31.12.03

em plena benard

Mandou a fatia de bolo-rei para trás. Não estava em condições. O Empregado perguntou se, nesse caso, desejava outra coisa. Não, não, muito obrigada. Talvez uns scones? Não, não, não lhe apetecia. E, voltando ao seu chá de camomila, Madame Castafiore declarou em plena pastelaria Benard: "Nunca gostei de anos ímpares." Palavras não eram ditas e os seus olhos brilharam. Não me atrevi a perguntar mas alguma coisa tinha acontecido. Madame Castafiore era outra. Não foi preciso esperar muito para que a súbita transformação fosse explicada. O Empregado aproximou-se. Madame Castafiore tinha acabado de se lembrar de umas fantásticas queijadinhas de leite.

30.12.03

definição (1)

"Alcance eficaz: distância à qual uma bala ainda é mortal"
in Manual do Graduado de Infantaria
(citado por Jorge de Sena não sei bem onde)

29.12.03

prenda de natal (3)

A loja estava a fechar. Não era hora de responder com uma graça. A Empregada não percebeu nada. Recuei.

- Eu estava só a brincar...
- Deixe lá, uma pessoa tem que dizer alguma coisa.

Entregou-me os dois cadernos, embrulhados num papel com motivos infantis. Paguei. A dois euros o caderno, do que é que eu estava à espera?

28.12.03

prenda de natal (2)

A Rita ofereceu-me um "moleskine". Por fora tem escrito numa banda de papel laranja: "The legendary notebook of Van Gogh and Matisse, Hemingway and Chatwin. Its history lies in its inside pocket."
Na primeira página escrevi o nome, e-mail e número de telefone. Na segunda página escrevi: o dono deste café costuma chamar-me "querida" mas não foi por isso que vim cá. Estou só à espera do homem do "baccara". Vou comprar um carro.

27.12.03

prendas de natal (1)

Madame Castafiore ofereceu-me uma caixa de "Mon Chéri" e dois livros. Os bombons têm dentro licor. Os livros a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen.

ATLÂNTICO

Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.

26.12.03

sopa de cação

Nos meus tempos de estudante em Coimbra a viagem até Évora durava uma eternidade. Fazia-a três vezes por ano e, três vezes por ano, assim que o comboio partia eu só pensava em duas coisas: na sandes de ovo que compraria na estação do Entroncamento e na sopa de cação que a minha mãe haveria de fazer quando eu chegasse.

Ingredientes: "1kg de cação; 1dl de azeite; uma cabeça de alho; dois molhos de coentros; 1/2 colher de colorau; duas folhas de louro; três colheres de farinha; vinagre; sal; fatias de pão."

Técnica: "Num almofariz pisam-se as folhas de coentros, os alhos e o sal. Num tacho, coloca-se o azeite e frita-se ligeiramente a massa obtida dos coentros e alhos e junta-se o louro e o colorau. Deita-se um litro e meio de água, colocando em seguida o cação, que deverá estar partido às postas. Deixa-se cozer o peixe, não muito tempo, para não se desfazer, e antes de terminar junta-se a farinha e o vinagre, que anteriormente se misturou num recipiente, para fazer um polme. Numa terrina deitam-se as fatias de pão e entorna-se o caldo para fazer a sopa. Antes deverá retirar-se o peixe. Come-se em prato fundo, misturando as sopas com o peixe."

Fonte: "Cozinha Regional do Alentejo", de Manuel Fialho, Publicações Europa-América

25.12.03

s.m.s

Recebi uma mensagem de Madame Castafiore. Ou muito me engano ou é um comentário ao post da noite de Natal: "Você adora esses números à Charles Dickens."

24.12.03

alguma coisa coisa se despedaçou no ar

"De repente, alguma coisa coisa se despedaçou no ar imóvel e uma rajada violenta rodopiou pela estepe, rugindo e assobiando. Um murmúrio saiu das ervas e dos arbustos secos do ano anterior. A poeira elevou-se em espirais na estrada, fugiu através da estepe, arrastando atrás de si palhinhas, libélulas e penas e ergueu-se para o céu numa coluna negra impetuosa que obscureceu o Sol. Através de toda a estepe, flores de cardo voaram em todos os sentidos, oscilando e saltando; uma delas foi apanhada no turbilhão. Volteou como um pássaro, elevou-se no céu, onde se tornou um ponto negro, para depois desaparecer completamente. Uma outra seguiu-a, depois uma terceira, e Iegoruchka viu duas delas chocarem-se no céu, agarrando-se, como para se baterem em duelo."

Acabei "A Estepe", de Anton Tchekov. Tchekov escrevia de tal maneira que até a sua morte parece escrita por ele. "Tchekov continuou a respirar com dificuldade. O médico mandou um dos estudantes buscar oxigénio. - Não vale a pena - disse Tchekov. - Estarei morto antes de eles chegarem. Então o médico mandou vir champanhe. Tchekov pegou no copo, voltou-se para Olga Knipper e disse sorrindo: "Há muito tempos que não bebia champanhe." (in "Tchekov" , de D.Magarshack, colecção grandes biografias, editorial aster).

Desde que a minha mãe morreu que a noite de Natal passou a ser para mim uma pequena tortura. Lembro-me sempre da morte e dos que já morreram. E amarrado a isso vem o rol das coisas que não correram bem, os ventos que não sopraram, as miragens que não soube reter. Na noite de Natal os fantasmas divertem-se comigo que nem uns alarves. Mas hoje à noite vou comer faisão e eu nunca comi faisão. Por isso, vou fazer um esforço e sempre que um fantasma aparecer vou lembrar-me do Sebastião, o neto dos donos do restaurante onde almocei e que me contou que fez de rebuçado na festa da sua escola.

23.12.03

fantasia americana

Não sei se foi no sábado, se no domingo. Sei que o dia estava enevoado quando Madame Castafiore me contou a sua fantasia americana. Tudo se passa numa lavandaria. Ele já lá está. Ela chega. Ela põe a roupa na máquina. A máquina põe-se em movimento. Não trocam uma palavra. Um olhar basta. Quando voltam, a roupa está pronta. Very fast, nice price.
Eu estava atónita. Quando Madame Castafiore voltou a falar disse:
-Plutão vai entrar na minha casa.
Senti-me a mais. Só me ocorreu perguntar:
-Quando? Agora?!
Foi nessa altura que reparei que Madame Castafiore tinha entre as mãos o guia astrológico para 2004.

22.12.03

sociedade por quotas

INT/ DIA INFANTÁRIO DA ROSÁRIO

A Telma é da Musgueira. É uma menina alegre e usa fitinhas com missangas no cabelo. Por isso só surpreendeu tudo e todos porque declarou:

- O meu pai trabalha com o Pai Natal.

Na sala a respiração foi suspensa. Houve olhares, houve sorrisos até que, em coro, a sala exclamou:

-O teu pai trabalha com o Pai Natal?!
-Sim. Todos os dias trás coisas novas para casa.

21.12.03

Light

Não me consigo recompôr. Vou sleepar o powerbook e fazer sopa de cação. Arroz Árabe Light:

Ingredientes:
- água q.b.
- 1 dente alho
- 200 grs de arroz vaporizado
- 1 cebola pequena
- 100 grs de ervilhas
- 100 grs de passas
- 50 grs de pinhões
- sal a gosto

Preparação:
Frite a cebola e o alho numa panela anti-aderente (para não ter de utilizar gordura). Junte o arroz, refogue bem e tempere com sal. Adicione a água, misture e deixe cozer em lume forte. Quando começar a secar, apague o lume, junte as passas e os pinhões, tape e deixe acabar de cozer no próprio calor, vedando bem a panela. receitas do mundo

"google sinto-me com sorte"

Felizmente que o Benfica não jogou ontem. É que ontem não foi o meu dia. Exemplo #1: ofereceram-me como prenda de natal um tapete para o rato. Um pormenor das "Tentações de Santo Antão". Acontece que eu não tenho rato. Exemplo #2: publiquei neste bloque uma receita de arroz árabe. Acontece que o meu arroz árabe leva toucinho. Ainda estou em estado de choque. Já confessei publicamente, e volto a confessar, que até corei ao ler o comentário que o Pedro Aniceto fez ao post, relembrando-me o que é que o Maomé pensava do toucinho. Por isso, fiz uma consulta rápida "google sinto-me com sorte". Aqui fica.

Ingredientes:  
350 gr de arroz
70 gr de margarina
7 dl de água quente
1 colh. sopa de pó de caril
1 cubo de caldo de carne
50 gr de miolo de amêndoa
50 gr de sultanas
1 maçã
Sal q.b.

