13.5.05

hoje

Hoje é sexta-feira, treze. Hoje é o dia dos meus anos. Hoje parto para Moçambique, hoje não olharei para trás.

moulinex

Nessa manhã fizera contas à vida.
Uma insónia despertara-a com a cor da madrugada. Pisou o soalho com cuidado e fumou um cigarro à janela, virada para as traseiras adormecidas, naquela parte oriental da cidade.
Por um momento hesitou, mas o cheiro do cigarro acabado de fumar fizera-a tomar uma decisão: não iria voltar para a cama.
Fez café na velha moulinex que a mãe lhe oferecera uma vez pelo Natal. Vivia então em Benfica, num rés-do-chão de paredes cor-de-mel. O aroma do café invadiu a casa. O dia tinha começado.

12.5.05

o leste, o oeste e o brasil

Avistei-os mal saí do metro. Para dizer a verdade, primeiro avistei a caixa. Depois sim, vi-os. Um dum lado e outro doutro transportavam a televisão numa caixa em papel canelado que tinha impressa a azul a marca japonesa e um desenho omnipresente.
Os dois homem caminhavam em passo largo, falavam, pareciam contentes. O da esquerda era mais baixo, tinha o cabelo claro. Ambos usavam calças de gangas e camisas de verão. Não tinham parado de falar desde que os vi. E tudo levava a crer que já vinham a falar antes.
Imaginei-os emigrantes. Sim emigrantes, mas emigrantes donde? De leste. De leste ou do Brasil: ao aproximar-me vi que o loiro do cabelo não eram uniforme, apresentava uma espécie de nuances feitas com escassos meios e menor técnica, pensei.
Como eu não transportava nenhuma televisão, naturalmente aproximei-me um pouco mais. Mas não conseguia perceber o que diziam. Eram 4 e meia e a rua é das mais movimentadas da cidade.
Imaginei-os em frente à televisão, a amarrotar, uma após outra, as latas de cerveja compradas no lidl. Em chinelos e calções amarelos se fossem brasileiros, ainda com os blusões vestidos se fossem de leste. Nisto pararam, pousaram na calçada a caixa da televisão de 22 polegadas e trocaram de posição: o que estava na esquerda foi para a direita e o que estava na direita não teve outro remédio senão ir para a esquerda. Este interlúdio foi suficiente para que eu os ultrapassar. Ouvi-os falar: leste.

11.5.05

metacognição

Para fazer um intervalo, peguei num livro sobre Física, que ali estava desde manhã, exposto nas novidades da biblioteca, mesmo à minha frente. Pensei que tivesse bonecos. Se tivesse bonecos já me distraía um bocadinho, não é? Foi só esticar o braço. Pois bem, em vez de bonecos, e entenda-se por bonecos os desenhos, as fotografias, os esquemas, as gravuras, as fórmulas, enfim, tudo o que estiver impresso sem precisar de ser lido, em vez de bonecos encontrei diálogos. Diálogos num livro de Física? Havia é claro o grande inconveniente de ter que os ler. Mas não se pode ter tudo. Foi um belo intervalo.

E. - Ouçam lá! A gente quando está a pensar nesse plano tem consciência de que está a pensar ?
....
E. - Ou é assim uma coisa que ocorre automaticamente sem a gente se aperceber ?
N. - Às vezes, quando uma situação é nova, um gajo tem de estar a pensar muito mais.
E. - Mas como é que tu tens consciência de que estás a pensar ?
N. - Como é que tenho consciência ?
...
E. - Por exemplo, tu estás a pensar no plano. Como é que sabes que estás a pensar no plano e não, por exemplo, na praia ?
N. - Pronto! Estou à procura duma resposta, estou a pensar fazer aquilo...
E. - Quando tu estás a resolver um problema, sozinho, achas que se está a travar uma espécie de diálogo ?
N. - Estou a falar comigo mesmo: "Agora tenho de fazer aqui assim. Depois tenho de pegar naquele..."
E. - E ouves-te ?
N. - Ouço (rindo)
E. - Mas como é que te ouves, se tu não falares ?
N. - Às vezes falo ! (ri-se)
E. - Vocês têm ideia de que há qualquer coisa lá dentro, na vossa cabeça ?
R. - Sim, a funcionar.
N. - Sim.
E. - E o quê, o que é que vocês chamariam a isso ?
N. - As sinapses.

a camisola

INFANTÁRIO DA ROSÁRIO, EXT-MANHÃ

Ao ver chegar o rapazinho pela mão daquela mulher sem graça, socorreu-se de umas palavras amenas, já testadas noutros embates matinais:

- Tão bem que fica essa camisola ao Ricardo!
- Ai Rosário, não é por ser meu filho, mas ao meu Ricardinho tanto ficam bem as cores claras como as cores escuras.

