28.3.11

toda a tarde ouvi chopin

Ao ver-te tão triste, procurei uma folha de papel. Fiz uma lista das vantagens de ver-te triste. Imediatamente escrevi "vi-te". Depois de uma hora inteira em frente à folha, verifiquei que o branco não parava de ficar branco e desisti. Não gosto de te ver triste.
(primeira versão)
Vi-te triste e corri e rasguei precipitada uma folha quadriculada do meu caderno preferido. Fiz uma lista das vantagens de te ver triste. Lançei-a em voo picado sobre os telhados. Não gosto de te ver triste.
(segunda versão)
Quando te vi triste sábado de manhã, fiz uma lista das vantagens de te ver triste. Risquei-as uma a uma a tarde inteira. Não gosto de te ver triste.
(terceira versão)
Escrever e voltar a escrever. Escrever é voltar a escrever.

25.3.11

oratória

(ainda não são sete horas e já o raio da gata está aqui miau, miau, miau). cala-te, mia! os humanos  precisam de acordar, os gatos precisam de juízo, os blogues precisam de posts, o céu precisa do sol, os pássaros precisam da nossa varanda. (aqui a mia cala-se e arrebita as orelhas)

23.3.11

o corvo marinho

Hoje na aula de tai-chi estive a soltar o corvo marinho que há em mim. Um belo corvo marinho a apanhar sol nas asas foi isso que eu fui durante para aí um minuto, mais coisa, menos coisa, o suficiente para ter ficado toda partida.

Passo a explicar. Uma pessoa, isto é, antes de se tornar corvo marinho, tem de se pôr na posição de cavaleiro: afastar as pernas para além da medida-padrão, que é a largura das ancas, alinhar os pés, flectir as pernas, manter o coxis para dentro e sorrir. Em suma, ainda antes de se estar na posição, já o corvo marinho, pelo menos o corvo marinho que há em mim, estava sorridente, sim, mas um nadinha estafado. Depois vêm os braços, ou seja, as asas. Não sei se já repararam mas o corvo marinho não tem as asas esticadinhas como a águia, não, em cada asa do corvo podemos reconhecer um inolvidável triângulo invertido. Visto noutro ângulo, num ângulo mais vulgar, assustadoramente vulgar, significa que para além das pernas, também os braços ficam a doer como o caraças. Mas vale a pena. A estampa de corvo marinho em que de um momento para o outro nos transformamos vale o sacrifício do cavaleiro em triângulo. E tudo debaixo de uma ideia de harmonia para que o universo tende, penso, fechando os olhos. E foi desta forma que, enquanto corvo marinho, tive oportunidade de apanhar sol na confluência das asas, lá atrás, num ponto exacto da coluna. Mais ou menos aqui? Não, não, não é mais acima ou mais abaixo, nem mais para um lado ou mais para o outro, mas aqui, exactamente aqui. O tai-chi é uma arte marcial, minha senhora, não é mais ou menos aqui, ou ali, é aqui.

Só a precisão é bela, mesmo o caos é preciso, concluo, antes que o corvo marinho adormeça ao som das vagas do atlântico norte.

hesitação


"Desvio-me do caminho.
O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada a grande altura, mas muito próxima do chão. Parece estar ali para nos fazer tropeçar, e não para que se passe por cima dela."
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"Tens de enfiar a cabeça pela parede. Não é difícil atravessá-la, ela é de papel fino. O difícil é não nos dixarmos iludir pelo facto de que o papel já traz pintado, da forma mais enganadora, o modo como tu atravessas a parede. Isso leva-te irresistivelmente a dizer. "Mas não estou eu permanentemente a travessá-la?"

Franz Kafka
Parábolas e Fragmentos, trad.: João Barrento

22.3.11

la luna

no sábado, em frente à minha janela estava a lua e eu em frente à janela; é assim a ordem das coisas e só abrindo a janela a poderia alterar. com o frio com que estava, duvidei que o conseguisse; para além de eu não ser pessoa para alterar a ordem das coisas, quando muito altero as coisas, o que no caso era manifestamente pouco. então saí de casa. deixei de ter a janela à frente, mas ao deixar de ter a janela à frente deixei também de ter a lua. foi coincidência, é certo, mas coincidência verificada. só mais tarde a recuperei, a ela, à lua, por quem eu de casa saíra. nessa altura já era domingo e eu tinha sono.

21.3.11

voracidade

"roubaste-me o coração com um só dos teus olhares, com uma só jóia do teu colar" - o resto não fixei porque não podia fixar, e não escrevi porque não podia escrever, mas ouvi o padre dizer e isso eu fixei sem esforço: o cântico dos cânticos há-de ser sempre uma coisa que se diz ao ouvido

19.3.11

declaração de amor

- É pá, temos tantas palavras parecidas! Olha lá, como é que se diz amo-te em romeno?
- Te iubesc.
- Porra. Não há outra maneira de dizer isso?
- Te ador.

