30.3.05

l'heure du petit déjeneur

C'est l'heure, je crois, du petit déjeneur
auriez-vous la bonté de penser à moi...


Le Petit Prince

29.3.05

estação terminal


DSCN7528© fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

28.3.05

serviço florestal

Nesse tempo, ainda não tinha a ideia de que a vida está sempre a transformar-se em literatura, durante pouco tempo, claro, só o suficiente para ser o que melhor recordamos, e com a frequência bastante para acabarmos por chamar vida a esses momentos em que a existência, em vez de andar para os lados, para trás e para a frente ou de ficar parada de todo, segue a direito, tensa e inevitável, complicada, um clímax e, com alguma sorte, uma purgação, como se a vida se fabricasse, não acontecesse.

SFEU1919: o Guarda, o Cozinheiro e um Buraco no Céu

de Norman Maclean

Referi-me a Norman Maclean (1902-1990) aqui há uns tempos, quando reabri a loja. Uma surpresa. Para mim.
Com ele estive no Serviço Florestal dos Estados Unidos e conheci o rio Blackfoot. Estive com lenhadores da Anaconda Company, conheci o amigo Jim, um cozinheiro, Bill Bell e o cão de Bill Bell, uma criada grega, Aba Enorme, Aba Grande e Aba Maior. Imaginava lá que serrar podia ser uma coisa bela? Joguei pool, cribbage e poker no Oxford. Estive em Bear Creek e bati o record de salto em comprimento para trás por causa de uma cascavel. Estive aqui e estive ali, estive nas Montanhas Rochosas.

27.3.05

âmbar

A história que se segue mete a Rosário ao barulho. Mas não se passa no infantário. Nem no infantário nem com nenhum dos meninos do infantário. Nem agora. A história que segue tem para aí uns 10 anos e passa-se em casa da Rosário com uma das suas filhas.
Para aí há uns 10 anos jogava-se trivial pursuite no 2º andar. E sai uma questão deste género: "Donde se extrai o âmbar ?"
"- Ó mãe, deixa-me responder!" Quem assim falava, com urgência e decisão, era a Joana. Então com 6 anos, a Joana fazia parte da mesma equipa da mãe e o seu tom inexorável calou a sua e a outra equipa e conquistou o direito a responder.
E a Joana respondeu: "- Do material escolar!"
As gargalhadas que explodiram sem parar deixaram a Joana à beira das lágrimas. A incompreensão durou uns minutos mas a raiva só não dura até hoje porque a Joana hoje tem muito mais que fazer. Agora, por exemplo, está em Milão a passar as férias da Páscoa.

26.3.05

ontem, na outra margem


DSCN7457© fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

25.3.05

dias assim

o peixe hoje não está a picar

24.3.05

semana santa

Num bairro africano de Lisboa.
-'Tás a ver aquele miúdo ali? Tem 12 anos. É correio de droga. Depois chamou-o e deu-lhe uma mão cheia de amêndoas.
- Repara nas casas onde eles vivem. Nem janelas têm.
Amanhã é sexta-feira santa.

23.3.05

flash


DSCN6156© fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

22.3.05

querida

Às 5 da tarde instalei-me no café cujo dono me chama querida. Amante de ervas e cheiros, há dois dias que aspirava por uns minutos que me permitissem alinhar um post sobre o assunto.
Encontrados os minutos, encontrado o local, faltava encontrar a paz de espírito necessária para escrever sobre a minha nova condição de proprietária de uma plantação de poejos. Era o que esperava encontrar ali.
E ali estava ela, a paz de espírito, entre o bruá da clientela, da clientela de calças de lycra, alimentada a correio da manhã e toques polifónicos, porém, meus colegas de delta e um copinho de água, se faz favor.
Abri o meu caderninho de capa branca e contracapa amarela. Encontrei no fundo do bolso a discreta parker cor de laranja, Mal tive tempo de põr à frente da nota "poejos/ ver o nome em latim" um ponto de interrogação. Ouvi o dono do café chamar querida a outra cliente que não eu. Fechei o caderno e saí.

21.3.05

A Primavera Segundo Madame Castafiore

Raras são as coisas que escapam a Madame Castafiore. O seu olhar atento captou sem hesitar o meu estado de espírito, down & dark, Lda. Foi pois sem surpresa que a ouvi comentar em meados de Fevereiro: - A Primavera e o Outono são as estações propícias às depressões. Era fim de tarde, as torradas estavam fininhas como eu gosto, a conversa fluía sem sobressaltos e não constava das minhas intenções contrariar Madame Castafiore. Mas fui obrigada a dizer-lhe que estávamos em pleno Inverno. Madame Castafiore olhou para mim. Nesse dia, o risco que lhe sublinha os olhos estava tão afirmativo quanto as palavras que se seguiram: - No seu caso, o Inverno e o Verão também são.