Receita:  
Pele e lamine as amêndoas; seque-as e torre-as ligeiramente no forno. Lave muito bem as sultanas, descasque a maçã e corte-a em fatias. Leve ao lume a derreter a margarina num tacho, junte o arroz e, sempre ao lume, mexa com a colher de pau durante cerca de 2 minutos, até o arroz ficar com aspecto vidrado. Junte o pó de caril, mexa e junte a água a ferver. Volte a mexer, tempere com sal e deixe levantar fervura. Mexa de novo e rectifique os temperos. Espalhe por cima as amêndoas, as sultanas e as fatias de maçã, tendo o cuidado de não voltar a mexer. Reduza o lume, mas de modo a que não perca a fervura, e deixe cozer em lume moderado durante cerca de 15 minutos, até o arroz estar cozido. Quando estiver pronto, mexa com um garfo e sirva. receitas pedidas

Acho que entre uma e outra, menos toucinho, menos knorr, alguma coisa se há-de arranjar. O Benfica-Estrela é daqui a quatro horas. Já devo ter sido perdoada. Quantos às tintas, continuam as mesmas.

20.12.03

arroz árabe

Fazer fundo com azeite, alho, toucinho, cebola e alho francês. Juntar o arroz e o açafrão e deixar glacear um pouco. Deite o caldo de carne. Deixar cozer e juntar os frutos secos.

arroz vaporizado
50gr. toucinho picado
20gr. passas
10gr. pinhões
20gr. nozes
50gr. alho francês
caldo carne
açafrão
azeite
cebola
alho

Receita lida numa revista. Local: cabeleireiro. Tintas: 5N+5.3.

19.12.03

replay DDR

A minha vida está um caos. Finou-se a velha sony e agora o relvado não cabe na outra. Só consigo ver a bola entrar em replay. Como eu não sou taxista, pagamento por conta e nova sony são incompatíveis. Depois, nunca mais chega o clio parisiense e na minha cabeça já está armada uma grande confusão entre o estacionamento em espinha e o estacionamento entre dois carros. Além disso, tenho poemas e receitas em lista de espera. E filmes.

Ontem fui ver "Adeus, Lenine". DDR 1989-1990. Alexander, com a conivência do círculo que lhe é próximo, esconde à mãe, recuperada de um coma de 8 meses, a queda do muro de Berlim e as transformações que anunciam a extinção do país que, para o bem e para o mal, é o seu.

O enredo, tricotado por peripécias e fait-divers, em que os símbolos falam antes das personagens, serve de uma forma simples e sem rodeios as questões da identidade (e da identificação), do amor (e da entrega), da realidade (e da representação), da cumplicidade (e da partilha). O filme nunca foge, nunca deixa de responder às questões que põe, escolhendo para tal um registo trágico-cómico. E isso é um mérito maior.

Actores, cinco estrelas. Realização: convicta, na relação com o argumento; sólida, na direcção de actores; um tanto irregular quanto à técnica e ao domínio do tempo. Em particular apreciei a construção dos primeiros e últimos 20,25 minutos. Igualmente, tão depressa não me esquecerei da sequência de Lenine aerotransportado. Saí da sala com esta estranha sensação: um filme tocante e frio.

Et voilà! Agora que despachei o Lenine da lista de espera, segue-se o arroz árabe ao jantar.

solilóquio

INT/DIA - INFANTÁRIO DA ROSÁRIO

Mesa de trabalho. Concentrados, o Fábio e o Tiago pintam velas de Natal. A Rosário repara que o Fábio fala sozinho. Não consegue perceber o que diz. Um patati patatá sem fim. O Tiago resolve meter conversa com ele. Mas o Fábio não o deixa prosseguir e, um tanto ríspido, diz para o seu companheiro de mesa:
- Cala-te! Não vês que estou a falar sozinho?!

18.12.03

Cesare Pavese

"Para "possuir" algo ou alguém é preciso não se abandonar a ele, não perder a cabeça, em suma, continuar a ser superior. Mas é lei da vida que "goza-se" só aquilo a que nos abandonamos. Foram pois espertos os inventores do amor a Deus: não existe outra coisa que ao mesmo tempo possa "possuir-se e gozar-se".

(diário) 16 de Novembro (de 1937), "Il Mestiere di Vivire. Il Mestiere di Poeta",
Cesare Pavese nasceu em 1908 e suicidou-se numa noite de Verão do ano de 1950 num quarto de hotel em Turim.

Conheci a obra narrativa de C.P. em Madrid e em espanhol, há mais de 10 anos, quando lá passei uns meses de programa Erasmus. Os livros estavam em saldo nas lojas vip. Agora recordo que comprei também as obras completas de Freud. Fiquei encantada com a busca do essencial, do traço essencial, do ruído essencial, do diálogo essencial, da colina essencial. Toda uma paisagem sussurrada e um tempo reconstruido onde moram os temas do instinto sexual, da aproximação amorosa, da amizade, das origens... É isso que retenho hoje dos belos livros de C.P. lidos à hora da siesta.

«L'unica gioia al mondo è cominciare. E' bello vivere perché vivere è cominciare, sempre ad ogni istante.»

Manuel Bandeira

ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma,
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Manuel Bandeira (1886-1968)

17.12.03

a legenda

"Nas paredes e nas janelas não havia nada que pudesse parecer-se com um adorno. No entanto, havia: uma das paredes estava enfeitada com um regulamento que tinha por cima uma águia com duas cabeças, numa moldura de madeira cinzenta, e noutra das paredes havia, numa moldura idêntica, uma gravura com esta legenda: " Indiferença humana." Qual o objecto desta indiferença dos homens, eis o que era impossível dizer, porque a gravura empalidecera com o tempo, além de estar generosamente coberta de cagadelas de moscas. Um cheiro a fechado e a azedo flutuava na sala"

Anton Tchekov, "A Estepe", Publicações Europa-América, 2ª edição (acrescente-se, cheia de gralhas tipográficas), tradução de Mª do Carmo Santos.

Este post "tchekov" foi patrocinado por Vera, gata nascida no ano de 2001, actual titular do cargo de gatafamilias, por morte da gata Lena ( nickname: Leninha), natural do Largo da Graça e que hoje vê nascer o dia debaixo de uma nogueira, no meu Alentejo natal. Quanto ao Benfica ganhou um a zero e passou à eliminatória seguinte. O Belenenses - não sei porquê as gatas desta casa são todos do Belenenses, tal como o meu irmão António - eliminou o Penafiel. E agora vou acabar "A Estepe". Estou na página 95.

relatório médico-legal

Uma pessoa deita-se descansada e, quando acorda, os problemas são mais que muitos. Fui à cozinha e não havia pão. Pelas vidraças da marquise, vi que o dia estava muito, mas mesmo muito mal encarado. Na rádio, um comentador com voz fúnebre analisava o caso da absorção da Somague por um grupo espanhol ( aliás, com o sugestivo nome de Vallehermoso), dando razão a uma amiga de Madame Castafiore que acha que o outro lado da fronteira tem como desígnio nacional vingar 1640. Mas o melhor estava para vir: a prova de que a jovem Mia não gosta do Natal.

Espalhados pelo chão, e olhando-me com ar de poucos amigos, como se eu lhes devesse dinheiro, todos os berloques e bonequinhos com que alguém resolveu decorar as portas da casa. O felpudo pai natal, fabricado na china, metia dó. Não darei pormenores. Direi apenas que estava reduzido a algodão e pequenos fios encarnados, quer dizer, estava esventrado. Os raminhos de azevinho, à primeira vista sem danos de maior, não aguentaram um exame mais profundo, quer dizer, estavam estraçalhados. As árvores de natal feitas de pasta de papel e feltro dourado estavam irreconhecíveis, quer dizer, feitas num oito. Um massacre. Só não percebi por que terá escapado o barrete do pai natal.

E para acabar a manhã em beleza, quando procurei "A Estepe", minha companhia de ontem à noite e que adormeceu ao mesmo tempo que eu, não a encontrei. Procurei debaixo das almofadas primeiro, debaixo da cama depois, e acabei por me resignar. "A Estepe" desapareceu durante a noite. Não estou certa que tenha sido a Mia. Inclino-me mais para a Vera. A Vera é uma gata rebelde e anda farta de ver o amanhecer da janela de um 3º andar. Também eu, Vera, também eu. Por isso, aqui fica o aviso: "A Estepe", uma novela do meu mais que tudo Tchekov, vai ter que estar na almofada ao lado da minha depois do Académica-Benfica. Tens sete horas, Vera. Nem mais um minuto.

