
- Por motivos de segurança? Mas eu não tenho nada a ver com o Citibank, pois não?
- Queria dar-lhe conta de uma promoção
(A interrompe B, novamente)
- Ficamos por aqui. (a rosnar) Por motivos de segurança.

Depois de desligar, A esteve tentada a ligar para a esquadra e perguntar se tinha havido algum assalto ao citibank.

25.9.09

diálogos

Não paro de me inspirar nos diálogos das novelas:
"- O que é que tens?
- Nada. Porquê?
- 'Tás diferente. Passa-se alguma coisa?"

É tão bom ter a televisão ligada.

24.9.09

outro tempo qualquer

Às vezes penso que poderia viver em África, terra que me encantou como nenhuma outra, e que poderia desaparecer em África e que isso seria um final, um final sem ser um fim, que é como eu acho que devem ser os finais. Então eu desaparecia e pronto. Quando conheci África, apenas uma parte dela, num outro hemisfério, num outro oceano, pensei logo em largar o passado e prender-me ao futuro: eu poderia morrer ali, ali estava uma terra onde eu podia morrer. Não estou a ver maior elogio que alguém como eu, que já nasceu, possa fazer. Ou então podia ser a América latina. Não seria a mesma coisa, mas agora que estou a ler "O Velho expresso da Patagónia" tornou-se uma hipótese. Penso na Guatemala, no México, na Argentina, tudo belos nomes, e eu gostaria de morrer debaixo de uma bela palavra. Podemos ou não desaparecer sob as belas palavras? Aparentemente sim e eu digo sim. Mas pergunto-me se aguentaria o anonimato dessa morte. E quem diz o condicional diz outro tempo qualquer.

22.9.09

Jorge de Sena, poema de 1965

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amor o amor de amar não sabem

como não amam se de amor não pensam

os que amar o amor de amar não gozam.

Amor, amor, nenhum amor, nenhum

em vez do sempre amar que o gesto prende

o olhar ao corpo que perpassa amante

e não será de amor se outro não for

que novamente passe como amor que é novo.

Não se ama o que se tem nem se deseja

o que não temos nesse amor que amamos

mas só amamos quando amamos ao acto

em que de amor o amor de amar se cumpre.

Amor, amor, nem antes, nem depois,

amor que não possui, amor que não se dá,

amor que dura apenas sem palavras tudo

o que no sexo é o sexo só por si amado.

Amor de amor de amar de amor tranquilamente

o oleoso repetir das carnes que se roçam

até ao instante em que paradas tremem

de ansioso terminar o amor que recomeça.

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amar o amor de amar não amam.

Jorge de Sena,

Peregrinatio ad loca infecta

21.9.09

adeus Lucas



Morreu o Carlos Lucas, electricista. Ia fazer 42 anos. O seu nome pode ser encontrado no genérico de fim de muitos filmes portugueses.

18.9.09

loja chinesa

Hoje duas desilusões na minha loja chinesa da Morais Soares: não encontrei nem champô para cabelos brancos - sim, deixei de pintar o cabelo - nem uma protecção para o cotovelo - sim, um desconforto que me persegue há alguns dias. (Sim, tudo sinais de envelhecimento). Que maçada! Quem me dera chamar-me Liú. Liú quer dizer salgueiro. O salgueiro é uma árvore que cresce mesmo plantada ao contrário. (Mas o que é que isto tem a ver com a desilusão? ) É muito perigoso procurar champô numa loja chinesa.

17.9.09

caril

À primeira garfada, ficar com o nariz a suar. Nisto consistia o critério decisivo na prova do caril, segundo o velho senhor. As meninas sensíveis comem arroz branco.

16.9.09

biografia

Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-te na luz, no mar, no vento.
Sophia de Mello Breyner Andersen

15.9.09

ovo estrelado

Ontem apanhei uma grande arrelia. Ontem apeteceu-me um ovo estrelado. Raramente como ovos estrelados. Mas ontem era dia de ovo estrelado. Estava-me mesmo a apetecer. Andei a manhã toda com água na boca. E quando a hora de almoço chegou por volta da uma da tarde estava pronta para comer um ovo estrelado. Ao partir a casca tive um pressentimento. Infelizmente já era tarde. Bem me esforcei para impedir que o ovo se pegasse à frigideira. De nada me serviu. Como é que o fundo daquela frigideira já estava naquele estado?! Contrariada, comi o espectro dum ovo estrelado. Eu não mereço uma coisa destas, pensei. Deu-me uma veneta e saí para comprar uma frigideira. Só para ovos estrelados. É pequenina, diz que é anti-aderente, é muito querida. E ai de quem lá cozinhar outra coisa sem ser um ovo estrelado! Vou estreá-la em breve. Ontem já não deu. Já tinha comido um ovo estrelado feito em fanicos. Espero que tenha sido o último.

14.9.09

de regresso

De regresso a casa, hoje ao acordar deparei com uma obra num dos prédios do lado direito das traseiras. Andaimes, pedreiros, berbequins, cimento, cimento, histórias talvez.

12.9.09

ó tempore

O mundo está a mudar. Hoje, queria dar um mergulho e não havia uma onda.

11.9.09

manhã

Nevoeiro. Esperar pela tarde. Com vento, com sol ? Afastar a chuva do pensamento é suficiente. Por agora.

10.9.09

bacalhau uma vez mais

"- Porque será que o bacalhau do Natal não é igual ao outro?" Com esta interrogação, a mulher do lado pôs-me em sentido. Ali estava uma observação perspicaz.
Não foi tão feliz uma das amigas cujo contributo para a tertúlia foi este: "- Será por ser bacalhau da época?"
A terceira interveniente, ainda aqui não citada, não se conteve - e eu acho que com uma certa razão - e disse: "- Da época? Mas há bacalhau da Noruega todo o ano."

Estava dada a volta à mesa. A primeira tomou a palavra, como era devido: "- Aliás, o meu falecido pai até comprava bacalhau inglês."

9.9.09

hesitante

Não sei, não sei. O mar puxa, o mar chama, o mar enrola. O mar é frio.

8.9.09

no ar

Na mesa ao lado, numa esplanada sobre o mar, na praia da Apúlia:
- ó maie, olha um abioue taue grande!

7.9.09

sol e sombra

Ofir-Apúlia-Ofir. Contra-relógio Matinal. Para lá pelo lado do Sol, para cá pelo lado da Sombra. (À Noite logo se vê).

4.9.09

uma boa notícia

Hoje acordei em Ofir com raios de sol reflectidos na parede branca do quarto. Pouco passava das oito da manhã e abri a janela. Pareceu-me que nestas circunstâncias era a única coisa a fazer.

3.9.09

palavra do dia

vaginha | s. f.
(vagem + -inha)
s. f.
Mad. Bot. O mesmo que feijão verde.

Confrontar: vagina.
flip

1.9.09

palavra do dia

talingar | v. tr.
(talinga + -ar)
v. tr.
Mar. Alar ou ligar com talinga.

talinga | s. f.
(origem obscura)
s. f.
Mar. Cabo; amarra.