30.12.10

singing in the rain

Esperava o toner para uma impressora, encomendado na net, e recebi uma pequena sombrinha amarela, graciosa e infantil. O toner passou por Vila Nova de Famalicão, soube depois. Mas na altura em que o soube já o toner estava em Puerto de Santa Maria, Cadiz. O laser e a fantasia andam à solta na Península Ibérica, pensei, mais o dia e o mundo pertence-lhes.  É o mercado. Don't worry, disseram-me. Isso teve em mim uma acção libertadora. Imediatamente me imaginei a receber um mail de Dunedim, estado de Otago, Nova Zelândia: your toner is so nice, you can stand under my umbrella.

29.12.10

Ai, doce pensamento meu,
quando me levarás onde te envio eu!
Anónimo
início séc.XVII
Romancero general

28.12.10

alegria passageira

Ontem ao cair da noite, a alameda cheirava a relva cortada. Dei quatro voltas e fiquei sem fôlego.

27.12.10

dia de natal

Ali estava ele na estação. Parecia nervoso. E se ela já tivesse chegado? E se ela não tivesse esperado? Desde sempre ouvira histórias sobre mulheres. Caprichosas, cruéis, infantis. As mulheres não esperavam. Mas mesmo que essas garras de veludo fossem excluídas dos cálculos, as mulheres esperavam, sim, mas em casa. As mulheres não esperavam em estações de comboios. Era uma espécie de jogo. E agora ali estava ele, nervoso, a contar os passos no cais, os olhos a fugirem para o relógio de minuto a minuto. E se ela já tivesse chegado? Finalmente ouviu o aviso, o comboio procedente, etc., etc.,  circulava com atraso. Terá esta voz rouca que anunciava, a que parecia faltar o ar, evitado um crime passional no dia mais celebrado no mundo ocidental?

25.12.10

boas festas

Lá em cima, na minha terra, tenho mil metros à volta da casa, já lhe tinha falado disso, lá em cima, ao pé de Aveiro, tenho mil metros quadrados à volta da casa. Tenho lá 10 macieiras - golden, starking e reineta, mas a maioria é golden, tenho pelo menos umas cinco golden, em dez, 'tá a ver, é metade -, tenho 3 pereiras, 1 tangerineira, que pus lá o ano passado, nunca pensei que pegasse, 2 laranjeiras, 3 figueiras, 6 marmeleiros, tudo se dá naquela terra, e ainda são mil metros quadrados.  Olhe, tenho uma figueira tão grande, tão grande, as raízes vão daqui até onde está aquele carro encarnado, não sei se está a ver, que grande figueira. Já não posso com figos, é que já nem os posso ver, quanto mais comer. Vou mandá-la cortar, para a Páscoa vou mandá-la cortar. E já que estamos com esta conversa, sabe quem é o maior produtor mundial de maças? Eu digo-lhe, a China, meu amigo, a China.

23.12.10

Marcar como lida.

"Escrever é descobrir um segredo e comunicá-lo."
Maria Zambrano.
Marcar como lida.
"Nos habitons notre corps bien avant de le penser."
Albert Camus.
Marcar como lida.
"Porque razão, quando alguém pensa matar-se, se imagina morto, não para si próprio mas para os outros?"
Luigi Pirandello.
Marcar como lida.
"Where I am there is no one but me, who am not."
Samuel Beckett
Marcar como lida.
"O batom deixa acima de tudo uma nódoa gordurosa; logo, trate da gordura primeiro."
Guia da Limpeza de Nódoas
Marcar como lida.
Feliz Natal!

21.12.10

cavalo e cavaleiro

A criança brinca com um cavalo sobre a mesa do café. Cabe-lhe na mão fechada. Mas a criança fá-lo deslizar num infindável trote, contorna chávena e pires, contorna inclusive uma migalha de torrada, o pacote de açúcar aberto, os dedos da avó ao lado do jornal. A mesa torna-se escassa e cavalo e cavaleiro avançam a galope e escalam a parede ao lado da mesa. Mas eis que algo se avista. A criança encosta a orelha à parede e escuta em silêncio. Cá para mim eram índios.

20.12.10

Merry Christmas, Madame Castafiori!

Cá e lá c'est noel. Comprei um paté de nozes e vinagre balsâmico ao preço do vinho do porto. No dia seguinte, senti-me culpada.  Tudo me pareceu triste, ao acordar. A roupa estupidamente estendida, as ondas que, nestes dias, se formam no alcatrão e que as rodas dos carros lançam contra as pessoas nos passeios, as laranjas húmidas expostas à porta do chinês, os pombos recolhidos entre os andares, tudo imagens a invandir o meu triste cérebro, nesta cidade temporariamente triste, onde as pessoas abrem obedientes os guarda-chuvas, como se dissessem, Se a nossa única certeza - o sol - nos abandona, a esperança ou o desespero deixam de fazer parte das nossas vidas. Foi com este estado de espírito que telefonei a Castafiori. Castafiori foi condescendente. Disse para eu não pensar na chuva nem nas paragens dos autocarros. Disse-me também para eu não pensar no preço dos chocolatinhos com trufas, que me esqueci de mencionar acima. Para Castafiori, só uma grande falta de prática ou uma completa ausência de sentido social poderia justificar a culpa que me assaltou ao amanhecer. "Pensar nos preços não lhe faz nada bem", concluiu, e acrescentou após breve pausa,"mas não serei eu quem a vai censurar, é monótono ser sempre pobre". Merry Christmas, Castafiori.

