27.1.07

engrenagem

Encontrei a Rosário na escada do prédio. Percebi logo que alguma coisa tinha acontecido.

Um dia antes, a gata Zazou viu-se encerrada no quarto da dona. Tudo se deveu a uma manobra doméstica não inteiramente esclarecida. Segundo a minha interpretação, a gata não gostou. Só isso pode explicar o acto que se seguiu: a Zazou saltou para a terceira prateleira da estante Billy e foi-se aos Sartre - "os Sartre dos meus quinze anos", dizia a Rosário com emoção indisfarçável.
Mas a missão não estava concluída. Deitou-os ao chão e arrancou, num golpe que imagino preciso, a capa de um deles - L'Engrenage.
Não é um valor esta Zazou?

26.1.07

não esquecer

ver amanhã no "odisseia" o doc "hollywood televisiva"; 14horas

25.1.07

graciosa e ligeira

Madame Castafiori olha para o povo com o sorriso complacente dos príncipes herdeiros. Lava as mãos depois de um cumprimento, comparece de óculos escuros nos velórios, nos hospitais faz-se acompanhar de um lenço perfumado. Mas por vezes cede. Hoje, por exemplo. Ao subir a rua cruzou-se com uma mulher que arrastava um cãozinho pela trela. O cão puxava para um lado, a dona para outro. Como se tudo obedecesse a um ritual. E na altura de maior tensão a dona esclamou: "Não te estiques, Bolinhas". Não é que Madame Castafiori achou graça?

24.1.07

Par hasard

O Baltasar terá muito defeitos, mas o maior de todos é ser pobre.
"É simples como uma frase musical".

22.1.07

Adeus Saturno

Aos Touros e Demais Interessados:
A partir do Outono Próximo ninguém nos agarra.

21.1.07

visita ao museu

Quem avista a escadaria pode exclamar ao passar: "Ah! como é bela esta escadaria". E se parar quem sabe se por momentos não ouvirá algum murmúrio vindo do século XVIII, talvez umas palavras sussurradas antes de um beijo roubado. A memória está à solta no palácio. E em nós a imaginação cresce como uma trepadeira. Por isso vamos aos museus e exclamamos ao passar "Ah! como é bela esta escadaria". Mas uma pontinha de frio vem de repente interromper toda a teoria quando, olhando para baixo, vemos que no fim da escadaria uma fita trava o passo ao visitante. Porque será que pensamos que é sempre para lá da fita que está o mais interessante ?

19.1.07

não saia nem entre

DSC01211© fatima ribeiro2007
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comme par magie

Entraram no comboio em Entrecampos. Dois rapazes e duas raparigas, 17,18 anos. Eles sentaram-se junto da porta, elas no banco oposto, de costas para mim. Um dos rapazes abriu o "Metro", o outro o suplemento sobre fatos de Carnaval. Um das raparigas interessou-se ora pelo jornal, ora pelo suplemento. Ouvi as palavras "sapatos" e "verniz", "piratas" e "Caraíbas". Também ouvi risos. Um dos rapazes mordeu nessa altura o lábio inferior e a rapariga que não se interessou nem pelo jornal nem pelo suplemento tirou um espelho da mala e pintou os lábios.

Logo depois de Santa Cruz-Damaia, cada um dos rapazes entregou à outra rapariga o jornal e o suplemento. Era para aí um quarto para as duas quando eles se levantaram do banco. Um deles beijou a rapariga dos lábios pintados e saiu com o outro na paragem seguinte. Não será, por isso, de admirar que hoje tenha sido avistado na estação da Reboleira um rapaz de 17,18 anos a assobiar com os lábios pintados "comme par magie", da Bourjois.

18.1.07

por dentro e por fora

DSC01191© fatima ribeiro2007 DSC01191© fatima ribeiro2007

humanamente falando

não há forma de morrer que não nos gele
Feroz é a sombra e viva é sempre a faca.

Blas de Otero

17.1.07

assim falou (2)

Interessa-me trabalhar no cinema, ainda que pondo o cinema em causa.