10.5.05

(quase) despedida


DSCN7881© fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

correspondência (também)


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(ainda) Areeiro-Amadora-Areeiro


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no metro

Entraram no Saldanha e sentaram-se em frente a mim. Ele, um rapaz de cabelos compridos, escorridos, risco ao meio. Barba a dissimular umas borbulhas vermelhas. Ela usava saias acima do joelho e umas meias bordeaux floridas. Não falaram nem olharam um para o outro. Vestiam os dois de escuro. Ele trazia a tiracolo um saco verde do exército, ela um saco talvez indiano. Não me lembro dos brincos dela, mas lembro-me dum casaco preto de malha lisa. Quase ao chegar à estação de Entrecampos, ela encostou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos.

9.5.05

linha 2


DSCN7837© fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

5.5.05

uma dentadinha paranormal

A perplexidade invadiu a vida da Madame Castafiore. Hoje está arrependida de ter passado por ali, pelo lado obscuro da cidade, quando teria bastado uma palavra, vá lá, três, para o taxista ter virado à direita. Se o tivesse feito, em vez de virar à esquerda, não teriam encontrado aquela camioneta e aquele camionista a descarregar duas sacas de batatas e umas cebolas velhas diante da mercearia. E se aquelas batatas e aquelas cebolas velhas não tivessem tido aquele destino, também não teriam ficado a marcar passo mais à frente, esperando que o homem do gaz acabasse alegremente de fazer marcha atrás como se a rua lhe tivesse sido deixada em herança por uma tia da província. E se o Ken tivesse tido como instrutor Mr. Brown e tivesse feito marcha atrás segundo os preceitos do Código, lentamente sim, senhor, mas no menor espaço possível, teriam passado pela paragem antes, muito antes do autocarro lá chegar e, desse modo, nunca Madame Castafiore a teria visto, ou melhor, os teria visto. Porém, viu-a, ou melhor, viu-os e desde então a imagem do que viu – uma mulher, ou melhor, uns brincos, ou melhor ainda, os brincos – nunca mais a largou, a ela, Castafiore.

Os brincos são constituídos, cada um, por duas argolas em ouro. Uma é uma argola simples, na outra existe um pendente, também em ouro, em cuja base, sempre em ouro, está incrustado um pequeno dente, um dente de leite.

Em resumo, temos um dente humano, que por definição pertenceu a um ser humano, a ser exibido, transportado, passeado, arejado por outro ser humano.

A partir do momento em que ela, Castafiore, tomou consciência da condição humana do dente, um turbilhão de pensamentos a assaltou, a ponto da existência se ter tornado um tanto fatigante. Mas todos eles, os pensamentos, derivavam ou coincidiam para uma questão particular: a quem teria pertencido aquele dente?

À própria, isto é, à dona dos brincos, que teria encontrado o dente de leite numa caixinha bege da ourivesaria lordelo, onde a mãe o guardou há quarenta e nove anos atrás ? A um filho, por exemplo, o filho do meio, o seu preferido, que veio mais tarde a partir um dente incisivo quando trincava com mais entusiasmo um teclado de entrecosto num orbitur, algures no litoral alentejano? Ao marido, sim, porque não, ao próprio marido que durante anos usou o dente ao pescoço juntamente com a chapa do grupo sanguíneo, num fio de prata que comprou na tropa e de que ela se recorda muito bem, pois se ele nem na lua de mel largou o fio, o dente e a chapa, e de que a muito custo só anos mais tarde abandonou, subornado por um cordão de ouro comprado a prestações no Martim Moniz ? A um afilhado nascido na serra como ela e que depois emigrou para a Alemanha mas que nunca se esquece de lhe telefonar pelo Natal? A um netinho, por exemplo, o neto mais velho que não desfazendo tem os olhos claros como o pai dela, e que lhe dá aquele ar fino ?

Seja a quem for, e todas as hipóteses são comoventes, o que transtorna Madame Castafiore é, como direi, não quero ser brutal nem prescindir por um instante da nobre capacidade de compreensão, mas há uma certa promiscuidade pressuposta naquele dente, dum lado e doutro da corrente, dum lado e doutro como os carapaus fritos, no ex e no actual proprietário, duma boca humana para uma orelha humana. Acho que Madame Castafiore tem razão. E depois há sempre a hipótese do sobrenatural ou a das energias ocultas ou a dos pequenos anjos e demónios nos visitarem de mansinho e devolverem a funcionalidade plena àquele dente e a todos os dentes de leite desactivados e ultrajados que percorrem em orelhas alheias as ruas portuguesas, ou os que jazem envoltos em algodão amarelecido, ou os simplesmente esquecidos em açucareiros chineses, cuja asa partida numa mudança de casa destinou a depósito de pequenas coisas inúteis, ou os perdidos em gavetas de escrivaninhas que só o acaso restitui à luz do dia, ou os que servem hoje para meter medo a crianças de chuchas chico dependuradas sobre babetes com restos de sopa de cenoura, etc., etc. Pelos cálculos de Madame Castafiore, só na área metropolitana de Lisboa deve haver milhares.

