26.5.09

martini

Quem diria? Ainda duram nos pés do Puma Branco as pumas pretas, marcadas a branco, que me fizeram dar o nome de Puma Branco ao Puma Branco. Eu ponho nomes a tudo e a todos. Nunca gostei que me chamassem 'coisinha', ó coisinha queres jogar ao mata? Não, não quero! Sai-me da frente. Já! Antes que te estraçalhe o ring! Isto sou eu a imaginar porque quando em miúda era tão gaga que não conseguia dizer duas palavras seguidas quanto treze. Treze palavras, três das quais de elevado grau de dificuldade: 'quero' e 'frente' e 'estraçalhe', não contando com as armadilhas avulsas como 'sai-me' e 'que te'.

Por isso, quando, já no liceu, me passou a gaguez, vinguei-me e passei a fazer um uso nem sempre moderado das palavras. Hoje não há gato vadio que se cruze comigo e fique na mesma, sem nome. Vi o Puma antes de almoço, no café. Meteu a mão ao bolso e tirou 34 moedas. Pagou o martini, saíu a chocalhar os rendimentos, eu olhei para o relógio. Era meio dia e dez. O martini das 12:10. Antes já lá tinham estado os homens do talho, a despachar cada qual o seu martini. O martini das 11:45. Agora vou sair, mas há-de chegar alguém e pedir um martini. Os do banco em frente, talvez. O martini das 12:20.

É tal o movimento que se poderia organizar o serviço martini como um horário de comboios. Desculpe, agora só tem martini às 11:10. O das 11:20 sai de Santa Apolónia, ora deixe-me ver...não, aos domingos e feriados, não. Ou então: partiu mesmo agora, mas não se rale que está mesmo a chegar outro, a esta hora estão sempre a passar.

Eu não bebo martinis. Mas qualquer dia chego ao café e peço um. Às 12 em ponto. O martini é uma bebida de horas certas.

25.5.09

arena

Num momento em que a actividade cinematográfica e o cinema português parecem tão ameaçados, em que constantemente se põe em causa a sua existência e necessidade, a Palma de Ouro para a Curta Metragem de João Salaviza é de enorme, enorme importância para a comunidade cinematográfica. Não vi o filme, nem sei se as minhas afinidades com o João - que eu conheço desde criança, sempre a querer ser realizador - passam daqui: de pertencermos ao mesmo sítio e partilharmos a mesma ambição. Mas estas são suficientes para lhe estar agradecida, a ele e aos Filmes do Tejo, a produtora do filme. Parabéns!

21.5.09

o livro na mão CONT

imagem:
uma mulher vestida de preto com um livro na mão caminha pela alameda do cemitério

Pergunta-me a Jeanne: - Vai lendo ou tem o livro debaixo do braço? Eu digo: - É uma boa pergunta. A resposta é: leva o livro na mão. Mas já que a pergunta está feita, aproveite-se: sim, mas também pode ir a ler. E se não for a ler, saberá ler? O vestido é comprido, talvez seja mesmo uma personagem do século XIX e use um chapéu, embora por baixo do chapéu o cabelo esteja um nojo. And so one. Agora que começámos, não vamos acabar aqui.

20.5.09

o livro na mão

imagem: uma mulher vestida de preto com um livro na mão caminha pela alameda do cemitério

16.5.09

ritmo

Hoje é sábado, e o meu biorritmo não é famoso. Apenas o nível intelectual está em alta, como a cimpor no psi 20. Diz assim: "tendrás una visión objetiva de los hechos que te circundan!". E eis-me aqui, tão perspicaz. Hoje é sábado.

13.5.09

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos

11.5.09

o tema

Não percebi. Está-me a perguntar sobre o que é que o livro é? Alguém quer perguntar mais alguma coisa? Muito bem. O livro é sobre uma mulher com um carrapito. Exactamente, uma mulher com um carrapito, e sinceramente não percebo os sorrisos. Não sabem o que é uma mulher com com carrapito? Está a dizer que sabe? Claro, sabe perfeitamente. Aliás, se me dissesse que não sabia o que era uma mulher com um carrapito eu respondia-lhe, ou pelo menos pensava em responder-lhe, que estava a mangar comigo. Quem é que não sabe o que é uma mulher com um carrapito? Então voltamos ao princípio, quando eu começei por dizer que a pergunta é ociosa. Porquê? Porque o livro é sobre uma mulher com um carrapito! Não há livros sobre mulheres com um carrapito? Não havia. Até terem escrito este. Até eu ter escrito este, se quer pessoalizar a coisa.

8.5.09

s.m.

A palavra do dia no FLIP online é funchal (funcho + -al) s. m. Plantio de funchos. = fiolhal

7.5.09

impasse

Os relatos divergiam tanto que as divergências convergiam: voltávamos sempre à estaca zero.

6.5.09

equívoco embaraçoso

Não compreendo a minha Mia, parece-me que só tem um objectivo na vida - comer. Tenho dificuldades em compreender isso. Recomendaram-me Montaigne. Pensei tratar-se duns biscoitos especiais para gatos com tendência para engordar. Biscoitos Montaigne, soou-me bem, mesmo muito bem, Montaigne, biscoitos Montaigne. Só tarde percebi que era o próprio. "Acaso não é uma prova singular de imperfeição não conseguirmos assentar o nosso contentamento em coi­sa alguma, e que, mesmo por desejo e imaginação, esteja fora do nosso poder escolher o que nos é necessário?" Mia, prepara-te: no próximo Inverno leremos Montaigne.

5.5.09

(to be, or not to be)

To be, or not to be: that is the question:
Whether 'tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? To die: to sleep;
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to, 'tis a consummation
Devoutly to be wish'd. To die, to sleep;
To sleep: perchance to dream: ay, there's the rub;
For in that sleep of death what dreams may come
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause: there's the respect
That makes calamity of so long life;
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor's wrong, the proud man's contumely,
The pangs of despised love, the law's delay,
The insolence of office and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscover'd country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o'er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pith and moment
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action. - Soft you now!
The fair Ophelia! Nymph, in thy orisons
Be all my sins remember'd.

William Shakespeare

Ser ou não ser, essa é a questão: será mais nobre suportar na mente as flechadas
da trágica fortuna, ou
tomar armas contra um mar de obstáculos e, enfrentando-os,
vencer?
Morrer — dormir, nada mais; e dizer que pelo sono se findam as dores,
como os mil abalos inerentes à carne — é a conclusão que devemos buscar.
Morrer — dormir; dormir, talvez sonhar — eis
o problema: pois os sonhos que vierem
nesse sono de morte,
uma vez livres deste invólucro mortal, fazem cismar.
Esse é o motivo que prolonga a desdita
desta vida.

1.5.09

(a escala do olhar)

O que nos chama para dentro de nós mesmos
É uma vaga luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar
E nos torna piedosos, como quem já tem fé.
Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida
Pelo movimento, pela forma, pelo nome,
Voltamos ao zero irradiante, ao ver
O que foi grande, o que foi pequeno, aliás
O que não tem tamanho, mas está agora
Engrandecido dentro do novo olhar.

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO, Cenas Vivas