Assim falou o realizador Hugo Vieira a propósito da estreia de um objecto audiovisual estreado em salas de cinema sob o título de Body Rice. Se tivesse explicado, por si ou por interposta pessoa, porque raio é que para pôr o cinema em causa precisa de um subsídio público de 450 mil euros teria sido perfeito.

assim falou (1)

(a propósito de notícias sobre ida para um clube de futebol do Dubai durante meia dúzia de meses, a ganhar milhões, biliões e triliões de euros ou dólares ou mesmo rupias, assim falou Luís Figo, em entrevista a La Gazzette dello Sport, citada pelo Público, na edição de 6ª feira. L.F. é um dos 100 grandes portugueses:)

Já ganhei o suficiente e não preciso de um novo contrato. Estava à procura de uma solução suave. Não queria retirar-me imediatamente. Assim posso jogar mais cinco ou seis meses de futebol mais ligeiro.

14.1.07

prédio sonâmbulo

O meu prédio move-se durante a noite. É difícil, por vezes, encontrar um minuto, um simples minuto de sossego. Ontem, por exemplo. Comecemos pelo 4º andar, o andar acima do meu. Vago há meses e meses, com obras há meses e meses, foi finalmente ocupado. À hora de jantar, o cheiro a gás inquietava quem passava nas escadas.

Minutos antes, soube depois, tinha sido ouvida a trepidação de uma garrafa de gás butano a ser arrastada escada acima. A imprevidência foi então atribuída não aos suspeitos do costume - o 5º andar - mas aos novos locatários. Enquanto o 2º andar negociava a rendição ao gás natural, o 5º andar passa em fila indiana com uma parte da mobília. Primeiro, o tio mais velho, o da precária, com as portas de um armário, depois a avó com um neto pelo mão, um rapazinho encantador que com a outra mão raspava um bocado de esferovite na parede, depois um dos adolescentes com uma árvore da borracha maior que ele e, fechava o cortejo, a filha do meio, a falar com alguém ao telemóvel (que segundo a vizinha do 1º, deveria ser o namorado brasileiro, aquele que trabalha na telepizza). Vindo de cima, um choro de criança, com certeza o irmão do raspador, um puto de um ano e tal mas muitos quilómetros em todos os quarteirões vizinhos. De repente abre-se uma porta e o choro chega mais intenso. É uma mulher, a mãe das crianças, que grita: "Não se esqueçam de ir buscar o frango".

Há várias semanas que o 5º andar se está a mudar. Como e onde transportarão, por exemplo, os armários, não sei. Os vasos, os tupperwares, sapatos, guarda-chuvas, bancos de cozinha, almofadas, tapetes e outros utensílios sei: são transportados no carrinho do bebé. Encontrei-os um dia destes em mais uma corrida rua fora. Segundo o velhote do 1º, marido da vizinha do 1º, eminência que gere como ninguém toda a informação pertinente e impertinente da nossa freguesia (e das freguesias limítrofes, acrescente-se, assim o impõe a nossa situação de fronteira para a zona oriental), segundo a vizinha do 1º, dizia eu, o 5º andar está a mudar-se ali para o pé do Lidl, não sei se está a ver aquelas casas, a seguir aos prédios altos. Não, não estou, mas é como se estivesse. E pensei para comigo quão esquisito é o movimento anunciado: então vão viver mesmo para o lado da polícia? Mas fechei-me em copas, em copas e dentro de casa. E fiz eu se não bem. Lá mais para o fim da noite pude ouvir um concerto vindo do 2º andar, onde havia uma espécie de rave. A Rosa fazia anos. Imagine-se quantos anos fez a Rosa. Vinte. Oh, destino implacável, oh Deus dos desenganos, porque me abandonaste? A vida tem de ser assim? "Nada é tão necessário ao homem como um par de lágrimas/ prontas a cair no desespero".

13.1.07

poesia toda

Levanto as mãos e o vento levanta-se nelas.

Herberto Hélder

12.1.07

uma tia menos dotada

Dizia o pai da Rosário sobre uma tia menos dotada:
- Tem uma cabeça muito granítica. Mas sem mica nem feldspato - só quartzo, só quartzo.