16.12.03

curso de jardinagem

Madame Castafiore tem andado desaparecida. Entre projectos e prestações de serviços - e Madame Castafiore é uma mulher tanto duma coisa como doutra -, frequenta aos sábados, pela manhã, um curso de jardinagem.
Bem sei que nisso sai a sua mãe. Madame Castafiore gosta muito de plantas. Mas vivendo ela num terceiro andar e estando provado que o saber ocupa lugar, por que raio andará Madame Castafiore num curso de jardinagem, pensei.
Ontem falei com ela. Já sabe o que são canas índicas. Mais. Sempre que no curso falam dos ladrilhos e da areia vinda dos rios que cobrem o fundo dos vasos, vem-lhe à memória a queda da ponte. E. Finalmente viu a árvore da sumauma, mistério das almofadas da sua infância. Mas conte-me mais, insisti eu, um pouco inquieta, já que o meu sexto sentido não me largava. Com razão. Entre samambais, trepadeiras e coníferas de rápido crescimento, adubos e compostos, correntes de ar, rega e pulverização, Madame Castafiore confessou que, efectivamente, do que gostava mais no curso de jardinagem era o intervalo. Ao intervalo servem um cafézinho acompanhado por sortido húngaro e broas de espécie.

15.12.03

problema de audição

INT/DIA - INFANTÁRIO DA ROSÁRIO

- Onde é que trabalha a tua mãe? No Continente?
- Não, Rosário, no Intendente.

musgueira norte

redacção: "O que eu penso sobre a minha família"

"Eu acho que a minha família o que só tem de mal é ser pobre, não muito pobre, mas assim, assim porque não pode ter possibilidades de ser rica. E se a minha família fosse rica ajudava os pobres e dava roupa à casa de caridade. Portanto já contei tudo o que penso da minha família, não tenho mais nada para dizer acerca da minha família querida e boa, que é a coisa que eu mais adoro no mundo. Pronto acabei de escrever o que penso.
Igor"
boletim rendimento mínimo, edição especial, ano 1-Julho/98

14.12.03

bombordo, o lado do coração

direita-verde-estibordo. esquerda-vermelho-bombordo.
quando as luzes são iguais não há perigo de colisão.

12.12.03

Anónimo Árabe

A SOLIDÃO

Como todos os dias, espero-a.
Voltará ela?

Penso na noite do nosso adeus,
no ruído da porta que ela fechou sem cólera,
no silêncio que se fez na minha alma.

Como todos os dias, espero-a.
Voltará ela?

Ela entraria dizendo, por falar:
"Passava diante da tua casa.
Venho ver se as rosas
não sofreram com o Inverno."

Ela sorriria ao meu pequeno jardim,
ao horizonte calmo
e estou certo que não voltaria a partir.

Anónimo Árabe, sec.X, "O Jardim das Carícias"

11.12.03

muitos como os chapéus

catorze horas e trinta minutos num café alentejano. dezoito clientes. quinze homens e três mulheres. doze dos quinze homens usam boné. um boné sai. boné e saco de plástico. entram duas gravatas. há música na parabólica. muito metal e uma voz de barítono do exército vermelho. mas podemos continuar. quantos óculos. quantas camisas aos quadrados. blusões versus casacos. sapatos, sapatilhas e botas. mas atenção, muita atenção que nas botas há duas subcategorias: atacadores e caneleiras. nuvens rápidas, sol na objectiva e aí vai disto. é um novo videoclip. continuando, se tivermos o privilégio de ver um homem que usa boné sem boné poderemos ver que a metade superior da testa está branca e metade do cabelo acachapado. o boné tira-se para dormir. em "O Largo", Manuel da Fonseca fala de quando os homens acompanhavam as mulheres à missa, não passavam do adro. não entravam em casas onde fossem obrigados a descobrir-se. desde que idade usam bonés? um boné que se preze está sebento na ponta e as marcas dos dedos não deixam mentir. outra música. uma montagem à maneira. eisentein trial. que vejo eu? vozes com bonés. há bonés na parabólica. americanos. mas bonés, quand même.

10.12.03

"Inscrição"

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

Sophia de Mello Breyner Andresen

9.12.03

"olá, pessoal"

INT/ DIA - INFANTÁRIO DA ROSÁRIO

A Rosário explica aos seus meninos a maneira de saudar os outros, segundo a altura do dia: "Bom dia", "Boa tarde", "Boa noite". No final, o Fábio (a young man de 5 anos, que não vê nada sem óculos e está loucamente apaixonado pela auxiliar) fala em particular com a Rosário:

- Ó Rosário, eu quando chego ao pé dos meus amigos digo: olá, pessoal!

Que podia a Rosário fazer? Dar-lhe um beijinho.
Já, já disse à Rosário para fazer um blogue.

inícios (5)

"Na sala de jantar da minha avó havia um aparador com portas de vidro e dentro desse aparador um pedaço de pele. Era apenas um bocadinho, mas espesso e coriácio, com manchas de pêlo avermelhado e rijo. Esteve preso por um alfinete enferrujado a um postal onde mal se distinguia qualquer coisa escrita a tinta preta, mas, nessa época, eu era demasiado miúdo para saber ler.
- O que é aquilo?
- Um pedaço de brontossauro."

Assim começa "Na Patagónia", de Bruce Chatwin (Quetzal Editores, trad. J.L.Luna). Gostava de escrever como Bruce Chatwin. Gostava de escrever um livro como "Na Patagónia". Vai mais ou menos dar ao mesmo, mas é uma maneira de, em dose dupla, exprimir a minha admiração. Aliás, não é bem admiração. Também não é adoração. As palavras terminadas em ão não me estão a soar nada bem.

Dos ratos dizia a minha mãe que não tinha medo. Tinha respeito. Também não tinha medo das trovoadas, tinha respeito. Pois eu não tenho inveja de Bruce Chatwin. Tenho respeito.

Precisamente há dois anos, pelo Natal e sem nunca o ter lido, ofereci o livro a uma amiga minha. Foi quase um acto de desespero. As lojas estavam a fechar e eu sem a prenda. Mergulhei naquela livraria da rua Cavaleiro de Oliveira e ouvi-o a sussurar: leva-me contigo. Foi um casamento de conveniência. Eu não tinha prenda e ele não queria passar o noite de Natal ali, entre "As Cartas do Meu Moínho" e "O Erotismo Sagrado". Ainda por cima, soube-o depois, temia o pior: de um lado há uma loja de vinhos, do outro uma loja de animais e, naquelas circunstâncias, não era difícil imaginar iguanas, tartarugas, pardais e peixinhos vermelhos a fazer uma visita à espirituosa loja, tendo para isso que passar pela livraria e, muito provavelmente, por cima dele. E se isso poderia não incomodar à ida certamente à vinda outro galo cantaria. Mas atenção, ele não se estava a queixar. Apenas aspirava à liberdade ou, pelo menos, a um pouco de ar fresco. Tal como as iguanas, tartarugas, pardais e peixinhos vermelhos. Mandei-o embrulhar, paguei e saí da livraria sem olhar para a loja de animais. Também não olhei para a loja dos vinhos.

Ofereci o livro e pedi-o emprestado (por esta ordem). De então para cá já ofereci para aí umas quatro patagónias. Esgotei o stock da livraria mais perto de casa. E continuo sem ter o livro. A próxima vez que for à fnac não saio de lá sem a minha própria patagónia. Há livros que uma pessoa tem mesmo de ter.

"In Patagonia", título original, foi publicado em 1980. Bruce Chatwin morreu. Mas continua a ser amado por muitos, nomeadamente, pelos que nunca viajaram, como eu. Não é bem verdade. Há dois anos, pelo Natal, fiz uma viagem inesquecível à Patagónia. Este ano ainda não sei onde vou passar o Natal. Mas vou escrever ao Menino Jesus a pedir-lhe um bocadinho de brontossauro.

8.12.03

o ventilador do metro de Nova Iorque

"Existem mais livros sobre Marilyn Monroe que sobre a Segunda Guerra Mundial. Há uma certa semelhança entre as duas. Era o inferno, mas valia a pena."

Billy Wilder
dirigiu MM em "O Pecado Mora ao Lado" (The Seven Year Itch) e "Quanto mais Quente Melhor" (Some Like It Hot). Creio que foram só estes dois que fizeram juntos. Lembrei-me da Marilyn por causa do meu trabalho actual, não por causa da 2ª GG. Mas vale sempre a pena lembrar Billy Wilder.

7.12.03

"Inscrições Sobre as Ondas"

Mal fora iniciada a secreta viagem
um deus me segredou que eu não iria só.

Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que deus me segredou.

DAVID MOURÃO FERREIRA

6.12.03

Rua do Passadiço

Mesmo agora me levantei e já estou atrasada. E ainda não li o jornal de ontem. Só tive tempo de ir ao café do guarda-chuva amarelo e beber duas bicas. Não havia muita gente. Talvez por isso, a discussão entre as duas mulheres ouvia-se perfeitamente. Era sobre como chegar à Rua do Passadiço, se virando duas à direita de quem sobe, se logo na primeira à esquerda depois de. Até que o empregado resolveu intervir. Chegou ao pé das duas mulher e disse nas calmas:
- Depois não me venham dizer que o café está frio.