3.5.05

a mulher da pradaria

A minha vizinha do andar de baixo, em linguagem de arrendamento urbano, a minha vizinha de baixo, detesta as chamadas tarefas domésticas, ou a lida da casa, como lhe chama a mulher do rés-de-chão do prédio ao lado, dona dum gato pardo que observa o universo enquanto ela ajeita um gancho. Ao pressentir a minha passagem, dirá: ai menina que dores nas costas, estou a ver que não acabo a lida da casa, dixit. Não sei bem porquê, também eu prefiro a expressão, talvez por me fazer lembrar o Lidl, instituição tutelar da minha vida doméstica.

Pois ela, a minha vizinha de baixo, não gosta de cozinhar, pois ela não gosta de aspirar, pois ela não gosta de passar a roupa a ferro, pois ela não gosta de pôr a loiça suja na máquina nem sequer de rodar o botão para pôr a máquina a trabalhar. Não, não e não, três vezes não, não as vezes que for preciso, a minha vizinha de baixo detesta as tarefas domésticas.

Há todavia uma coisa que a minha vizinha recomenda às empregadas que não façam, que nunca obriga as filhas a fazer, há uma coisa que a minha vizinha de baixo não dispensa, uma coisa que adora fazer: estender a roupa.

E como é que uma coisa tão básica, não sei como dizer, porque é que uma coisa tão simples, e às vezes tão irritante estatisticamente, sobretudo para quem deixa cair mais de quarenta por cento das molas, como é que uma coisa tão Caneças look pode deixar a minha vizinha de baixo à beira de um êxtase um pouco menos que celestial?

Interroguei-a a esse propósito.

Ainda não caí em mim. Não que a explicação não tenha lógica, claro que tem. Mas fui apanhada de surpresa. E senti-me mesmo um nadinha estúpida. É assim que eu me sinto sempre que as explicações não me passam pela cabeça. Estúpida, estúpida, estúpida. Bastava ter parado por um segundo, claro que tem lógica, e mais, muito mais do que lógica: tem um potencial poético merecedor da atenção dum poeta, pelo menos, portuense, e embora padeça de algum desfasamento geopolítico e embora historicamente deslocada a explicação faz sentido, eleva o horizonte estratégico de um prédio que, sem isso, se diria vulgar, cria todo um ambiente que em muito ultrapassa a velha polémica do caixote do lixo (afinal, quem põe o caixote do lixo da rua e quem repõe o caixote do lixo no prédio, eis a questão), um pathos, uma âncora de sugestão que me pode deixar assim, pouco precisa e volátil, mas que confere à vida quotidiana do número 8 uma dimensão cósmica.

A minha vizinha de baixo adora estender a roupa porque se imagina nada mais nada menos do que na pradaria, repito, na pradaria.

Convém explicar que o nosso prédio se situa no topo de uma espécie de colina rectangular, cuja inclinação ligeira nos põe, repensando agora todas as coisas, a nós, número 8, acima dos outros mortais, e suficientemente longa para não vermos a mulher do prédio do extremo oposto a sacudir o pó, quer dizer, o número 8 tem horizontes.

Ao entardecer, o céu fica laranja, rosa, salmão, conforme as leis e os caprichos da natureza. Os aviões rasgam o mundo diante dos nossos olhos com uma frequência que nos poderia servir para aulas práticas, caso quiséssemos ali instalar uma escola de controladores aéreos.

Os elementos que o nosso prédio atrai enchem a nossa glamorosa vida de contemplação e aventura. O vento faz baloiçar as cordas das roupas e desde logo as próprias roupas. Costumo ser fustigada, enfim, não eu pessoalmente, mas os vidros da minha marquise, com os lençóis do andar de cima. Há um, sobretudo um, verdinho com umas risquinhas branquinhas que me põe doida, talvez sejam as bainhas com excesso de dobras, sei lá, as operárias têxteis já não são o que eram desde que ao pesadelo das falências fraudulentas se veio juntar o pesadelo chinês. O tal verdinho bate com tal impacto nos vidros que nos dias de maior ventania penso seriamente num seguro de vida ou mesmo numa extensão ao seguro de acidentes de trabalho, já que a lida da casa também é trabalho.

Bom, mas não quero entrar em polémicas jurídicas e volto à minha vizinha de baixo. Ao entardecer, não há cá soturnidades nem melancolias tais. Ao entardecer, há apenas roupa lavada, seca ou húmida, mas não roupa metafísica. Ao entardecer, no nosso prédio, há uma bela vista sobre a pradaria e, se acaso alguém, entrando pela cozinha adentro, perguntar à minha vizinha de baixo debruçada sobre o estendal:

- Então o teu cowboy está para chegar?

ela responderá com a coragem resignada de um certo tipo de mulher da pradaria:

- Hoje é dia de índios.