31.5.11

Capitulação

Telefonei a Castafiori. Os meus piores receios tinham-se confirmado. Ela estava nitidamente à espera da minha chamada. Assim que atendeu, atacou. Não me restava senão reconhecer. E reconheci que a observação sobre o filme "A Árvore da Vida", enfim, não era descabida. Na mesma frase mudei de assunto. Mas Castafiori não deixou. Castafiori gosta de me ver assim, rendida ao seu talento crítico. Castafiori, atingida como um raio pela vã glória dos que sabem que mais tarde ou mais cedo lhe será reconhecida a razão, começou imediatamente a esticar-se.

Disse Castafiori: - Nem imagina os nervos que aquilo me deu desde o princípio; a água, o fogo, eu só pensava, para quê tanto vulcão, tanta lava desperdiçada? Mas para isso eu estava preparada. O problema foi quando apareceram os dinossauros. Pensei imediatamente: a seguir vêm as borboletas.

29.5.11

National Geographic

Estou preocupada. Castafiori telefonou-me. Queria saber o que é que eu acho do filme do momento, "A Árvore da Vida". Nada. Nada? Um sopro de intolerância atravessou-lhe a voz. Ouvi-o perfeitamente. Nada, sim. Ainda não vi. Silêncio. E acrescentei, arrependida da impertinência: mas ouvi dizer muito bem. Palavras não eram ditas e percebi pela resposta que tinha acabado de cair na armadilha. Ora aí está, então não diga que não acha "nada", você já vai para lá disposta a achar que é bom, que é até muito bom, inultrapassável. Pois se quer saber, fui ver e só me lembrava dos filmes da National Geographic.  Mas vá ver, vá.
Se eu não tivesse em conta as opiniões cinematográficas de Castafiori não estaria preocupada. National Geographic ?

27.5.11

400 calorias

há anos que não comia um donut, ontem à noite comi um donut. também comi lentilhas com chouriço, e dois copos de vinho tinto. hoje, sem conseguir almoçar, lembrei-me de culpar o imperialismo americano. acho que com toda a razão.

26.5.11

no ar

chove e eu ouço um tcha tcha tcha, amanhã logo se verá

24.5.11

sensação

de vez em quando tenho medo, por nada de especial, esta tarde tive medo

15.5.11

lapsus (4)

Estreito de Boring

14.5.11

estranha constatação

Ou tenho um corpo ou não tenho
Ou sou eu ou não sou eu

Assim meu pensamento se interroga e calcula
O tempo passa docemente: fico sentado encostado à falésia

Entre os meus pés as verdes ervas crescem
Sobre a minha cabeça a poeira vermelha cai

Já vejo homens comuns
No meu leito de morte deporem vinho e fruta

HAN-SHAN
caligrafias de Li Kwok-Wing
Tradução do chinês de Jacques Pimpaneau
Versão poética de Ana hartherly

5.5.11

inconclusão

Peguei na Mia e levei-a a ver o mundo. Da nossa marquise vê-se o mundo. O mundo estava cinzento e brilhante logo de manhã, ainda não eram sete. 'Tás a ver Mia, o mundo está como ontem. A Mia saltou para cima da máquina de lavar roupa e pôs-se a lamber as garras. Passei o resto do dia a interpretar o gesto.

4.5.11

vinte para as 12

No relógio eram vinte para o meio dia mas para ela eram vinte para a meia noite. Era sempre assim, sempre que, por casualidade, reparava que no relógio marcavam vinte para o meio dia, para ela eram vinte para a meia noite. Tinha sido às vinte para a meia noite que atendeu o telefone e ouviu: - O teu pai morreu. Não fez nada, nem sequer se lembra de ter desligado. Estendeu o braço sobre a mesa e com a palma da mão encontrou os cigarros. Mas quis fumar e não consegiu. Tinha sido como se se tivesse esquecido de como se fumava. Desse momento, aliás, só uma coisa recorda como se fosse hoje: o relógio na parede. Eram vinte para a meia noite.

2.5.11

mudança

À janela do meu quarto tenho um vaso com um raminho de alecrim. Plantei-o ontem à noite. Agora vivo no campo.