17.12.10

a partilha de informação

- então parece que descobriram que a mãe era culpada
- não me diga
- sim, descobriram, ai, como é que se chama, acho que foi por satélite, mas os ingleses já sabiam
- por isso é que não queriam deixar lá ir a judiciária portuguesa nem que eles entrassem, agora passou-me, como é que aquilo se chama?
-facebook?
-não, mas daqui a bocadinho já me lembro, olhe, sabe uma coisa, eu digo que foi ela, cá para mim foi ela
-acha?
- estava bêbada e naquele desespero sufocou a miúda

16.12.10

to swim

Hoje, ao pequeno-almoço estrelei um ovo, convencida que nesse gesto estava o início de uma bela amizade com o espírito inglês e um modo seguro de conjugar qualquer verbo irregular. Não percebo porque é que nada disso aconteceu. Bom, mas o dia ainda não acabou.

15.12.10

post instantâneo

Ontem à noite, disse para mim própria, Não me vou deitar, sem escrever um post. De modo que este é o post escrito ontem à noite, e que não passou daqui. Por falta de inspiração? Por excesso de dever? Adormeci e acordei com igual falta de fundamentos. E agora basta. Não vou dizer nada que possa ser usado contra mim.

14.12.10

nevoeiro

é preciso sair de casa antes que o nevoeiro feneça

13.12.10

fiado

Disse, Eu já não escrevo versos.  Passei o resto da manhã com a frase na cabeça. Até que, ao entrar num café, percebi tudo.  Encostado à box da tvcabo, li num azulejo, Aqui não se vende fiado, que é como quem diz, Aqui não se escreve versos, tal como ele tinha dito, como se dissesse, Aqui não se vende fiado.

12.12.10

chama imensa

Saí à rua. Da janela, já vira o céu cinzento, e uma calçada enegrecida por uma espécie de chuva que caía, e na grande rua perpendicular, os carros a passarem sorrateiros. Saí cinzenta, resignada, com as mãos nos bolsos do blusão de penas. Ao virar da esquina, um homem com um boné do Benfica. Lembrei-me que hoje há jogo a eliminar. A malta anda chateada, mas há alturas em que se tem de sair à rua assim, com a porcaria do boné e conquistar o mundo, e começar a conquistá-lo ali mesmo, à esquina da rua.

10.12.10

The Great Day

Viva a revolução e mais tiros de canhão!
Um mendigo a cavalo chicoteia um mendigo a pé.
Viva a revolução e o canhão que voltou!
Os mendigos mudaram de lugar, o chicote ficou.
W.B.Yeats

9.12.10

o 158

Aí há uns tempos largos, ligo a televisão num sábado à noite e ouço isto já a caminho da cozinha: "- Que belo toiro de Veiga Teixeira". Volto para trás. Vejo primeiro um número, depois umas patas, depois uma cabeça imponente. Olho e concordo comigo mesma, Que belo toiro que é este 158. Mas eu sou pessoa para ver imperfeições em tudo e vi imediatamente que os cornos do touro estavam tortos, estavam um bocado afastados, pelo menos aos olhos duma leiga. Pensei, ó 158, esse par de cornos ainda te vai dar problemas. Mas imediatamente discordei de mim mesma:  se, seja como for,  o 158 vai morrer dali a bocado, que diferença pode fazer os cornos estarem um bocado tortos? Nisto o cavaleiro crava uma farpa no animal, não sei se se diz assim, farpas, touro, farpas, Ramalho, farpas, farparemos, farparás. Estava eu nestas divagações e vejo o animal andar por ali um bocado à toa. É uma coisa que me incomoda nas touradas. Depois percebi. O cavaleiro tinha desaparecido. Aumentei o som da televisão. O cavaleiro tinha ido mudar de cavalo. Mudar de cavalo?  Olhei para o 158 enquanto ouvia o comentador, O toiro aguenta perfeitamente mais um ou dois ferros. E eu pensei, e então o cavalo, não aguenta? Olhei para o 158 pela última vez, interrogando-me estupidamente, Para que serve a beleza, 158? Mudei de canal.

8.12.10

gatos, gatas e gatinhos

Andam gatos nas traseiras. A gata só se ouve ao anoitecer. Já sei que antes da Primavera haverá gatinhos a aprender a andar sobre os telhados e antes do Verão vê-los-ei desaparecer. Depois, quando em pleno Agosto me levantar de madrugada, hei-de ver um jovem gato a beber a água que a vizinha do primeiro andar lhes põe numa embalagem de gelado. Nessa altura, vou pensar: olha, lá está o gato que nasceu este Inverno.

6.12.10

laranja

descasquei uma laranja com as mãos e mordi-a; que mais se pode fazer no inverno?

3.12.10

exercícios (nunca mais)

nunca mais como ostras
nunca mais rezei
nunca mais é dia
nunca mais atravessei o rio sem medo
nunca mais chega o correio
nunca mais  choveu como no dia em que o telegrama chegou
nunca mais lá fui
nunca mais ninguém saberá de ti
ou é hoje ou nunca mais

2.12.10

je voudrais que mon amour meure

queria que o meu amor morresse
e a chuva chovesse sobre o cemitério
e sobre mim pelas ruas onde eu andar
chorando aquela que julgou amar-me
Samuel Beckett
trad.:M.E.Cardoso

1.12.10

feriados

Os feriados parecem domingos, disse eu. Castafiori discordou. Os feriados parecem sábados, disse ela. Saí à rua. Concordei. Os feriados parecem sábados, disse eu. Voltei para casa.