4.12.03

prisão

"Prisão. É a coisa que consigo imaginar mais aproximada de fazer um filme."
Eminem, depois de "8 Mile"

Hoje é o meu dia de folga.

o pai natal e o código postal

INT/DIA - Infantário. Diálogo na sala da Rosário:

- O meu irmão diz que são os pais que dão as prendas...
- Onde é que tu moras? É que depende do sítio.

3.12.03

hoje não temos molotov

Madame Castafiore convidou-me para almoçar. Pediu peixe. Madame Castafiore estava muito aborrecida. Primeiro porque gosta de pastéis de nata pela manhã mas depois fica arrependida e, sobretudo, enjoada. Já não se pode ter uma fraqueza. Segundo porque, no trabalho, foi acusada de ser "muito directiva" por uma serigaita (definição: mulher com madeixas que anda a fazer um mestrado). E a prova de que a vida não lhe anda a correr bem estava ali à sua frente. O peixe que pediu era, afinal, congelado. A filha do dono do restaurante enunciou a lista de sobremesas: pudim flan, mousse de chocolate, mousse de ananás, doce de manga, baba de camelo, doce da avó, arroz doce, pudim de ovos. E molotov? Hoje não temos molotov. A filha do dono do restaurante repetiu a lista. Madame Castafiore acabou por decidir-se: pudim de ovos. No fim, eu paguei a conta.

1.12.03

amores integrais

Um amor passado visitou-me. Com esta vida que tenho levado, o frigorífico tem estado ao abandono. O jantar seria fora. Mas convém ter em casa alguma coisa para trincar. Comprei à pressa laranjas e bolachas. Não sou muito dada a distracções mas não sei o que me passou pela cabeça para ter comprado um pacote de bolachas que tem impresso o nome de "amores integrais". Hoje arrumei o pacote. Faltavam duas bolachas. E encontrei no quarto um policial esquecido: "O Cheiro da Noite". Apeteceu-me chorar.

29.11.03

Tatiana Chtcherbina

"E o meu coração já não bate
na minha voz, de alegria e tristeza.
Acabou...e o meu canto galopa
para a noite vazia, onde tu já não estás.

Ardo em febre, a minha cama é uma lareira,
deliro, que num automóvel vou deitada,
e como num obus, ou mina despoletada,
quebra-se a minha cápsula em poeira.
Cobre-me como pó-de-arroz uma luz viscosa,
que me crucificasse para a benção do céu,
não passarei invisível sob cortina ou véu:
colam-se às janelas os carvões, dos telhados
das torres, tristes como lares apagados,
olham, roçam as cascas, receando
a luz quente das cascas da ostra-veículo,
e a mim não me larga a viscosidade da vida."

Tatiana Chtcherbina
(Munique, 1992)

28.11.03

daqui é o pai natal

A Rosário, a minha vizinha do 2º andar, veio cá antes de jantar devolver-me o escadote. Aproveitou para me contar as suas aventuras no trabalho. A Rosário é educadora de infância. Hoje, quando chegou ao Jardim Escola, a auxiliar fez-lhe queixa de dois meninos que se andavam a bater. A Rosário diante dos outros meninos exclamou: "Por isso é que o Pai Natal me telefonou ontem à noite!". E contou-lhes a conversa:

- Pai Natal, como é que tem o meu número de telefone?
- Rosário, não sabe que eu sou mágico? (silêncio) Então diga-me lá, como é que se têm portado os seus meninos?
- Muito bem, Pai Natal, muito bem.
- Não me minta, Rosário.

27.11.03

rosas

Quando o paquistanês entrou no bar com um brinco luminoso e uma braçada de rosas para vender, o homem que estava comigo disse-me que deve ser muito chato para uma mulher que lhe ofereçam uma rosa no princípio da noite. Achei que tinha toda a razão. Os problemas são mais que muitos: ele é o caule da rosa sempre demasiado comprido, ele é a rosa que pica, ele o transporte da rosa dum lado para o outro and so one. Perde-se o romantismo mas também o incómodo. E poupa-se um euro. Foi então que me lembrei do meu horóscopo do dia anterior e quando cheguei a casa voltei a consultá-lo:" En el amor, tu postura será mágica y ella se enterará. Un consejo: dile que su piel huele a rosas."

26.11.03

a balada inglesa

Reparei nela ainda o 18 não tinha saído do paragem. Sentei-me à sua frente. Ouvi-lhe a voz: estava a cantar uma balada inglesa. O autocarro arrancou, o sol batia-me na cara e na minha cabeça ressoava a balada inglesa. Ao começarmos a descer a Afonso III começou também o monólogo :"Óptimo. Este vai directamente para a carrinha da metadona". Parecia contente. E voltou à sua balada, agora também minha. Mas de um momento para o outro desatou a praguejar contra os médicos. Elevou o tom e gritou para o motorista: "Este autocarro vai para Chelas?" Eu virei-me para trás: "Vai". "E sabe se passa na carrinha da metadona?". E eu não sabia. Levantou-se repentina e fez meio autocarro a gritar para o motorista:"Ó senhor, este autocarro passa na carrinha da metadona?" Não sei o que o homem lhe respondeu. Sei que desceu na paragem seguinte. Quando a vi pela janela do autocarro, cabelos em desalinho e carteira a saltar do bolso de trás das calças, levava um cigarro na boca, ainda por acender. Parecia zangada. Ou então ia simplesmente a cantar a balada inglesa mas à sua maneira.

25.11.03

dominó

tenho no porta-chaves dois micro cartões. um diz "clube mini-preço", o outro "dominó". da utilidade do primeiro ainda faço uma ideia: com o talão da conta, recebo vales de desconto. é certo que raramente os utilizo ou porque não sei onde páram ou, se sei, o prazo de validade já lá vai. quanto ao cartão dominó, do pingo doce, permanece o enigma: para que serve? todavia, sempre que, na caixa, a empregada me pergunta se tenho cartão dominó, saco pronta e, desconfio, mesmo alegremente do porta-chaves. Ah! esta absoluta necessidade de pertencer a...

Nana Issaia

A ALTERNATIVA

"Onde é que estamos ?" perguntei-lhe uma vez
por causa do palidíssimo aspecto
de um sol nórdico.
Havia uma tonalidade de não sermos nós.
Só um castelo no ar
E o registo de um passado inútil.
"Ou tu ou a minha arte".
Que ultrapassada alternativa!
Porque era tarde de mais.

Nana Issaia

(tradução: Ana Hatherly)

24.11.03

promoção

coisas que acontecem a um cidadão francês, residente em Portugal, ao aderir por telefone a uma televisão por cabo:

- nome?
-(...)
-nº do passaporte?
-(...)
-qual é o seu clube?
-como?
-qual é o seu clube?
-bom...não sei...o Benfica.
-Óptimo! Tem 5% de desconto.

21.11.03

na flôr do império

Lisboa, antes de almoço. Mal entro, dirigo-me directamente ao empregado que serve às mesas:"uma bica curta". Acompanho as palavras com um gesto de aproximação polegar-indicador. Se há coisa que pode afectar o meu humor matinal, que já de si não é famoso, é o tamanho da bica.

Instalo-me. Dois jornais sobre a mesa. Fico indecisa entre a bola e o dn. A coisa tem a sua importância: se escolher o dn começo a ler da última para a 1ª página, se for a bola da primeira para a última página. Chega a bica. "Traga-me um cinzeiro, se faz favor". O empregado atira tolhas para cima das mesas vazias. "É só?" ouço o outro empregado, atrás do balcão. A criança à minha frente agarra-se à mesa e espera que a avó acabe de pagar a conta. O empregado continua a atirar toalhas, guardanapos, facas, garfos, pratos, tudo para cima da mesa, tudo menos cinzeiros. Levanto-me e vou buscar um.

A avó pega na criança ao colo: "Upa!". Cai um copo na cozinha. O patrão espreita. Ao balcão a avó pede: "Duas pastilhas pirata". Ouço a máquina registadora fazer ronron. "Ó André pára quieto antes que eu me zangue". Não pára. A avó põe a criança no chão. Birra para que te quero. A avó desembrulha num ápice uma pastilha. É tarde,demasiado tarde. Há lágrimas absolutamente incontornáveis, como na política, e uma birra é assim mesmo, como no futebol. É inútil pedir a segunda bica. A criança não se cala, o cheiro a fritos invade o café, são 11: 44 e não há paz na flôr do império.

