28.8.09

três canadianas e um bacalhau

O velho agarrado às duas canadianas caminhava ao lado da velha, que só tinha uma canadiana. Mas o que dava nas vistas era o bacalhau, o bacalhau inteiro que a velha levava na mão livre, à saída do Lidl, em dia de promoções. Fiquei a ver as suas figuras desenhadas pelo Sol ainda agreste. Lá iam eles, os velhos, as canadianas e o bacalhau seco. Pus-me a imaginar só os velhos e as canadianas. Desolação. Tive pena dos velhos. Não podia ser.

Acrescentei-lhe o bacalhau. Agora sim. O bacalhau tinha mudado tudo. O bacalhau muda tudo.

27.8.09

Infância

Eu gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".

Guilherme de Almeida
(Brasil, 1890-1969)

26.8.09

ementa

Vou fazer fanecas com arroz de feijão. "Ah faneca!" ou "Há faneca", ou até "À faneca" - eis a questão.

25.8.09

o cão cantor

Encontrei um cão na papelaria chamado Sting. Mas não cantou. Pelo menos enquanto eu lá estive.

20.8.09

mensagem em nove palavras

atenção máquina do tempo arranca sem aviso prévio stop

19.8.09

lapsus linguae (INVERSO)

o INVERNO também é verdadeiro

18.8.09

instantes decisivos

Estava eu a ver o dvd de "Slinding Doors", com Gwyneth Paltrow, quando Castafiori chegou a minha casa. Tínhamos combinado ir ao King ver um filme francês. Castafiori gosta do cinema francês. Não sou eu que a vou criticar. Eu também gosto. Mas Castafiori tem outros gostos para além do cinema francês.

Vou dar um exemplo: chega sempre, pelo menos, meia hora antes. Irrita. Irrita um bocado. Pelo menos a mim irrita-me. Não tanto como se chegasse meia hora atrasada, mas irrita ficcionar-se assim um atraso que não existe, uma transferência. Uma pessoa sente-se culpada, sente que está atrasada, o que não está certo, porque simplesmente eu não estava atrasada. E para mais, num domingo quente como o domingo passado, o que é que se vai fazer meia hora antes para o King? Mas eu só queria acabar de fazer o que estava a fazer. Foi isso que lhe disse. Talvez um pouco secamente.

Castafiori sentou-se um bocadinho contrariada. Puxou de um leque. Puxou do telemóvel. Puxou dum jornal. Os domingos em Lisboa são puxados. Mas os gestos e fragmentos vão-se extinguindo. Começo a sentir o peso duma certa quietude. Pelo canto do olho, pude constatar que Castafiori estava a ver o filme, com a Gwyneth Paltrow. Eu também estava a ver o filme, com a Gwyneth Paltrow. OK. Não deixava de ser intrigante, os segundos passavam e Castafiori sem dizer palavra. Tudo tem uma explicação e ela chegou:
- Não me importava nada de ter uma carinha assim.
Eu olhei para ela. Mas ela não me estava a ver. Continuou:
- Uma sarda aqui, uma sarda ali.

Gostei do detalhe. Voltei ao filme. Já agora acabava de ver o filme antes de me enfiar numa sala escura a ver um filme francês num domingo de Agosto. Porém, tive dificuldade em concentra-me. Castafiori reincidiu:
- O que me vale é que com a idade fui melhorando.

17.8.09

linha vermelha

A linha vermelha esteve encerrada sábado e domingo, os dias em que se pode andar de bicicleta no metro. Desta vez pedalei ao longo do rio, entre o acesso à expo e alcântara. O nosso rio é lindo. Não falta nem versos imortais no alcatrão nem jovens remadores sob a ponte, não falta nada ao nosso rio e na minha terra não corre nenhum rio. Além disso a linha vermelha estava fechada.

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

O Tejo tem grande navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.

E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

ALBERTO CAEIRO

14.8.09

mensagem em oito palavras

"Amor é fogo que arde sem se ver"

13.8.09

mensagem em sete palavras

vaidade, inveja, ira, preguiça, avareza, gula, luxúria

12.8.09

fidelidade

Vi o Puma Branca com umas adidas. Brancas.

11.8.09

mensagem em seis palavras e uma vírgula

unhas de gel, línguas de gato

10.8.09

as escadas

O pior são as escadas. Há escadas por todo o lado. Há escadas para sair de casa, para descer ruas, há escadas para contorná-las. Há escadas suspensas e escadas por debaixo da terra. Por exemplo, as escadas no metro. Escadas de mármore, escadas de metal, escadas de cimento, escadas proibidas, escadas permitidas. Não vale a pena perder mais tempo. Escadas é uma palavra bastante exacta. A vida de uma ciclista não é fácil.

7.8.09

"A GUERRA DOS BALCÃS"

Um homem velho e doente seguia por um caminho fora. Quatro rapazes assaltaram-no e despojaram-no dos seus haveres. O velho seguiu contristado o seu caminho. Mas no cruzamento seguinte viu, com grande espanto seu, que três dos ladrões assaltavam o quarto para lhe tirarem o produto do roubo. Este, no entanto, caíu no chão durante a refrega. Cheio de alegria, o velho juntou-o e apressou-se a sair dali. No entanto, foi detido na cidade mais próxima e levado à presença do juíz. Os quatro rapazes lá estavam e apresentaram queixa contra ele, agora de novo unidos.
O juíz, porém, decidiu da seguinte maneira:
O velho tinha de devolver todos os seus bens aos rapazes. "Caso contrário", disse o sábio e justo juíz, "os quatro indivíduos ali presentes poderiam causar distúrbios no país."

BERTOLD BRECHT
HISTÓRIAS DE ALMANAQUE

6.8.09

mensagem em cinco palavras

cinco vezes cinco vinte cinco

5.8.09

mensagem em quatro palavras

lentilhas negras, suores frios

4.8.09

mensagem em três palavras

Declaro que sorri.

2.8.09

jantar em Ayamonte

Encontrei-me com Castafiori no Algarve e fomos a Ayamonte jantar. Boquerones, champiñones, pimentada, gambas al alijo, queijo manchego, patatas bravas, yo qué sé. Depois do café, Castafiori declarou: " Chega de Espanha. Vamos para o nosso país".

1.8.09

adeus, cliozinho

Já passava das seis. Eu ia feliz. Janelas abertas, John Coltrane, calor, mapa dobrado, John Coltrane. Mas havia uma coisa a perturbar-me na estrada entre o Torrão e Vila Nova da Baronia, uma coisa que esvoaçava no carro, e que eu tentei imobilizar. Despistei-me. Um pontão de águas residuais no caminho, o alcatrão de novo. Tudo durou menos do que as palavras que usei na descrição. Não me aconteceu nada a mim. Ao cliozinho sim, é agora um VFV, um veículo em fim de vida, um veículo para a sucata. O meu clio era velho, já cheirava a gasolina, gastava bastante - era um 1400, 80 cavalos, 1992 - a tinta estava a estalar no capôt, mas tinha um arranque sensacional, um ar de classe em extinção e transmitia-me a ilusão de que poderia ir com ele daqui a Vladivostok. Era só querer. Não iremos a Vladivostok. Tudo e todos os que eu amo acabam no Alentejo. Eu sei que é estúpido dizer isto assim, mas eu amava o meu clio.