28.2.11

a aula de tai-chi

Hoje vamos fazer a brincadeira dos cinco animais, disse o professor de tai-chi. Começamos pelo tigre.

E o tigre subiu a montanha; o tigre desceu a montanha; o tigre caçou; o tigre fez a presa em frangalhos e comeu-a, e palitou os dentes, isto já sou eu a inventar, porque é nesta parte do rosnar do felino, seguido do felino a bater os dentes, que eu sou bastante fraquinha, valha-me Deus. Tenho a dizer que não sou nada  má a avançar montanha acima, e ninguém se ri de mim a descer a montanha. Mas, quando a caça começa, passo a sofrível e, ai, quando preciso de cravar as garras na presa e rasgá-la sem piedade, a piedade toma conta de mim e está tudo estragado. Sinceramente, não percebo porquê. Eu sei que há um tigre dentro de mim. É esse tigre, esse tigre para onde todos os olhares se dirigem, que eu persigo. Porém, esse tigre escapa-me. A mim que sou o próprio tigre. Como pode o tigre escapar ao tigre?

A verdade é bastante prosaica: sou muito melhor a fazer o grou, imagine-se, a pôr a ponta da patinha no chão; nesta altura o peso está 100% na outra pata e eu equilibro-me; levanto voo com alguma desenvoltura; e pouso outra vez a patinha no chão. Voilà! É certo que, a dado momento, é preciso dar um pontapé para a frente ao mesmo tempo que as asas batem síncronas e o movimento não sai completamente harmonioso mas, vá, contemporizemos, não está completamente mal, não estando completamente bem. Voo.

Agora com o que eu embirro mesmo é com o passo da serpente. Não gosto da serpente. Não gosto, não gosto, não gosto. Não me vale de nada gostar ou não. O destino vem e contraria-me, logo a mim que não gosto de ser contrariada: safo-me com algum garbo a fazer os movimentos da serpente. Mas tudo isso eu suportaria - até suportaria ser grou com patinhas de porcelana, até suportaria ser uma serpente à espreita -, se, por momentos, conseguisse ser, sem sombra de dúvida, sem qualquer favor, o animal que há em mim: o tigre. Não, não quero que me compreendam, não quero que me ajudem, não quero me me deixem o caminho livre, não. Eu sou um tigre dos pés à cabeça.

27.2.11

porto tawny

Almoçei tardiamente com Castafiori. Um  domingo de sol convida a atrasos e bifes de perú com mostarda. Tenho andado arredada do mundo. Felizmente, nas nossas vidas, há sempre quem repare essas falhas. Informam-nos sobre a nação árabe, informam-nos sobre as manifestações previstas, informam-nos sobre os pibs, informam-nos sobre a queda da deutsche telekom. Raramente se ficam por aí. A ignorância enfraquece-nos. Retira-nos poder e, até, capacidade de reacção.  E ei-los a perorar sobre palo alto, maquinistas da cp, a margem de progressão de nico gaitán, para não falar no amor, que é onde, de uma maneira ou outra, todos os almoços de domingo acabam. Assim foi com Castafiori.

Depois de me informar sobre o estado da nação árabe, as manifestações previstas, os pibs deste e do outro mundo e, também, sobre a queda da deutsche telekom, desatou a falar sobre a violência doméstica. Segundo Castafiori a violência doméstica tem a sua causa no alcoolismo. Eu tenho grandes dificuldades em ouvir teorias gerais (admito, no entanto, que tenho grande facilidade em produzir teorias gerais). Por isso, quando ouço teorias gerais, por delicadeza entretenho-me a observar os pormenores da cena. E foi assim que verifiquei o seguinte: Castafiori perorava sobre violência doméstica com um cálice de vinho do porto na mão direita. Como era domingo, e era almoço, e estava sol, optei por um humor sem consequências e disse:
 - Se este almoço fosse ter ao youtube, não sei como é que você se ia safar, um discurso sobre violência doméstica acompanhado a vinho do porto.
Castafiori respondeu-me pausadamente, apenas traída quando, ao pegar no guadanapo, se ouviram as pulseiras no pulso esquerdo:
 - E quem é que se preocupa com o youtube quando tem na mão um tawny envelhecido? O importante é a imagem. Aprenda que eu não vivo sempre.

