5.5.05

uma dentadinha paranormal

A perplexidade invadiu a vida da Madame Castafiore. Hoje está arrependida de ter passado por ali, pelo lado obscuro da cidade, quando teria bastado uma palavra, vá lá, três, para o taxista ter virado à direita. Se o tivesse feito, em vez de virar à esquerda, não teriam encontrado aquela camioneta e aquele camionista a descarregar duas sacas de batatas e umas cebolas velhas diante da mercearia. E se aquelas batatas e aquelas cebolas velhas não tivessem tido aquele destino, também não teriam ficado a marcar passo mais à frente, esperando que o homem do gaz acabasse alegremente de fazer marcha atrás como se a rua lhe tivesse sido deixada em herança por uma tia da província. E se o Ken tivesse tido como instrutor Mr. Brown e tivesse feito marcha atrás segundo os preceitos do Código, lentamente sim, senhor, mas no menor espaço possível, teriam passado pela paragem antes, muito antes do autocarro lá chegar e, desse modo, nunca Madame Castafiore a teria visto, ou melhor, os teria visto. Porém, viu-a, ou melhor, viu-os e desde então a imagem do que viu – uma mulher, ou melhor, uns brincos, ou melhor ainda, os brincos – nunca mais a largou, a ela, Castafiore.

Os brincos são constituídos, cada um, por duas argolas em ouro. Uma é uma argola simples, na outra existe um pendente, também em ouro, em cuja base, sempre em ouro, está incrustado um pequeno dente, um dente de leite.

Em resumo, temos um dente humano, que por definição pertenceu a um ser humano, a ser exibido, transportado, passeado, arejado por outro ser humano.

A partir do momento em que ela, Castafiore, tomou consciência da condição humana do dente, um turbilhão de pensamentos a assaltou, a ponto da existência se ter tornado um tanto fatigante. Mas todos eles, os pensamentos, derivavam ou coincidiam para uma questão particular: a quem teria pertencido aquele dente?

À própria, isto é, à dona dos brincos, que teria encontrado o dente de leite numa caixinha bege da ourivesaria lordelo, onde a mãe o guardou há quarenta e nove anos atrás ? A um filho, por exemplo, o filho do meio, o seu preferido, que veio mais tarde a partir um dente incisivo quando trincava com mais entusiasmo um teclado de entrecosto num orbitur, algures no litoral alentejano? Ao marido, sim, porque não, ao próprio marido que durante anos usou o dente ao pescoço juntamente com a chapa do grupo sanguíneo, num fio de prata que comprou na tropa e de que ela se recorda muito bem, pois se ele nem na lua de mel largou o fio, o dente e a chapa, e de que a muito custo só anos mais tarde abandonou, subornado por um cordão de ouro comprado a prestações no Martim Moniz ? A um afilhado nascido na serra como ela e que depois emigrou para a Alemanha mas que nunca se esquece de lhe telefonar pelo Natal? A um netinho, por exemplo, o neto mais velho que não desfazendo tem os olhos claros como o pai dela, e que lhe dá aquele ar fino ?

Seja a quem for, e todas as hipóteses são comoventes, o que transtorna Madame Castafiore é, como direi, não quero ser brutal nem prescindir por um instante da nobre capacidade de compreensão, mas há uma certa promiscuidade pressuposta naquele dente, dum lado e doutro da corrente, dum lado e doutro como os carapaus fritos, no ex e no actual proprietário, duma boca humana para uma orelha humana. Acho que Madame Castafiore tem razão. E depois há sempre a hipótese do sobrenatural ou a das energias ocultas ou a dos pequenos anjos e demónios nos visitarem de mansinho e devolverem a funcionalidade plena àquele dente e a todos os dentes de leite desactivados e ultrajados que percorrem em orelhas alheias as ruas portuguesas, ou os que jazem envoltos em algodão amarelecido, ou os simplesmente esquecidos em açucareiros chineses, cuja asa partida numa mudança de casa destinou a depósito de pequenas coisas inúteis, ou os perdidos em gavetas de escrivaninhas que só o acaso restitui à luz do dia, ou os que servem hoje para meter medo a crianças de chuchas chico dependuradas sobre babetes com restos de sopa de cenoura, etc., etc. Pelos cálculos de Madame Castafiore, só na área metropolitana de Lisboa deve haver milhares.