20.3.05

Ah, um soneto...


DSCN7174© fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

(...)
Lisboa com suas casas
de várias cores,
Lisboa com suas casas
de várias cores,
Lisboa com suas casas
de várias cores...

À força de diferente, isto é monótono.
(...)

Álvaro de Campos

19.3.05

nas nossas ruas


DSCN5973© fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

18.3.05

uma visita

Mal a rapariga das pernas altas os deixou a um canto do recreio, a Directora insistiu:

- Tu não te lembras da Carolina?! É minha sobrinha, filha da minha irmã Ana. Também não te lembras da minha irmã? A Carolina é filha dela.

O menino portador de trissomia 21 permaneceu resoluto: não, não e não. Não se lembrava.

- A sério que não te lembras? A Carolina tocava sempre uma música de que tu gostavas tanto...

A Directora acena a alguém que passa. Precisa de afastar o desânimo. Respirar. O rapaz olha para ela:

- Dê-me mais pistas.

17.3.05

a janela grande

Eram 10 da manhã quando entrei e pedi um café. Fico sempre virada para a grande janela. A grande janela dá para o largo. E do largo vai-se para o mundo. Hoje, regressei a Lisboa.

16.3.05

codigo 113


DSCN6463© fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

com ou sem acentos, o cliozinho portou-se muito mal na inspeccao tecnica periodica

15.3.05

irish coffee

Madame Castafiore telefonou antes de almoço. Telefonou e disse: - Os irlandeses é que sabem escrever.
Provas? Quase não tinha dormido e levantou-se mais cedo para acabar o livro antes de ir trabalhar. Este despertar literário fez-me interessar pelo assunto e quis saber o que é que os irlandeses andam a escrever e quem entre os irlandeses anda a escrever. Do outro lado, o silêncio, um grande silêncio indiciava o imprevisto. Madame Castafiore não se conseguia lembrar do nome do livro, nem do nome da irlandesa que a fizera madrugar. Com a emoção tinha-se esquecido. Pura e simplesmente.
O meu telemóvel vibrou quando o almoço estava no fim. Li a mensagem. A mensagem dizia: "Depois de tu partires". Acho que nessa altura sorri e, numa singela homenagem, com o café pedi uma mousse de chocolate.

14.3.05

apogiatura

ornamento que consiste numa nota estranha à harmonia e que antecede
uma nota de apoio ou notas de harmonia
harmonia:elemento da música que consiste
em sobrepor 3 ou mais notas; a harmonia é dada pela sucessão de acordes
e pela relação que estabelecem entre si
acorde: 
conjunto de três ou mais notas simultâneas

A Grande Música Passo a Passo

cadência

secção final de uma frase musical que lhe dá um carácter conclusivo

13.3.05

conversa acabada


DSCN6682© fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.


DSCN6683© fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

12.3.05

top ten

Leio no Público de hoje que "Três Cavalos", de Erri de Luca , está em primeiro lugar no top ten de vendas da livraria O Navio dos Espelhos, em Aveiro. Ficção.
Há uns meses, a A. falou-me deste livro que, aliás, lhe tinha sido recomentado pela M., durante os dias mediterrânicos do verão passado. Emprestou-me o livro com o mesmo entusiasmo com que o leu. Não sei porquê, talvez seja a mania cada vez mais presente em mim de ler vários livros ao mesmo tempo, o certo é que "Três Cavalos", livro de pouca espessura, foi sendo trocado um dia por um, outro dia por outro. Até que um dia o livro me foi confiscado. A minha palavra, de que sim, que estava a gostar do livro, de que sim, o leria até ao fim, de nada serviu. Lembro-me de um homem numa taberna, lembro-me duma mulher, estrangeira. Lembro-me dos atritos e do desenho da escrita. Uma escrita feita à mão. Uma escrita desamparada. Acho que não se pode ler este livro no Outono.
Ao escrever este post, não temo que o céu me caia em cima da cabeça. Temo estar a confundi-lo com outro. Mas não. "Três Cavalos" é um livro inconfundível.

