31.5.07

jardim zoológico

Recordação de quando a Rosário trabalhava num Infantário no lado oriental da cidade:

Estando na fila de entrada a aguardar a hora de abertura do jardim Zoológico, o jovem Fábio - 5 anos de impaciência, óculos graduados e uma louca paixão pela auxiliar-, diz :
- Ó Rosário, estamos à espera de quê? Que eles ponham lá os bichos, é?

30.5.07

alta finança

Mas tu já viste algum manager que mude uma estratégia de investimento em seis dias, pá, seis dias ? /.../ Não há procura, pá, quer dizer, não há oferta, ninguém quer vender, 'tás a perceber /.../ Veio-me com uma conversa, ai, não sei, põe por escrito, é pá, não tenho paciência /.../ Exactamente /.../ Abaixo dos 4%, o que é que queres? /.../ É perder dinheiro, pois com certeza, é perder dinheiro /.../ Mas qual mais valia?!/.../ Eu tive que lhe dizer, desculpa lá, mas as vossas questões, tenho muita pena, as vossas questões não fazem sentido nenhum, se não estão interessados, não estão interessados e nós acabamos a conversa, tás a perceber, ficamos por aqui, tás a perceber, não vamos andar a perder tempo, é ou não é? /.../ pois /.../ eu amanhã de manhã vou ligar ao outro tipo e não vou cá estar com coisas, pergunto-lhe mesmo: é pá, como é, como é que resolvemos esta merda?

29.5.07

às coisas simples

Entrei em casa e tive frio. Fui à varanda e encontrei a Vera, estendida ao sol. Que boa ideia, pensei. E que boa vida. As boas ideias fazem a boa vida. Ou será o contrário, pensei, a complicar, sempre a complicar. A gata estava só ao sol. Para apanhar sol nem os gatos precisam de complicar. Não que não possam ou não saibam filosofar, simplesmente não precisam. Pelo menos para apanhar sol. Fechei os olhos.

Vi-me estendida na varanda, ao sol, sem pensar, abri os olhos.

27.5.07

obras

Ainda que pareça enfadamento para as orelhas de V. Alteza, não deixarei isto que ao diante vai; porque são coisas de grande grandeza e folgará V. Alteza de saber e ouvir. Em as quais não falo nas obras de V. Alteza, que é coisa tão grossa, que ele só traz trezentos pedreiros e servidores; mas falarei na cidade ordinariamente.

26.5.07

25.5.07

pastilhas e arredomas de óleos [ moços a vender ]

Outra coisa há nesta cidade que não quisera pôr, por pequena, todavia quero que se saiba que andam nesta cidade quatro moços a vender pastilhas, que todos os dias vendem quatrocentos a quinhentoss rs. E tomando o meio, digo que venderão um cruzado, um dia por outro, e um moço por outro, entrando nisto também arredomas de óleos, que também vendem, que são por ano quatro mil cruzados....................................................................................................4 000 +dos

24.5.07

arroz-doce [mulheres que vendem]

Quero dizer mais, ainda que a todos é notório. Ficará para quando o vir algum estrangeiro, ou indo esta obra fora do Reino, parecerá [a cidade] muito grande como é. E digo que nesta cidade há cinquenta mulheres, entre brancas e pretas, forras e cativas, que em amanhecendo saem da Ribeira com panelas grandes cheias de arroz, e cuscuz e chícharos, apregoando. E como os meninos as ouvem da cama, se levantam chorando por dinheiro a seus pais e mães. E na verdade não é muito mau, por que com isso dão almoços às crianças. E o mesmo fazem os moços que andam a ganhar, assim brancos como negros, com isso fazem seus almoços e quentam suas barrigas. E desta maneira gastam mui presto suas panelas; em que fazem duzentos rs cada uma, e daí para cima, que posto a cento e cinquenta rs cada uma, são por dia sete mil e quinhentos rs, que valem por ano em trezentos dias, porque só aos domingos deixam de vender, cinco mil e seiscentos e sessenta cruzados.........................................................................................................5660+dos

"Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552"
João Brandão (de Buarcos)
Livros Horizonte, 1990

23.5.07

22.5.07

melões: 6.500 +dos

Quis também que se soubesse o que se gasta nesta cidade em melões, em mês e meio que dura a safra deles. Porque, por coisa de comer, passa por todas atrás, que não há juízo que baste a alcançá-lo e crê-lo. E digo que vêm de Abrantes e das lezírias de Santarém, que estão ao longo do Tejo, trezentos barcos de melões. Em os quais fazem, em cada um, seis ou sete mil rs; que, a seis mil rs o batel, valem quatro mil e quinhentos cruzados. Afora muitos que vêm de Almada e Loures e hortas de redor da cidade, e outros lugares do termo, que valem até dois mil cruzados. Que são por todo seis mil e quinhentos cruzados.............................................................. 6.500 +dos

"Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552"
João Brandão (de Buarcos)
Livros Horizonte, 1990

ao nascer do dia

DSCN5583© fatima ribeiro2005DSCN5583© fatima ribeiro2005

21.5.07

o assunto

Ao fim de três dias de viagem, pensou que nunca mais os seus olhos se encontrariam. Depois alguém chamou por ele. No dia seguinte voltaria a pensar no assunto. Mas para sua surpresa o assunto não se deixou adiar. Muitos anos mais tarde, leu num livro que a filha abandonara no sofá da sala uns versos que diziam mais ou menos isto: não se pode adiar o coração. Arrumou o livro na estante dos livros emprestados e afins, entre o guia michelin e outros poetas franceses.

20.5.07

na brincadeira

Não se lembra? Então você até se virou para mim, quando eu lhe dei a nota de 5 euros, virou-se para mim e disse-me na brincadeira: queres troco? Ó Sr. Almiro, não me diga que eu não paguei! Ontem à noite, às 10? Não me esqueci, não senhor, ai isso é que não me esqueci. O que é que me custava a mim dizer se me tivesse esquecido de pagar? Desculpe lá, ó Sr.Almiro, mas às 10 estava eu em casa a ver um filme, olhe, este aqui, por acaso até o tenho aqui, vou agora entregá-lo ao clube de vídeo. Veja lá se se lembra, eu pedi o Camel e o senhor estava ali ao canto na conversa, não ouviu logo, e eu até depois disse na brincadeira: dê-me aí um camelo, Sr. Almiro. Foi nessa altura que você me disse: e queres troco? E eu: quero troco de 50. Já se está a lembrar desta brincadeira? Eram 8, 8 e meia, quando eu aqui vim, e pedi 3 vezes o maço de tabaco, você estava ali na conversa. Às 10 já estava eu em casa a ver o filme. Lembro-me perfeitamente que vim até aqui, já trazia a nota de 5 na mão, vim até aqui e pedi 3 vezes um Camel e depois o senhor até brincou: mudaste? Fizeste bem que até é mais barato.

19.5.07

ainda W.B.Yeats

No Inverno desejamos a Primavera,
E na Primavera invocamos o Verão,
E quando ressoam as abundantes sebes
Declaramos que o Inverno é o melhor;
Depois nada há de bom
Porque a Primavera não chegou -
Não sabemos que essa inquietude que nosso sangue perturba
É apenas a sua nostalgia do túmulo.

W.B.Yeats
tradução de José Agostinho Baptista
Assírio & Alvim, 1996

18.5.07

tourada

É pá, não, importante não /.../ estou aqui no Adamastor/.../ foram p'rá praia, meu, praia, também com esta brasa /..../ então mandaram-me um sms/.../ agora /.../ a dizer que vinham a caminho, se não podíamos ir jantar, 'tás a ver, assim um jantar, p'ra eu pensar no sítio, coisa e tal, que elas depois iam lá ter /.../ ya, meu, é /.../ não sei /.../ elas são um bocado bimbas, não vais acreditar, ouve esta, mandaram-me também um sms, ouve-me esta, meu, nem vais acreditar, mandaram-me um sms a dizer que se calhar iam à tourada logo à noite /.../ à tourada! /.../ juro-te, meu, juro /.../ ya, que cena /.../ mas vens ou não vens ? /.../ com elas?! com elas, claro, é pá, que diferença é que te faz que elas gostem de touradas?

17.5.07

16.5.07

a mulher de 70 anos

Desculpa, eu tenho dias que não vejo ninguém. Ainda hoje a minha vizinha tocou lá em baixo para ver se eu estava. Como já não me via há três dias, disse-me ela./.../ E eu? Eu fui habituada? Tu achas que eu fui habituada? Eu também não fui habituada. Tinha marido, quatro filhos, a nora, os netos, e agora não tenho lá ninguém, quem é que eu lá tenho? Ninguém.

15.5.07

horóscopo

Acabo de receber o horóscopo (02:09):
"15 de Mayo 2007
Estimada maria,
Hoy tu mundo puede presentarse algo confuso. Quizás tratar de comprender qué está sucediendo no resulte la tarea más sencilla. Lo mejor será no buscar la solución a través del pensamiento racional y el proceso analítico. Lo mejor sería dejar el tema reposar por ahora y retomarlo más adelante cuando los hechos estén más aclarados. Apártate del control y del deseo de comprenderlo todo. En cambio, relájate y deja que el día te lleve donde sea."
Touchée. Vou dormir.

