31.10.10

abrupto

São seis e tal e já é noite escura. A hora mudou. O outono avança em trombas de água e a mim apetece-me um chá que cheire. Alto e pára o baile. A nostalgia aproxima-se.

26.10.10

movimento

"Esta sensação: "Aqui não vou deitar âncora", e logo a seguir sentir como a maré ondulante nos envolve e sustenta."
Franz Kafka
trad.: João Barrento, "Parábolas e Fragmentos"

25.10.10

tradição oral

Convidei Castafiori para jantar. Recusou. Sopa de courgettes com coentros, omelete simples e uma salada de rúcula selvagem. Está bem que o menu era singelo mas quand même. Admirei-me, portanto. Só depois veio a explicação. Castafiori anda numa formação. Em todos os cursos que frequenta, e sabe-se como Castafiori adora manter-se up-to-date, não gosta de faltar. Diz que aprende muito por tradição oral. (As palavras foram dela.)

22.10.10

cansaço

Viveria outra vez
não me atrevo a pôr-lhe um ponto final; interrogo-me?

21.10.10

a aposta

Dois e dois são cinco? Não. Dois e dois são quase cinco. Continua a estar longe de ser exacto. Mas não deixa de ser uma afirmação com futuro, penso eu, pelo menos, com algum futuro. Quem sabe se, um dia, dois mais dois não serão cinco, e ainda que seja uma afirmação arriscada, há nela uma expectativa, não direi própria de uma utopia, mas, vá lá, própria de uma certa abertura de espírito. Em contrapartida, há afirmações que, sendo exactas, escapam a qualquer futuro, como esta: às cinco e  cinco, o príncipe morreu; o príncipe morreu sem chegar a rei e a princesa ficou viúva à hora do chá sem chegar a rainha. É uma afirmação exacta, desesperadamente exacta. Poor girl, comentaram, há amores perfeitos e capelas imperfeitas. É uma afirmação inadequada e, numa certa óptica, de mau gosto. A batata pode ser doce mas a lógica também pode ser uma batata. Se não fosse assim, diríamos, Olha ali está uma laranja amarga, mesmo antes de a provar, e renegaríamos para sempre o princípio in dubio pro reo que, não sendo um princípio citrino, lhe poderá ser aplicável, cum grano salis. É claro que há pessoas que dizem, Olha ali está uma laranja amarga, mesmo antes de a provar. Geralmente esta afirmação é acompanhada por uma aposta. E cá voltamos ao que interessa: há quem aposte que dois e dois são cinco, mas não há quem aposte que dois e dois são quatro. Daí que considere provada a afirmação supra: dois e dois são quase cinco - está longe de ser exacto, mas não deixa de ser uma afirmação com algum futuro.

20.10.10

balança comercial

Tenho um relógio que, para mudar de pilha, precisa de ir à Suiça, Mas porquê?, pergunto eu, Com esta marca é assim, respondem-me. Ah, não sabia. As lentes que uso têm de vir da Alemanha, ou melhor, elas estão cá, depois assinalam as dioptrias com uns risquinhos na superfície das lentes e dizem-me, Agora tem de esperar oito dias. Mas porquê, perguntava eu quando comecei a usar graduação progressiva, e respondiam-me, Têm de ir à Alemanha, Ah, dizia eu. Agora já não digo, Ah. Penso, entre dentes, Vão lá à vossa vida, ó lentes alemãs. As bananas vêm aos cachos do Panamá. Que giro, já tenho ouvido dizer em certas grandes superfícies, como sinónimo de romântico, Ah, o Panamá. O vinagre balsâmico vem de Modena, onde nasceu Enzo Ferrarri e Luciano Pavarotti, vejo no Google. Se eu quisesse continuar, continuaria: o whiskey vem das Ilhas Britânicas, os livros da Amazon, o café de vários lados, etc, etc (fora as coisas que vêm da China, que é quase tudo).
E, se querem saber, eu vim de Gáfete.

19.10.10

suspensão

Cada vez que no café se parte loiça, todos páram, todos riem. Aquele segundinho entre o parar e o rir é a alma do nosso negócio de viver.