11.1.07

pergunta Prufrock

Should I, after tea and cakes and ices,
Have the strength to force the moment to its crisis?

T.S.Eliot

sunset boulevard

DSC00943© fatima ribeiro2006
DSC00943© fatima ribeiro2006

10.1.07

bancada central

Acabou o "Bancada Central" , um programa desportivo que a TSF transmitia há uma data de anos. Dedicado ao futebol, os ouvintes intervinham telefonicamente sobre os temas diários e sempre sobre o seu clube e contra os rivais. Tudo sob o esforço, que eu sempre imaginei telúrico mas que aparentava ser tranquilo, do jornalista Fernando Correia, voz inconfundível de relatos de domingos e noites europeis. Uma vez fui à TSF dar uma entrevista sobre a porcaria dum filme que eu tinha feito e quando ia a sair vi o Fernando Correia, sentado numa das secretárias. Pedi para lhe ser apresentada. Não sei se me fica bem confessar as verdadeiras razões que me levaram a querer cumprimentar o Fernando Correia. Mas já passaram muitos anos, o crime prescreveu, o estádio da Luz veio abaixo e acima, o "bancada central" acabou e ainda cheira a Natal . Vou ser condescendente comigo própria: quem eu queria conhecer mesmo era o Aurélio Márcio, então um dos meus mentores em análise de partidas, que eu aprendi a ler n' "A Bola" e que me consolava a ouvir na rádio. O Aurélio Márcio não estava. Deus não dorme. Fiquei sem conhecer o Aurélio Márcio mas nunca esqueci aquela tarde na Avenida de Ceuta.

9.1.07

uma noite no cinema

Ao ver "A Rainha" revisitei os dias em que eu, estrangeira e republicana, chorei pela princesa morta. Não é preciso dizer mais nada. Nunca compreenderei esta minha reacção.

8.1.07

A lingerie de Madame Castafiori

Madame Castafiori é intransigente em muita coisa. Não é uma questão política, nem sei se chega a ser uma questão moral. É mais uma questão de timbre. Um pequeno exemplo musical: a lingerie. Madame Castafiori não consente outra que não o manto diáfano da verdade. Só algodão, cem por cento algodão, de preferência vindo directamente do Egipto, o mesmo Egipto por onde andou Eça de Queiróz e T. E. Lawrence. Para que conste e não restem dúvidas, nenhum outro tecido lhe serve, incluindo a seda. À seda e aos costumes disse nada. É uma questão de timbre. Lingerie, só de algodão. Nas cores branca ou preta. Quanto à cor de carne tem de a escolher pessoalmente.

6.1.07

indecisão

Dei uma volta pelo moleskine que a Rita me ofereceu há 3 anos e verifico que também ali me espera uma lista de livros para ler. "Perspectiva Histórica da Ficção Portuguesa das Origens ao século XX" e "A Vida Sexual dos Selvagens" encabeçam a lista. Não sei por onde começar.

5.1.07

autoestrada

DSC01039© fatima ribeiro2007DSC01039© fatima ribeiro2007

4.1.07

o gato de Montaigne

Pensamos que estamos a brincar com o gato, mas como é que sabemos que não é o gato que está a brincar connosco ? É por estas e por outras que o Montaigne ficou na História e eu passarei à História. Enfim, mais pelas outras que por estas.

3.1.07

ementa

É quase noite. O autocarro apitou por causa de um carro mal estacionado e eu ainda tenho os apitos na cabeça. Não me apetece nada jantar pescada cozida com apitos nos ouvidos. E se eu mudasse para uma omelete com salsa e arroz de ervilhas ?
A única certeza: um vinho em promoção.

2.1.07

um sonho

Os gatos estão ao sol, o horóscopo não deixa de ser prometedor mas a parede continua lá e não consigo passar, não consigo passar. Com as mãos a cheirar a tangerina, abro a janela.

1.1.07

pelo Tejo


DSC00974© fatima ribeiro2006, originally uploaded by imia.