14.5.07

o meu concelho

Leio no jornal que a melhor média de Português, nos exames nacionais do 9º ano de 2006, pertence ao concelho do Crato. Sou natural de Gáfete, concelho do Crato, distrito de Portalegre, como me habituei a dizer desde pequenina - enfim, na medida das minhas possibilidades, já que era gaga, e gaga fui até à idade dos 13 anos. Estas ligações ancestrais têm que se lhe diga: subitamente, o dia mudou, fiquei contente e lembrei-me duma certa curva na estrada, e da cor do valado do meu avô João Teresa, que não era João Teresa, mas João Manuel Zacarias, mas isso é outra história, essa dos nomes serem e não serem nomes.
Ando a (re)escrever uma coisa e até sexta tenho que tomar umas decisões respeitantes a. Fez-me bem ler a notícia. Não posso deixar mal a malta do Crato.

mito urbano

Já vinham em fila indiana. Traziam todas uma máquina fotográfica, fora as mochilas. Olharam para um lado e para o outro e, sempre sem se deterem, entraram juntas na casa de banho do museu. Cada uma delas deu assim, e uma vez mais, o seu pequeno contributo para um mito urbano de alto de lá com ele: o de que as mulheres vão sempre juntas à casa de banho. Ali eram três e em fila indiana. Eu vi. Não é um mito.

12.5.07

"aniversário" seguido de "o processo"

Começou a cantar, interrompeu-se e disse:
- Estou cantando em minha homenagem. Mas, mamãe, eu não aproveitei bem os meus dez anos de vida.
- Aproveitou muito bem.
- Não, não quero dizer aproveitar fazendo coisas, fazendo isso e fazendo aquilo. Quero dizer que não fui contente o suficiente. O que é? Você está triste?
- Não. Vem cá para eu te beijar.
- Viu? Eu não disse que você estava triste?! Viu quantas vezes você me beijou?! Quando uma pessoa beija tanto outra é porque está triste.

in "Para não esquecer"
Clarice Lispector

- Que é que eu faço? Não estou aguentando viver. A vida é tão curta, e eu não estou aguentando viver.
- Não sei. Eu sinto o mesmo. Mas há coisas, há muitos coisas. Há um ponto em que o desespero é uma luz, e um amor.
- E depois?
- Depois vem a Natureza.
- Você está chamando a morte de natureza?
- Não. Estou chamando a natureza de Natureza.
- Será que todas as vidas foram isso?
- Acho que sim.

in "A Descoberta do Mundo"
Clarice Lispector


Amanhã faço 50 anos, não tenho outro remédio. Não sou a Clarice Lispector mas descobri baratas na cozinha. Não sou tão pessimista quanto pareço.

11.5.07

what else ?

Encontrei Madame Castafiori num jantar com amigos comuns. Talvez influenciada pelo ambiente plebeu - o jantar era de favas - Madame Castafiori saiu-se com uma que mesmo para uma plebleia, como eu, foi demais embora, admito, esteja disposta a aceitar uma atenuante: na altura do café, tirado numa daquelas máquinas Krups-Nespresso, Castafiori ter-se-á deixado embalar pela saída cadenciada do cremoso líquido. Pude ver-lhe o olhar fixo, primeiro pensei que por causa da espessura, depois percebi que por causa da bica, tecnica ou comercialmente chamada coffe outlet ou, para os consumidores da terceira idade, sortie du café. Faço aqui um parêntesis para precisar que o café foi tirado a partir de uma cápsula Capriccio, da gama Expresso, lote Premium , sim, eu documentei-me. Então nessa altura, na altura em que o líquido sai e o seu aroma se espalha no ar e concorre com o dos coentros, e todos já estão impacientes, Madame Castafiori diz como quem conclui uma conversa: - Do que eu gosto mesmo é daquela trombinha. Só podia estar a falar do nespresso, pensei, quer dizer, do coffe outlet ou sortie du café, em suma, do nespresso, não é?

10.5.07

reencontro

Acabei de ver o Puma Branca. Estava a palitar os dentes com uma daquelas tabletes metalizadas de drageias. Drageia a ti, drageia a mim. Deve tomar alguma coisa para o estômago, pensei, ou para as enxaquecas. Pela maneira como ele olha para as mulheres que comem folhadinhos e rissóis de camarão ao balcão, deve andar sempre com dores de cabeça. Agora a sério, o Puma não estava nada com bom aspecto. Coitado do Puma.