11.3.05

página 26

- Uma vez encontrei uma raposa numa ratoeira. Estava com tanto medo que tentava morder a perna para se libertar. Tinha olhos como os teus.
- Libertaste-a?
- Não me deixou. Tinha mais medo de mim do que da ratoeira.
- O que lhe aconteceu?
- Vi-a morrer.


Minette Walters
A Câmara Escura

10.3.05

ikea kungens kurva

Sobre a Suécia sei: que é a terra da Lisa e de Sven Goran Eriksson. Posso também falar, mas só um bocadinho, de: August Strindberg, um velho conhecido. Feitio difícil, diálogos breves, conflitos essenciais. Além disso: conheço razoavelmente a Scania por causa de Henning Mankell, que costumo encontrar na biblioteca municipal, e à conta de Ingmar Bergman estive em algumas ilhas, onde aprendi a palavra que melhor pronuncio em sueco: Monika.
Ora, sabendo eu tanta coisa sobre a Suécia, não encontro explicação para isto: foi preciso a Rosário ir à Suécia para ficar a saber que os meninos suecos quando vão brincar para a neve levam um balde e uma pá.

9.3.05

boletim clinico


DSCN6544 © fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

A Mia foi operada hoje, durante a manha. Foi medicada e encontra-se bem. A Vera esta a tomar conta dela. Este boletim clinico nao tem acentos.

8.3.05

dupla articulação

As minhas gatas gostam do campo, isto é, imagino eu que sim, que as minhas gatas gostam do campo. Imaginar, imaginar, não será bem. Será mais um supor, um supor do género suponhamos. Como é que me hei-de explicar? Limitar-me-ei então a dizer o que vejo. Vejo uma gata em cima duma oliveira, vejo outra gata espojada no chão cor de barro. Estão ambas ao sol. E eu penso que isso é a felicidade.
É uma pena não poder falar com elas. Eu ia para cima da oliveira e falávamos sobre a felicidade, porventura o mais famosos dos não tema. As minhas gatas não falam porque não têm dupla articulação, explicou-me um dia Madame Castafiore. Mas atenção, não apenas as minhas gatas, fez questão de ressalvar, logo na altura, Madame Castafiore.
Quanto a mim, poderia de facto subir para uma oliveira e se não caísse, é só um supor, claro, desejaria que o sol viesse matar as perguntas. "O Sol mata as perguntas" aprendi eu em Madrid, Espanha, longe das oliveiras, perto do futuro. Já lá vão doze anos. Doze ou mais.

7.3.05

caderno de significados

Plétora de apreciações, pleiade sem émulos, pináculo, epitomisa são palavras ou expressões que encontrei no prefácio a Senhores da Terra, Diário de um Agricultor Alentejano . Entre 1866 e 1889 escreveu o agricultor 20 livros numa letra desenhada. A 18 deles dá a designação de Pandemónios, por se destinarem ao apontamento de coisas tão diversas como a contabilidade e a filosofia, a correspondência e o registo de histórias familiares.

Hoje, aqui no meu pandemónio, aponto duas ou três coisas.
Ontem, 0-1 sobre o Nacional, vitória do Benfica. Espero comemorar o título em Moçambique. Enquanto espero, oiço comentários sobre o novo governo em directo do Porto. Estou a ver a RTPN: O que é que tem a dizer sobre o aumento dos impostos daqui a algum tempo? Um engenheiro liga de Vila Nova de Poiares. Muito obrigada por nos ter dado a sua opinião.

Amor à primeira vista :

Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.
(...)


Wislawa Szymborska ganhou o Nobel em 1996. O Nobel da Literatura.

E com isto tudo já me estava a esquecer do mais importante, a data do prefácio: 1982. Por causa dele abri o caderno dos significados. Dúvidas quanto ao significado, dúvidas quanto aos acentos, um domingo de dúvidas. Felizmente o artilheiro encarnado fez o golo logo no início da etapa complementar. Felizmente o poema de Szymborska acaba assim:

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.

6.3.05

e as serras


DSCN6378 © fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

a cidade


DSCN6100 © fatima ribeiro2005, originally uploaded by imia.

5.3.05

R.I.P.