19.11.03

dicionário: A de Arma

“As primeiras e toscas armas de fogo fizeram sua aparição na Europa nos primórdios do séc.XIV. Eram, a princípio, inseguras e pouco eficientes, maslentamente seu design e poder foram evoluindo, até que, no séc.XVI, já começavam a dominar os campos de batalha. Dai por diante, sua história se confunde mais ou menos com a de inventores em busca de métodos para melhorar o desempenho das armas de fogo. Alguns deles eram pessoas de destaque, e estranhas algumas das novas ideias; alguém chegou a propor disparar balas redondas nos cristãos e quadradas nos turcos.” - Frederick Wilkinson, Armas de Fogo, colecção Prisma, Edições Melhoramentos



A minha Vida permaneceu - Uma Arma Carregada -
Deixada pelos Cantos - até que um Dia
O Dono passou - identificou-me -
E levou-me consigo -

E agora Nós vagueamos pelos Bosques Soberanos -
E agora Nós caçamos a Corça -
E todas as vezes que falo em Seu Nome -
As Montanhas de imediato respondem -

E então sorrio, uma luz tão amistosa -
Sobre o Vale resplandece -
Como se a face de um Fósforo
Seu prazer irradiado tivesse -

E quando à Noite - Nosso belo Dia acabado -
Guardo a cabeça do Meu Senhor -
É melhor do que as Penas de Pato
Da funda Almofada - ter partilhado -

Para o Seu inimigo - sou inimigo mortal -
Não se move duas vezes -
Aquele a quem lanço um Olho Amarelo
Ou um Polegar decidido -

Embora mais do que Ele - possa eu mais tempo viver
Ele - mais do que eu - viverá
Porque tenho apenas o poder de matar,
Sem ter o poder de morrer -

Emily Dickinson


Encontrei esta senhora há uns anos numa biblioteca pública. De então para cá não deixei de pensar nela: Emily Dinckinson (Amherst, Massachusetts, 1830-1886).

O passeio dos AAAAAAAA não tem fim: Amor Ardente, Alentejo, Às de Copas, Arafat, Aurora ,a do meu amado Murnau, mas também podia ser a bela Aurora, Ártico/Antártico, Amália, Alma, Atlas, Água do Luso, Antologia, Amesterdão, Amsterdam, Ah, Adília Lopes,e o AndyWarhol fica para a letra W .

18.11.03

ó-ó

É tão bom fazer ó-ó!

16.11.03

noite

Tantas estrelas!
Tantos micróbios nesta atmosfera...

Andrei Voznessenski

14.11.03

molotov

Madame Castafiore festeja todos os anos o S.Martinho. Este ano não o fez. É esta a explicação que Madame Castafiore encontra para ter chumbado no exame de código. Nem o pudim molotov que Madame Castafiore comia enquanto me contava o sucedido conseguiu evitar a tristeza nos seus olhos.

13.11.03

regresso a casa

Uf!!De novo em Lisboa. Quando entrei em casa, vi os olhinhos azúis da Mia. Lá estava ela à porta do meu quarto. A Vera só apareceu uns minutos depois. Passou por mim como cão por vinha vindimada. De nada valeram os apelos "Vera, ó Verinha" corredor fora, pé ante pé, com uma pensada colocação de voz e um sorriso inevitável. Tanta figura de parva que aquele corredor já viu. A Vera, entretanto, entrincheirou-se debaixo da cama, certamente disposta a dar-me baile, mas fiz das fraquezas forças e não me ajoelhei. Fui para a sala, onde a Mia praticava com toda a sua arte e engenho derrapagens no tapete. O Marítimo marcou de livre directo. A Vera apareceu na sala. Aposto que só para ver a minha cara enquanto a tv passava as imagens ao ralenti. Mas eu troquei-lhe as voltas e olhei para ela e pude, enfim, ver-lhe os olhinhos verdes. Atirei ao ar um papelinho amachocado, acompanhado de um "busca" especial para gatos, e a Vera deu-me o privilégio da sua companhia durante uns minutos. O Benfica empatou. Mas a noite não foi sempre assim tão previsível. À minha espera, no meio de avisos de pagamentos, dois números dos "Brados do Alentejo", convites para estreias que já estrearam e basta publicidade, estava uma cartinha do senhor irs com um cheque da dona direcção-geral do tesouro. Por isso, a primeira coisa que fiz hoje mal pus um pé na rua foi encaminhar os meus passos para o banco.

11.11.03

inícios (4)

Pelas nove da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação de Évora. Nos meus membros espessos, no crâneo embrutecido, trago ainda o peso de uma noite de viagem. Um moço de fretes abeirou-se de mim, ergue a pala do boné:
- É preciso alguma coisa, senhor engenheiro?
Dou-lhe as malas, digo-lhe que há ainda um caixote de livros a desembarcar.
- Então é dar-me a senhazinha, senhor engenheiro.
- Mas não me trate por engenheiro. Sou professor do liceu.

"Aparição", Virgílio Ferreira, Liv.Bertrand

Já li a Aparição várias vezes. Ainda não tinha um ano quando fui para Évora. Saí de lá aos 19. Regressei e voltei a sair. Hoje não é fácil para mim voltar. Não sei se por já não existir a casa dos meus pais, se por a cidade ter à superfície outro andamento. Sei que me custa lá voltar. Mas nunca abandonei Évora. E quando quero visitar Évora leio umas páginas da Aparição.

9.11.03

segredos de cozinha

Desde a uma da tarde que começei a ouvir falar do eclipse da lua. Há mais de quarenta anos que oiço falar de eclipses da lua. Olha, não te esqueças, dia tantos, não te esqueças, amanhã, às tantas horas, ontem, não viste o eclipse da lua?! Já lhes perdi a conta e, pior, já estou um bocado farta de tanto eclipse da lua. Prefiro falar da bela sopa de cogumelos que comi ontem ao jantar. Soube-me tão bem que não resisti e pedi a receita ao cozinheiro. Bom apetite.

Ingredientes, técnicas e notas de rodapé: alho francês, cebola (tudo muito picadinho, especialmente a última) e uma noz de manteiga. Refogar. Laminar cogumelos (daqueles branquinhos e pequeninos, que costuma haver no sítio do costume e de que não faço ideia do nome em latim; em compensação aqui ficam os termos em alemão e holandês, respectivamente: pilze, paddestoelen). Refogar. Juntar água, farinha q.b. e mexer, de modo a engrossar o caldo. Deixar ferver. Juntar natas (mas das boas, recomendou-me um pouco rispidamente o cozinheiro), temperar a gosto (não confundir com agosto, avisou-me a S. do outro lado da mesa). Deixar levantar fervura e está pronta.

Uma última nota, que o cozinheiro omitiu, creio que dolosamente: esta sopa sabe particularmente bem em noites de eclipse da lua. Confirma-se. A lua tem os seus segredos.

7.11.03

viagem à natureza

Quando o dia de folga é durante a semana vou sempre ao banco e ao lidle. Nesse dia resolvi também fazer uma viagem à natureza.

Saí do hotel à hora em que o sol deixa a piscina. Sigo ao longo do rio em direcção ao mar. Jordan & Nunn landmark, sinais de stop e cataplanas xxl. Encontro o bomba superliga quase debaixo da última ponte e eis-me na Rua das Salinas. Vêm-me à memória “A um Deus Desconhecido”.

Um enorme placard publicitário anuncia “o último paraíso”. Por detrás, uma antiga fábrica. Interroga-me se terá alguma coisa a ver com Jordan & Nunn landmark. Vigilante, a um dos portões surge um jovem gato. Faço o melhor que posso: o melhor sorriso, o melhor olá. Nada. Não obtenho resposta. Apenas uns olhos espantados e um recuo estratégico. Vá lá, vá lá, não fugiu. Adeus gatinho. Contorno uma baia direccional. Há água dos dois lados da estrada. Na curva, aproxima-se o comboio turístico em sentido contrário ao meu e eu aproximo-me cada vez mais da natureza.

Há muito que deixei a Rua das Salinas mas isso não impede que me lembre de “O Leopardo”. Adiante. A linha do horizonte, a vegetação mediterrânica, a água e, confesso, mesmo as nuvens, vão tomando conta do cartão de 64MB da câmara digital. Avisto uma cadeira de verão que jaz no meio da água. Enquadro um pouco indecisa, tantas as possibilidades de belo efeito. Disparo. Nada satisfeita, afasto-me do objecto e quando vou para reenquadrá-lo eis que leio no visor “mémoire insuffisante” (o menu em francês é a minha pequena homenagem a Proust). Mas quem me conhece sabe que eu nunca iria para uma viagem à natureza sem estar prevenida quanto baste. Saco, pois, do cartão de 32MB. Hesito na resolução. Não. Aquela cadeira merece a mais alta resolução. Mas a natureza é indomável. Nessa altura uma nuvem tapa completamente o sol e sem luz não há palhaço. Um passarinho piu-piu começa a enervar-me.

Espero. Atrás de mim passa um automóvel da categoria de ligeiros a ultrapassar o limite máximo de velocidade instantânea. Aproveito para fumar um cigarro desactualizado (diz simplesmente “os menores não devem fumar”). O sol liberta-se da nuvem e eu volto à minha cadeira. Já está.