E eu aprendi.  Ao jantar, bebi um cálice de porto branco,  para comemorar a vitória do Benfica no último segundo. É assim a chama imensa.

26.2.11

fim do inverno

Metade da tarde, ao sol como uma escocesa; a outra metade cheia de stress como uma palerma. Pela ordem inversa.

25.2.11

dos pés à cabeça

Dói-me os pés e a cabeça. Isto por fora. Por dentro, uma espécie de caos, a que chamarei mental para não perder mais tempo. Como disse, dói-me a cabeça. É possível que não seja a cabeça. Se me doesse a cabeça, saberia onde a tenho. Não é o caso. Restam-me os pés.
Pelo menos, era o que eu pensava até ter começado a escrever e, por isso, escrevi Dói-me os pés. Verifico, porém, que, se assim fosse, os teria bem assentes na terra. Não é o caso. Conclusão: não me dói nada.
Isto por fora. Por dentro, um caos difuso. Mergulho nele neste exacto instante, com um pensamento quase terapêutico: de todas as palavras que utilizei até agora a que eu mais gosto é a palavra "porém". Gosto muito da palavra "porém", seguida de uma vírgula.

Também gosto de "pelo menos".

10.2.11

AGONIA

Irei pelas ruas até cair morta de cansaço
saberei viver sozinha e reter nos olhos
cada rosto que passa e continuar a ser a mesma.
Esta frescura que sobe e me busca as veias
é um despertar que em manhã nenhuma sentira
tão real: sinto-me simplesmente mais forte
que o meu corpo e um arrepio mais frio 
acompanha a manhã.

Longe vão as manhãs em que tinha vinte anos.
E amanhã, vinte e um: amanhã sairei para a rua,
lembro-me de cada pedra da rua e das nesgas do céu.
A partir de amanhã as pessoas ver-me-ão outra vez
de pé e caminharei direita e poderei parar
e mirar-me nas montras. Nas manhãs do passado,
era jovem e não sabia, nem sabia sequer
que era eu que passava – uma mulher, dona
de si mesma. A rapariguinha magra que fui
despertou dum pranto que durou anos:
agora é como se esse pranto nunca tivesse existido.

E desejo só cores. As cores não choram,
são como um despertar: amanhã as cores
voltarão. Cada mulher sairá para a rua,
cada corpo uma cor – e até as crianças.
Este corpo vestido de vermelho claro
após tanta palidez voltará à vida.
Sentirei à minha volta deslizarem os olhares
e saberei que sou eu: olhando à volta,
ver-me-ei no meio da multidão. Em cada nova manhã,
sairei para a rua em busca das cores.

CESARE PAVESE
Trabalhar Cansa, Cotovia, 1998
trad.:Carlos Leite

7.2.11

"Os Filhos de Teresa"

Se o passado é a matéria da memória, o futuro é o seu tempo. A memória serve-nos para viver e serve-nos para sobreviver. Por esta ou por outra ordem. É preciso não morrer para poder morrer. O inverso também é verdadeiro.
Amanhã no Teatro Nacional D.Maria II, coordenada por mim, LEITURA ENCENADA de "Os Filhos de Teresa", uma peça de Sandra Pinheiro, com Catarina Avelar e Laura Soveral e a participação de 4 alunos da Act (João Canto, Gilberto Rosa, Niuscha, Joana Chandellier). No Salão Nobre, às 19 horas.

1.2.11

gama anti-envelhecimento

Comprou um reafirmante facial, um creme de dia, um creme de noite, uma emulsão hidro-lípida, uma espuma de limpeza, um gel de contorno de olhos, um creme contorno lábios, um creme contorno olhos e uma ampola de vapor facial. Tudo gama anti-envelhecimento. Apesar disso, envelheceu. Deus nunca está contente.