9.5.07

A Portrait of Mia as a Young Cat

DSCN0897© fatima ribeiro2003DSCN0897© fatima ribeiro2003

Foi ao ver esta fotografia, teria a Mia 6 meses e passava então férias no campo, que percebi haver alguma coisa de errado no raio da gata. Já sentira, é certo, uma vaga estranheza, mas nada que me sobressaltasse. Porém, desprovida de palavras, fiquei-me por aí. Só algum tempo depois, alguém misericordioso me perguntou: - Não achas que a tua gata nova tem qualquer coisa no olhos ? A minha gata nova? Mas o que é que tem a minha gata nova? A minha gata nova é linda. Linda. A gata não tem nada nos olhos, eu pelo menos não estou a ver, o que é que têm os olhos da gata, vá? E o que é isso de ter qualquer coisa nos olhos? Tem uns olhos lindos. Pronto. Lindos.

Eu dizia isto mas sabia que a minha posição era simplesmente insustentável. O boato tinha-se espalhado. Não me restou senão reconhecer a fraude sobre mercadoria e eventual frustação de créditos.

8.5.07

Lena, Leninha para os mais íntimos

DSC01904© fatima ribeiro2007DSC01904© fatima ribeiro2007
Esta é a gata Leninha. A Leninha já não é deste mundo, nem talvez alguma vez tenha sido. Uns meses depois da Leninha se ter ido embora, chegou a Mia, a tal que sai de campo sempre com grande elegância. Havia qualquer coisa na Mia que não batia certo. Mas eu não sabia o quê.

7.5.07

subcase

O homem rondou a mesa-expositor onde estão as malas para portáteis, na Fnac, ao pé do bar. Deu várias voltas. Sempre no sentido dos ponteiros do relógio. Ora se afastava um pouco. E olhava. A distância ajuda a julgar, terá pensado. Ora se aproximava. E inclinava-se, tocando numa mala ou outra. O preço não lhe interessava. Só o toque. O toque e o funcionamento do fecho eclair. Mas nunca falhou a direcção, sempre no sentido dos ponteiros do relógio. Tinha umas vagas parecenças com Steve Jobs, o CEO da Apple, fora não usar camisola preta e ser bem mais encorpado, quer dizer, tinha barriga, mas não lhe ficava nada mal, até lhe ficava bem. Ao Steve Jobs, por exemplo, ficaria mal, não sei, talvez por causa das camisolas pretas.

Hoje apetece-me Rimbaud

(Mars 1870)

SENSATION
Par les soirs bleus d'été j'irai dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l'herbe menue:
Rêveur, j'en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.

Je ne parlerai pas ; je ne penserai rien:
Mais l'amour infini me montera dans l'âme,
Et j'irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, - heureux comme avec une femme.

6.5.07

MPB

Nas traseiras ao vento deste sábado, estendia a roupa quando ouvi a voz do homem, um sotaque brasileiro. Era o pintor no prédio ao lado que cantava: "Quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela, gravada com o nome dela."

Deixei cair uma mola. Ouviu-se em Minas Gerais.

fita amarela

4.5.07

vexata question

Vieste da praia com sabor a sal. Se tivesses chegado uns dias antes tudo estaria bem. Acontece que o médico me recomendou uma dieta hiposódica, que palavra tão feia. Não sei o que fazer. Temo que este não seja um impasse razoável. Marcarei nova consulta. Não quero terminar assim. Ainda tenho mais uma coisa para te dizer: aposto que esta carta já existe. De tão comum parece ter perdido a importância, como o enriquecimento sem causa: a praia, o sal, o corpo. E o sol, também o sol. Uma vexata question.

3.5.07

de ouvido

Hoje, assim que entrei, ouvi a máquina. Só pelo som vê-se logo que é boa. E toda em inox. Acrescento, porém, um comentário: talvez este dia de Primavera merecesse melhor post. Mas é o que se pode arranjar. E, além disso, não deixa de ser verdade que a máquina é um espectáculo! Foi exactamente isso que o Sr. Almiro me disse assim que entrei e ouvi a máquina. Só pelo som.

2.5.07

idem idem aspas não

O homem não parou de escrever, pelo menos enquanto lá estive. E eu, enquanto lá estive, também não. O homem não disse uma palavra. Eu também não. O homem tinha escolhido um lugar com vista para o jardim e eu, imagine-se, também. Mas a situação não se fazia só de semelhanças. Havia pelo menos uma diferença fundamental: ele escrevia num portátil cinzento, eu numa agenda azul da papelaria fernandes. Mais: ele tinha os óculos na ponta do nariz, eu tinha os meus em cima dum dossier aberto sobre a mesa. Eu não me ri uma única vez e ele ria de vez em quando. Reconheço agora que isso chegou a perturbava-me. Ele parava de ler o que tinha acabado de escrever e ria-se. Eu, já disse, não me ria nem estou a ver-me a rir numa circunstância dessas. Não acho próprio. É feio uma pessoa rir-se das pessoas enquanto está a escrever sobre elas.