Continuo na direcção ao mar. Mas é nos detalhes que mora o segredo da viagem e eu substimei os detalhes. É certo que cheguei a tempo do último barco mas como sou a última e única passageira
e do outro lado já não há passageiros, o homem do leme traça-me o destino em duas penadas: se quiser ir, pois vá, vá, mas mal terei tempo de pôr o pé em terra porque ele regressará logo a seguir. As contas não eram difíceis de fazer: eu não poderia exclamar como pensei durante todo o caminho: Ah! O mar! Que espectáculo colossal. “Venha cá amanhã”. “Amanhã não posso, estou a trabalhar”. Boa tarde, mar. De modo que volto para trás, vejo o sol a pôr-se por detrás de uma palmeira e lembro-me estupidamente de “Palmeiras Bravas”.

Passo pelo placard ao pé da antiga fábrica e traduzo quase instintivamente: “the last paradise”. Procuro o jovem gato e não o vejo. Estou outra vez na Rua das Salinas. Vêm-me à memória “A um Deus Desconhecido”. Hora mágica. O letreiro da galp já está iluminado e eu gasto o último MB desta viagem porque se há coisa bonita neste mundo é uma bomba de gasolina iluminada.

Já na cidade, entro numa mercearia, taberna, drogaria e, até, um pouco estância que me faz lembrar a minha infância. Não há Ventil Ligth e compro um ramo de oregãos. E assim quando entrei no cybercafé trazia dentro da mochila a natureza. Ainda ali está, no bolso exterior do saco de viagem.

1.11.03

dunas

NO LIMIAR DA CASA

Estar sentado nas dunas. Não ver
Senão sol. Não sentir senão
Calor. Não ouvir
Senão quebrar as ondas. Entre duas
Pulsações acreditar: Agora
Há paz.

GUNTAR KUNERT

31.10.03

(...)

(...)
A noite chega. O mocho voa. É nessa altura
Que lembram histórias de ingénuas avós...
Entre as moitas, além, há fontes cuja voz
É um rumor de assassinos tramando conjuras.

P. Verlaine

29.10.03

efeitos colaterais

“O fumo contém benzeno, nitrosaminas, formaldeído e cianeto de hidrogénio”. É o que está ali escrito, ali, mesmo à minha frente no Ventil Ligth, ao lado de duas chávenas de café. Pelo sim, pelo não, verifico se no pacote de açúcar há algum aviso. “Desejamos-lhe um óptimo café Nicola”, “açúcar granulado distribuido por Nutricafés”, “consumidor@nutricafés.pt”, “Empacotado por:sugapack”. Do outro lado do pacote uma grata surpresa matinal: “Se um Nicola agrada a muita gente, dois Nicolas agradam a muito mais”, assinado: Bombeiros AutoEuropa. Aparentemente o pacote de açúcar não contém nenhum aviso. Azar o meu: fumo e não ponho açúcar no café quando o que estaria certo seria não fumar e pôr açúcar no café. Vou passar a estar mais atenta aos avisos. É que há efeitos colaterais verdadeiramente devastadores. No trabalho, por exemplo. Ando a registar num caderninho azul petróleo com espirais pretas palavras que nos saem da boca para fora em ocasiões de abuso de trabalho:

.ao telefone (no quarto, a olhar para o despertador a menos de 6 horas da alvorada, converso):
- E que nome é que destes ao gato?
- Ramesés.
- RAM quê?
- Ramesés, a dinastia dos faraós, não conheces?
- Conheço. De nome.

.na rua (de regresso ao hotel, pergunto):
- Vais jantar?
- Não sei. Eu chego ao quarto e penso: deixa-me tomar banho que eu vou morrer.”

.no carro (por volta da meia-noite, a caminho do restaurante, sob chuva intensa, com a janela aberta, respondo):
- ´tás com calor?
- Preciso de apanhar ar. Tenho o cérebro um bocado acamado.

.na carrinha (à hora de almoço, antes de recomeçar a trabalhar, ouço):
-E o teu namorado donde é? Não é de lá?
-Não.
-Não me digas que conheceste o gajo na noite?! Que horror!

.no bar do hotel (fora de serviço, sem empregado, apenas com as cadeiras disponíveis, após 18 horas de trabalho, um estagiário que não se quer sentar):
-Desculpem lá, mas eu ainda não percebi: o que é que vocês estão aqui a fazer?

.no mesmo bar, pouco depois, alguém que chega atrasado:
-Fazer cócó é tão bom!

A minha vida está cheia de benzeno, nitrosaminas, formaldeído e cianeto de hidrogénio. Mas está cheia de pessoas e isso dá-me prazer. Não sei se poderá parecer pretensioso escrever que viver é um vício. Teria que pensar melhor no assunto. Pensar cansa, como diz o Fernando. E viver também cansa, como diz o José. E fumar também cansa, digo agora eu a olhar para a folha de serviço. Começo a trabalhar daqui a uma hora. Interior/Exterior - Noite. Até amanhã.

26.10.03

O ANJO DAS PERNAS TORTAS

"A um passo de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés. o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.
Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento
Dribla mais um, mais dois, a bola trança
Feliz, entre seus pés — um pé de vento!
Num só transporte a multidão contrita
Em acto e morte se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.
Garrincha, o anjo, escuta e atende: Goooool!
É pura imagem: um G que chuta um o
Dentro da meta, um l. É pura dança! "

VINICIUS DE MORAES
("Para Viver um Grande Amor", Editora Sabiá, 1962, 6ª edição)

Ontem foi inaugurado um novo Estádio da Luz. Assim que puder, apanho o metro em arroios, mudo na baixa-chiado e vou lá. Gritar esseelbeesseelbeesseelbe. Antes tenho de pôr as quotas em dia e renovar o meu kit futebol - na mochila: cachecol, camisola, rádio palito e respectivos auscultadores, e uma garrafa de água do luso; nos bolsos: o cartão, o bilhete, 10 euros e a rolha de uma garrafa de água do luso (e se o jogo for de importância extraordinária, também a coleira da gata leninha); e no coração sempre a lembrança do meu pai.

23.10.03

problemas técnicos

não sei fazer links nem responder aos comentários, pelo que peço desculpa por esta aparente indiferença. espero amanhã, sexta-feira, dia de folga, suprir esta ignorância.

cummings

Um destes dias ao jantar, enquanto esperávamos um bife com pimenta, uma jovem falou-me da sua paixão pela poesia de E.E.Cummings /e.e.cummings e do seu desespero por não encontrar uma edição dos 74 poemas. Este é mesmo aquele género de problemas a que eu sou muito sensível. O outro é que já passava da meia noite e éramos 30 pessoas à espera de bifes, uns com pimenta, outros com cogumelos, é certo, mas ainda assim à espera.

"agora todos os dedos desta árvore (querida) têm
mãos,e todas as mãos têm pessoas;e
mais cada particular pessoa está (meu amor)
viva do que todos os mundos podem entender

e agora tu és e eu sou agora e nós somos
um mistério que nunca acontecerá,
um milagre que nunca aconteceu-
e brilhando este nosso agora tem de se tornar depois

o nosso depois será uma treva durante a qual
os dedos estão sem mãos;e eu não tenho nenhum
tu;e todas as árvores estão(qualquer uma mais do que cada
sem folhas) o seu silêncio em eterna neve

-mas nunca temas (meu,meu belo
meu florescer) pois também o depois é até"


e.e.cummings /
E.E.Cummings

21.10.03

sul

um dia destes tive de deitar o resto duma maçã para o chão. na terra onde eu estou as ruas não têm papeleiras. um dia destes passei três vezes pela mesma rotunda. na terra onde eu estou as ruas não têm o nome espalhado pelas esquinas. na terra onde eu estou às vezes falam comigo em inglês e às vezes põem-me os cabelos em pé com tanta falta de stress. mas eu gosto de olhar para as bicicletas que circulam sem medo e de ver os cães deitados ao sol da terra onde eu estou. acabei de ouvir um comboio a passar. mais para o sul. sempre para o sul da terra onde eu estou.