Km 24, A6, ontem ao fim da tarde, em direcção ao Sul. O Sol de tão baixo cega os espelhos laterais, por isso é o retrovisor interior que me põe a par do mundo atrás de mim, enquanto controlo o binário máximo, mantendo-me nas 3750 rpm, quer dizer, a 130km/h.
Esse mundo acaba por reduzir-se a uma estrela, a do símbolo da mercedes, filtrado por um laranja bright lá atrás. É uma carrinha, alta e escura. Vejo-a piscar e ultrapassar-me: é uma carrinha de cristal, confirmo que escura, e então vejo o tecido de veludo bordado a dourado que cobre a urna. Mais uns segundos e fico só.
Quando eu morrer levem-me de volta para o Alentejo. Quero ir assim, na esgalha. Quero ir assim, ao pôr do sol. Partir de dia e chegar de noite. Dormir pela última vez onde nasci.

4.3.05

declaraçao de amor

Encontravam-se todos os dias na paragem. Bem, quase todos os dias. Já tinham chegado à fala. Bem, falado, falado, 'tás a ver, a coisa era mais feita de olhares. 'Tás a ver, uma coisa à socapa. Mas naquele dia estava decidido. Eram oito e trinta e cinco e tinha fumado quatro cigarros e meio. Mais coisa menos coisa.
Ele estava, então, decidido. Tinha ensaiado umas frases, bem, frases, frases, eram mais umas palavras. Também não era preciso exagerar, só precisava de lhe dizer que gostava dela, - gostava como?-, quer dizer que a curtia, que a gramava e que ela era gira, 'tás a ver, uma miúda gira.
Quando ela chegou à paragem sorriu-lhe. Não havia tempo a perder. E se não havia tempo a perder era melhor começar a conversa. Na paragem, houve quem tivesse ouvido o seguinte:
- Tem estado um frio!
Depois de puxar por mais um cigarro:
- Tem estado mesmo frio.
Depois de ter revirado todos os bolsos à procura do isqueiro:
-Nevou na terra da minha mãe. Pelo menos foi o que a minha avó disse ontem, 'tás a ver, quando a minha mãe telefonou. Olha aí vem o 6.
Ciao, diz ela. E põe-se na fila para entrar. Quando vai quase a entrar, vira-se e diz-lhe:
-Já viste cair neve?
Ele não soube bem o que responder, não tinha planeado uma reacção daquelas, mas quando o autocarro deu a curva tomou consciência da totalidade da situação, 'tás a ver, foi como se ela tivesse dito que sim, que também gostava dele.

2.3.05

relações de vizinhança

Os passos no soalho não enganavam: alguém viera habitar o andar de cima. Mas quem? A resposta veio célere. Nessa mesma noite, a primeira depois de férias, viu o homem à janela, iluminado pelo anúncio da farmácia que, por sorte, cumpria serviço noctuno. Não vislumbrou mais do que um queixo quadrado envolto numa espiral de fumo mas foi o suficiente. Alguém viera habitar o andar de cima.
No dia a seguir, quando regressava do mini preço e arrastava consigo três sacos e um garrafão de água do fastio, dois outros elementos, pode mesmo falar-se em factos, vieram, todavia, reabrir o processo. Por ordem alfabética: a) um bilhete de comboio suburbano, caído no penúltimo degrau antes do seu próprio patamar (bilhete inteiro, ida, início da viagem até 11:39, Lisboa SA- Amadora, 2 zonas, 1,10 eur, etc., etc.); b) um cheiro intenso a churrasco relativamente indefinido, talvez febras, talvez entrecosto, até entremeada, fosse o que fosse fez-lhe ali mesmo crescer água na boca e deu-lhe muito que pensar.
Seria casado? E que raio andaria a fazer no dia anterior na Amadora à hora de almoço? Era pessoa para ter comido um duplo cheeseburguer no babilónia? E que mulher era esta que não o deixava fumar em casa? E que homens são estes que deixam que as mulheres não os deixem fumar em casa?
Quando pousou os sacos na bancada da cozinha respirou fundo e sentou-se na cadeira desengonçada que há anos atravancava a porta para a marquise. Apetecia-lhe almoçar fora, sei lá, umas febras, um entrecosto, até uma entremeada. Mas o red fish já estava descongelado, verificou com pena e seguiu para a sala onde consultou numa revista a programação da tv cabo. Nisto pôs-se a escutar os passos no soalho. Os passos no soalho não enganavam: alguém viera habitar o andar de cima.

1.3.05

figuras de estilo (1) : ELIPSE

Mas estava a perguntar-me como é que a conheci. Eu dava aulas aos rapazes e ela às raparigas. Cumprimentávamo-nos à entrada. Apertávamos as mãos, sabe, não era como hoje. Depois ela começou a pedir-me romances emprestados. Ferreira de Castro, Júlio Dinis... Um romance todas as semanas. Ao fim de 3 anos combinámos e casámos.