18.10.10

vultos

Não vim aqui por nenhuma razão especial. Estou de passagem. Forço-me a estar de passagem. É uma maneira de forçar a rotina. A rotina força-nos e, às vezes, pensamos que podemos simplesmente inverter a situação. É o que eu estou a fazer agora. De uma maneira um tanto pueril, como veremos a seguir.
Os domingos são terríveis para as rotinas. Mas a consciência da rotina raramente chega a tempo de ser planeada e devemos aproveitá-la, mesmo que chegue a um domingo. Seria mesmo um contra senso podermos planeá-la, seria um luxo podermos recusar os domingos. Estou, então, de passagem. É o estado que escolhi para estar contra a rotina. Fui ter a uma estação de comboios. Achei normal. Sentei-me no bar da estação e afastei os óculos dos olhos. Tenho agora os óculos por cima da testa. Não distingo as feições das pessoas. Vejo vultos. Vultos de passagem.

12.10.10

a colcha indiana

A colcha indiana tem elefantes e deuses de pernas cruzadas. A colcha indiana é feita de bocados de pano, unidos com linha da mesma cor (e eu pergunto o que se pergunta quando se olha para coisas feitas à mão: quem os terá unido?). Ao centro, a colcha indiana tem dois pavões e mais acima dois papagaios. Estão todos no mesmo arbusto, dentro do mesmo bocado de pano. Esse bocado é só deles e talvez isso justifique o quão indiferentes estão ao elefante que está de pernas para o ar no bocado ao lado (mas eu também não conheço a Índia e talvez não seja tão raro assim os elefantes andarem de pernas para o ar). O elefante é verde escuro (esse em particular, porque a colcha tem mais elefantes, a Índia não é só surpresa) muito diferente das vacas ou do homem que toca flauta para as vacas ou das nuvens por detrás dos deuses, paradas pelo som da flauta do homem que toca flauta para as vacas. A colcha indiana tem pedacinhos de espelho, que nunca nos deixam esquecer quem somos, e aposto que ainda lá tem as impressões das mãos que a coseram, não sei, em Goa, em Bombaim, na fronteira pasquistanesa, sei lá, ou do outro lado, em Calcutá. A colcha indiana nunca está só, mesmo quando a casa onde está se fecha e a parede onde está escurece, a colcha indiana nunca está só. Por exemplo, agora tem-me a mim a olhar para ela.

11.10.10

o lugar do frango assado

Castafiori trabalhou até tarde. Só lhe restava, no caminho para casa, comprar um frango assado numa loja popular. Ou isso ou não jantava. Castafiori desceu à terra e entrou numa loja popular. Enquanto esperava pelo frango, viu o homem do balcão pôr-lhe à frente um pires transbordante de batatas fritas: - Quer ter a fineza de provar estas batatas?
Sabe-se como Castafiori é sensível às palavras ditas, aos pequenos incómodos, aos gestos facultativos e, porque não dizê-lo, às batatas fritas. E intimamente pensou, como mais tarde me veio a revelar: teria comido todas as batatas fritas deste mundo. E foi envolvida por esta mistura de sentimentos, onde a reconciliação terrena e o favor divino coexistem, que Castafiori chegou a casa com o frango, as batatas e a recordação de uma gentileza inesperada, tudo bens encontrados a uma sexta-feira, numa loja popular, pouco faltava para as dez da noite. O telefonema que me fez terá sido então uma espécie de homenagem ? Ignorou-o mas o certo é que o fez. Claro que só o fez depois de comer o frango e as batatas fritas. Todo? Não, sobraram as asinhas, disse com um riso adolescente.

5.10.10

Dedicatória

Aos carbonários, aos marinheiros, aos doutores republicanos, aos operários, aos suicidas, aos que estiveram na rotunda, ao que tiveram medo e sobretudo aos que não tiveram.

4.10.10

love

A rapariga tinha escrito nas costas do casaco branco: love, lo em cima, ve em baixo. Como subtítulo, dispostas no limite inferior, li ainda  estas palavras: love me I love you. Primeiro sentou-se o namorado, depois ela e eu vi-os, na mesa ao lada da minha: cada qual comeu metade de uma sandes de ovo com salsicha, ele bebeu leite com chocolate, ela uma água natural. Suponho que por estar de dieta.

1.10.10

passado

Quando é que deixamos de pertencer a um sítio? Como é que sabemos que aquele sítio já não é a nossa casa? Não sei. E, todavia, se entrarmos nesse sítio, o corpo vai dizer-nos, aos gritos ou em tímidos sussurros, diz-nos que nos tornámos passado. O corpo raramente se engana.