18.10.03

a carta de condução

Aos 18 anos pensei tirar a carta de condução. Arranjei o atestado médico. Para nada. Não cheguei sequer a inscrever-me em nenhuma escola de condução.
Aos 27 anos pensei tirar a carta de condução. Arranjei o atestado médico. Comprei o livro do código. Para nada. Voltei a não me inscrever em nenhuma escola de condução.
Aos 39 anos pensei tirar a carta de condução. Arranjei o atestado médico. Comprei o livro do código. Inscrevi-me finalmente numa escola de condução, talvez por ficar do outro lado da rua. Para nada. Fui a 10 aulas de código, deprimi e desisti.
Em Junho passado, pouco depois de ter feito 46 anos, pensei tirar a carta de condução. Comprei o livro do código. Voltei a inscrever-me numa escola de condução. Fui a trinta aulas de código. Aprovada com uma resposta errada.
Há 3 dias, levantei-me às 8 e meia da manhã e, equipada coma minha camisola de marinheiro russo, fui beber uma bica ao café onde vi pela última vez o meu guarda-chuva amarelo. Dei-me conta de que me tinha esquecido da carteira e voltei a casa. Aproveitei e meti também na mochila o que encontrei de mais parecido com um amuleto: a coleira da minha gata Lena. Então sim, segui para os Olivais onde me esperava o senhor examinador. Já passaram três dias mas ainda continuo convencida de que se não tivesse voltado atrás e metido na mochila a coleira da Leninha não teria passado no exame de condução. E, no meio disto tudo, esqueci-me de ir pagar a bica ao café onde vi pela última vez o meu guarda-chuva amarelo

14.10.03

vera & mia

"Um cão, eu sempre disse, é prosa;
Um gato é um poema."
Jean Burden

Lido em "Assinar a Pele", antologia de poesia contemporânea sobre gatos, Assírio & Alvim. Amanhã vou sair de Lisboa. Estarei ausente cerca de um mês. Os meus dois poemas ficam por cá. Quando voltar, já sei, vão fazer de conta que não me conhecem de lado nenhum. E eu, mesmo sabendo isso, não vou ser capaz de fazer de conta que não me fazem falta nenhuma.

13.10.03

"COMO LUXO DESNECESSÁRIO"

"Como luxo desnecessário
Foi proibido o fabrico daquilo a que as pessoas
Chamam lâmpadas
Pelo rei Tarso de Xautos,
Cego
De nascença."

Gunter Kunert

12.10.03

breillat

"O cinema pornográfico não existe. Nos filmes pornográficos não há cinema.", Catherine Breillat

madame castafiore e as padarias

Madame Castafiore não gosta de empregadas de padarias. Acha o diálogo escasso e mal humorado. Já tentou tudo, desde os temas mais rebuscados, como padrão e variantes de roscas ou o pãozinho de leite no contexto europeu, aos mais simples,v.g, misturas e pão de mafra , sem encontrar feedback à altura. Reconhece que já conseguiu arrancar-lhes alguns sorrisos e confidências mas quase sempre à custa de pequenos gestos de suborno, como abastecer-se dos derivados que ocupam o balcão das padarias (dois rissóis de camarão, 2 pastelinhos de bacalhau e um queijinho fresco, por exemplo, dão direito a um comentário sobre o antes e o depois do arrumador da rua, à descrição pormenorizada e em discurso directa da gracinha do netinho mais velho e à previsão metereológica para os dias seguintes). Madame Castafiore também não aceita ser discriminada. As empregadas mostram os dentes e a língua solta-se mal "as suas amiginhas" põem um pé no estabalecimento. Para essas há sempre um saquinho com roscas quentinhas escondido debaixo do balcão. Na opinião de Madame Castafiore, as empregadas mais perigosas são as de cabelo arranjado.

11.10.03

uma pinguinha de vinagre

À hora de jantar, e antes da Albânia ter empatado, a vizinha do 5º andar mandou cá abaixo um dos miúdos pedir vinagre. A família do 5º andar é numerosa, tão numerosa que ainda não percebi bem quantos lá vivem. São tantos que teve de ser requisitado um segundo contentor de lixo. São tão diferentes dos outros andares que são os únicos que não têm cão nem gato. Vieram para aqui há quase um ano. O prédio deixou de ter sossego e em vez disso passou a ter vozes e correrias nas escadas. Também aproveitam as escadas para cuspir e apagar cigarros. E deixam carrinhos de bébé e bicicletas na entrada do prédio. O prédio não gostou de perder assim espaço e recato e sofre em aparente e ressentido silêncio. Um dia destes, a vizinha do 4º bateu-me à porta e perguntou-me se eu reparei que no dia anterior a EDP tinha cortado a luz do 5º. E a vizinha do 1º tenta sacar-me informações sobre umas discussões a meio da noite de terça para quarta. Eu desvio a conversa, tudo muito nos conformes. Mas qualquer dia tenho que lhes dizer o que é que acho. Eu acho que eles deram vida ao prédio e, descontando as cuspidelas e os cigarros marotos, gosto de ser vizinha deles.

inícios (3)

"Se realmente estão interessados nisto, a primeira coisa que desejarão saber é o local onde nasci, o modo como passei a minha estúpida infância, a ocupação dos meus pais, o que fizeram antes de eu nascer, e tudo o mais, como se se tratasse de David Copperfield. Mas eu não estou com disposição para isso, se, de facto, querem que vos conte a verdade."
É assim que começa "Uma Agulha no Palheiro", de J.D.Salinger, trad.J.Palma-Ferreira, Ed.Livros do Brasil. Li este livro o ano passado. Em português, infelizmente. Parece ser complicado de traduzir, a começar logo pelo título, segundo a nota do tradutor. Um livro very,very interessante. Processos mentais, rotinas e aventuras dum rapaz americano.

o Miguel fez ontem anos

Conheço o Miguel desde 1993. Ele era estagiário no trabalho que estávamos a fazer. Entre nós havia (e continua a haver, mas agora com menor impacto) uma diferença de idades razoável. Fizémos mais dois trabalhos juntos e ele ensinou-me uma coisa que continuo a aplicar quase religiosamente: quando acabava um trabalho que lhe esgotava o tempo e a energia comprava sempre uma prenda para si próprio. Uma prenda que valesse a pena, uma coisa que quisesse mesmo ter, e, de preferência, cara. Passei a seguir a sua receita. E ela tem-me ajudado a viver. Às vezes, é só mesmo a prenda que faz sentido, é só mesmo dela que me lembro. Apagam-se as onze, doze, treze, catorze horas de trabalho por dia, seis vezes por semana, e fica a prenda. Apagam-se as parvoíces e incompetências a que se teve de assistir muito disciplinadamente e fica a prenda. Fica uma coisa que nós dá prazer no lugar daquilo que nos causou sofrimento ou tédio ou vontade de fugir dali.
Parabéns, Miguel!

9.10.03

dicionário: G de Guronsan

vendido em embalagens de vinte comprimidos, o Guronsan é uma das grandes invenções da moderna indústria farmacêutica, recomendado para todas as situações de imperativo e categórico afastamento da ressaca e cuja composição e demais elementos se mencionam sem mais percas de tempo: glucuronamida(400mg)-ácido ascórbico (500mg) ,cafeína (50mg),excipiente q.b.p (1 comprimido efervescente), excipientes a mencionar (sacarose, sacarina e sais de sódio, contendo cada comprimido 570 mg de sódio); modo e via de administração: oral; ver o folheto informativo que acompanha as embalagens.

8.10.03

"As Cadeiras Lésbicas"

"Na salas só havia uma cadeira
e elas eram duas
como quer fazer isto ?
no chão não é próprio
está sujo
ao colo parece mal
e assim as duas ficaram de pé
bem afastadas
uma da outra
e a cadeira ficou sentada"

Adília Lopes

canas índicas

hoje é dia 8, dia de pagar a renda. olhei para o calendário e lá estava: um 8 no próximo mês, e no outro e no outro. fechei o iCal. é nestas alturas que preciso de apanhar sol.
todos os clássicos dos jardins lisboetas lá estavam representados: os reformados a bater umas cartas, um negro provavelmente com um copito a mais a dormir estendido num banco, uma criança e o seu triciclo do natal anterior a rodar no alcatrão. e pombos, muitos pombos. chega de sol. umas empregadas camarárias trabalhavam num canteiro contíguo à praça de taxis. perguntei o que plantavam: canas índicas. já estou a ver o lord, o cão do 4ºandar, a regar as canas índicas numa saída madrugadora. e o tricíclo do natal que se aproxima a ignorar a regra da prioridade. e um pézinho reformado a encurtar caminho pelo meio das canas índicas. e eu que só estou preocupada com as canas índicas porque o nome me soa tão bem agora não sei onde pus o papelinho do depósito da renda.

pataniscas a quatro mãos

Ouço água a correr na cozinha. A Alice está cá em casa. Vai haver uma sessão de pataniscas ao almoço, feitas a meias (Madame Castafiore, hoje em tons de azul navy e sem eyeline, preparou-as e a Alice fritou-as). Não tive coragem para lhes dizer quem ontem à noite jantei num restaurante em Alcântara e comi o quê? Nem mais. Pataniscas.

um professor

"Eu não voo
ando
quero que me oiçam"

António Reis, "poemas quotidianos" (1952-1962)

O António Reis - poeta e cineasta - foi meu professor. Morreu estava eu em Madrid no programa Erasmus. Nunca lhe pude dizer que só tinha ido para Madrid para ver com os meus olhos Goya, El Greco, Velasquez...de que ele falava com tamanha paixão. Como com paixão nos enchia a cabeça de gravuras japonesas e pintura holandesa. O António Reis tinha a paixão de ensinar dentro dele. E nós agora temos o António Reis dentro de nós.

7.10.03

inícios (2)

"Alice começava a sentir-se muito cansada por estar sentada no banco, ao lado da irmã, e por não ter nada que fazer. Mais do que uma vez espreitara para o livro que a irmã estava a ler, mas este não tinha gravuras nem conversas..." E para que serve um livro que não tem gravuras nem conversas?" pensou Alice." Assim começa "Alice no País das Maravilhas", Lewis Carrol, trad.M.Filomena Duarte, Publicações D.Quixote. Amanhã é dia da Alice estar cá em casa.

6.10.03

a lata de grão

Só tenho problemas. Não há couve portuguesa. Rua abaixo, rua acima, cada lugar de hortaliça, mercearia, mini-mercado, tudo foi investigado. Nada. Uma ou outra couve branca, um repolho, vá lá, algumas couve-flores (espero que seja assim que se forme o plural), até uma couve chinesa, mas nada de couve portuguesa. É que hoje é segunda-feira, explicaram-me, e o mercado abastecedor está fechado. Não se pode fazer bacalhau com todos à segunda-feira. E apesar das cem (ou serão mil?) maneiras de se fazer bacalhau não vou humilhar mais as já demolhadas postas com uma 2ª escolha, só porque não há couve portuguesa. Não sou pessoa para isso. Comprei uma (mais uma) lata de grão. Se há coisa com que eu embirro é com bacalhau espiritual. Vou fazer bacalhau cozido, com grão de lata, batatas e uns ovinhos (just in case).

Madame Castafiore

Almoçei com Madame Castafiore. Oitenta quilos ou mais. Altura abaixo dos 170. Índice superior. Tons de verde seco. Pulseirame à direita e horas à esquerda. Camurça em seus delicados pés. Eyeline (remissão:Maria Callas). Não fora uma raiz do cabelo traiçoeira e o marron dos caracóis pareceria natural.

inícios (1)

"Antigamente, o largo era o centro do mundo". Assim começa "O Largo", de Manuel da Fonseca, em "O Fogo e as Cinzas". É certo que há mais inícios que marinheiros, mas lembro-me sempre deste quando atravesso as nossas vilas e, claro, quando passo no Rossio.

5.10.03

imperdoável

(ainda) não ter referido o golaço do Roger. tenho de ir pagar as quotas.

Ícaro 64/ G.Kunert

(3)
Todavia abre os braços e toma
Balanço para o impossível.
Toma um longo balanço para
Voares
Rumo so teu firmamento
Onde todas as estrelas se extinguem.

(4)
Que o dia vem chegando.
Há sempre um horizonte que aparece.
Toma balanço.

in "90 Poemas de Guntar Kunert", apáginastantas,1983, trad.Teresa Barté

(falta um acento no u de Gunter mas não o encontro no teclado. contra-ordenação leve)

gatos pré-socráticos

"A proximidade dos gatos pode alterar a nossa personalidade, diz um estudo recente. O toxoplasma gondi, um parasita que vive no intestino dos bichanos pode instalar-se no cérebro humano. Torna os homens desconfiados e as mulheres promíscuas. Trinta por cento da população mundial já está infectada. Objectivo: levar-nos à auto-destruição." assim começa "o feitiço dos gatos", na Pública de hoje. Nem foi preciso ler mais nada para subir com todo o gás natural três andares, entrar em casa de rompante, mas suficientemente lúcida para antes ter utilisado a chave da porta, e esfregar o artigo nos bigodes da vera e da mia, de tal maneira que já me esqueci da ordem por que o fiz. Elas cheiraram o artigo, rasparam a secção das cartas da maya, afinal a verdadeira razão porque compro o público ao domingo, viraram a pública de pernas para o ar, e a vera, a minha mais velha, pousou a unha umas páginas mais atrás:"quando estou preocupada ou aborrecida nada me anima mais do que ler dez linhas de um pré-socrático!". Feito isto, a vera deu duas lambidelas na pata esquerda e virou-me costas. A jovem mia há muito que o tinha feito. Acho que é altura de termos uma conversa a sério.

uma tarte-de-maça republicana

Esplanada buondi, hoje a meio da manhã. Madame Castafiori chega, dá meia volta ao jornal, faz uma pausa para mexer o adoçante no café e comenta sorridente: - Hoje é o 5 de Outubro. Vira a página e continua: - Apetece-me fazer um bolo.

almoço entre as árvores

"o tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem e o tempo respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem"

4.10.03

distracções

Ontem, ao vadiar por aqui, li na home page do "público" que o ministro PL se demitira. Como acho normal que um ministro deste governo se demita não li o resto. Só à noite, na tv, soube a razão. Entre a lista de razões não me tinha ocorrido esta. Que um problema doméstico indirecto seja tão grosseiramente incluido no mercado paralelo da ilegalidade. E logo acrescentei à minha lista não só a razão porque o ministro PL se demitiu, como uma outra: a razão porque o ministro MC se deveria demitir. Mas. Parece que é compadre do PM, e este precisa muito dele, coitado, e, em resumo, não se vai demitir. E mais uma vez se verifica que os ministros não se demitem pelas minhas razões. Nem sei bem porque continuo a votar. Bem, o post está um bocado confuso mas agora estou sem tempo para um re-edit. Vou para o almoço, na outra margem, não sei se entre as árvores.

3.10.03

o guarda-chuva amarelo

tirei o dia para a internet. estou a fumar demasiado. não li nada de interessante. amanhã tenho um almoço de antigos combatentes. uecs de coimbra.

entretanto, perdi o meu guarda-chuva amarelo, cortesia da oni quando subscrevi o serviço adsl. havia outra oferta, já nem me lembro qual, e eu pensei: vou levar o guarda-chuva, é da maneira que fico com um guarda-chuva imperdível:quem é que vai querer um guarda-chuva amarelo? quiseram. há três dias fui ao café às 8 da matina e esqueci-me do supra-citado. e quem o apanhou chamou-lhe um figo. parabéns ao feliz contemplado. a malta da curraleira provavelmente adora o amarelo. ou então foi alguma velhinha que o confundiu, dada a tendência das velhinhas para confundir e do amarelo para ser confundido. seja como for, durou quase um ano, foi usado três vezes e molhado em duas ocasiões. aqui fica a estatística, para quem gostar de estatística. quanto a mim, estou a recuperar.

de resto e aqui: começo a ter problemas logísticos: não sei como admitir comentários, pôr o mail, etc. isto tudo, apesar de ter tirado o dia para a net.

1.10.03

dicionário: V de Veleiro

Zoe, Simbad, Yellow Bird, Onda, Mary Gold, Vincent, Marlin, Giripiti, Karina, Invictus IV, Karma, Sea IV, Atlanta III, Sundance, James Bond, Zille, Resolute, Wind Song, Sticky, Escapade, Dolcevita,...
Nomes, templos, outros mundos. E sinais de casta (mas esses vão ficar ,por enquanto, aqui: entre parêntesis). São nomes de veleiros. Nomes com destino, nomes de promessas. Navegações. Marina de Lagos, num domingo qualquer, quando a noite se aproxima e já cheira a polvo, primeiro na brasa, daqui a nada à lagareiro.

Os veleiros atravessam apelos que o fundo nos devolve do mar . Dia após dia. Os veleiros seguem nuvens num eterno retorno ao canto da sereia. Os veleiros são estrelas que navegam candentes até ao amanhecer. Os veleiros constroem os mares, os nossos mares. Os veleiros. Coitados dos veleiros da Marina de Lagos. Aprisionados em terra.

Simbad, Mary Gold, Zoe, Marlin, Vincen, Giripiti, Karina, Invictus IV, Sundance, Karma, Sea IV, James Bond, Dolcevita, Zille, Resolute, Wind Song, Sticky, Atlanta III, Escapade, Yellow Bird, Onda. Grandes nicks.

Recordo um poema, escasso e belo, de Joaquim Namorado, alentejano natural de Alter do Chão, que navegou em Coimbra, onde viveu e morreu, e que um dia escreveu “Viagem aos Mares do Sul” : Nunca lá fui.

29.9.03

romances

"Sabes porque é Lisboa tão triste? Nunca recuperou da sua história. Aconteceu aqui uma coisa terrível que a marcou para sempre. Todas essas ruelas estreitas e sombrias, os jardins escuros, os cipestres nos cemitérios, as ladeiras empedradas, as praças calçadas de preto e branco, a vista sobre os telhados vermelhos para o rio vagaroso e o oceano...nunca esqueceram que quase toda a população da cidade foi aniquilada num terramoto que aconteceu há quase duzentos e cinquenta anos"
in "Último Acto em Lisboa", de Robert Wilson,1999, trad.Maria Douglas, Gradiva.

delta

restos. menos o delta final.

start

cheguei. vamos ver no que isto dá. agora vou almoçar.