18.3.11

em dias assim

há dias em que se acorda com um palpite, que difere da palpitação por causa da terminação: enquanto o palpite tende para o momentoda sua verificação, a palpitação tende para o não-momento da sua repetição; mas ambos, palpite e palpitação, tendem para o infinito quando, em dias assim, se acorda com um palpite e uma palpitação

17.3.11

o fado mora em Lisboa

a visão da merda de cão nos passeios da cidade dá-me cabo dos nervos logo pela manhã. ah, Lisboa, Lisboa, que és tão linda, que és tão bela, nos bairros sempre à toa, vive a tristeza

16.3.11

stop

há pessoas que quando começam a falar não param, há pessoas que quando começam a rir não param, há pessoas que quando começam a espirrar não param; há pessoas que não param

15.3.11

concorrência desleal

Levantei-me cedo. Pus um disco a tocar no telemóvel, fiz-me ao caminho e caminhei. Parei nos sinais, olhei para a direita e para a esquerda, agradeci aos condutores que paravam nas passadeiras. Era domingo. Entrei no Museu do Azulejo. Já não escrevia há alguns dias. Precisava de escrever. Antes de escolher uma mesa, tirei umas fotos rápidas a uns peixinhos vermelhos que chamavam por mim. Senti-me prestável. Pedi um café e abri o "office", o meu caderninho chinês onde se pode ler, inscrito na capa, "enjoy your writing with Yixin products". E aqui é que se dá uma falha na minha memória, que só constatei horas depois quando quis reconstituir os acontecimentos, não sei, distraí-me, desconcentrei-me.
Talvez porque na mesa estava uma pequena jarra quadrada e eu espanto-me sempre diante de jarras quadradas, talvez porque o piano que me entrava nos ouvidos rimasse com as folhas de acanto que vira no jardim, o certo é que me distraí, desconcentrei-me, sei lá, e agora há uma falha na minha memória, provavelmente provocado por um trauma. O caso não é para menos: é que, quando dei por mim, na mesa ao lado estavam seis italianos, três homens, e três mulheres, cujo volume de voz - e eu sei lá se é volume, se é projecção, se é débito de conversação -, arrumou tudo em três tempos: os peixinhos vermelhos, o piano, a jarra, as folhas de acanto e o meu caderninho chinês. Enjoy.

14.3.11

ao calhas

tive preguiça de abrir o livro e ler e então procurei uma palavra ao calhas, e calhou-me: brecha, e agora estou perplexa e repito: brecha com um ponto de interrogação no fim

12.3.11

manifestação

o plot está a dar cabo do cinema

10.3.11

indicativo telefónico

Eu: Está? Ele: Sim? Eu: Desculpe, acho que me enganei. Ele: Mas com quem é que queria falar? Eu: Com a Margarida. Ele:Mas daqui fala a Margarida. Eu:Como? Ele:Eu sou a Margarida.

Conversa puxa conversa e, não nos casámos como na anedota, mas fiquei a saber que estava a falar para Macieira de Sarnes, Oliveira de Azeméis, etc, etc., e que o meu interlocultor, não sendo, acabou por confessar voluntariamente, a Margarida, não se importaria de ser, assim eu lhe continuasse a telefonar aos domingos depois de almoço.
Quanto a mim, só na terça-feira consegui falar com a Margarida.

9.3.11

yara

Os amigos improváveis são amigos como os outros mas partem mais de trás; e quando chegam, chegam ao mesmo tempo, e às vezes à frente. Os amigos improváveis são bestiais.

8.3.11

escola de samba

Também Castafiori se registou no Facebook. Gosta de viver no seu tempo. Como a invejo. Esta manhã, ao acordar, li a mensagem que me deixou: "Doem-me os ouvidos. Ontem fui parar a uma escola de samba na Abrigada". O mundo está perdido. Não sei como tive forças para saltar da cama.

7.3.11

os fotógrafos

Há passarinhos que chegam atrasados às árvores. São os mais difíceis de fotografar, disse o fotógrafo, Outros passam lá o tempo. Fotografa esses, pai, disse o filho do fotógrafo, mascarado de apicultor. Não, disse o fotógrafo que, esclareça-se, não estava mascarado, A gente gosta é dos primeiros. A gente, quem, pai? A gente, filho, nós, os apicultores.

6.3.11

beleza interior

(Diálogo no carro, entre mim e a Catarina, atrás, entre as crianças. Eu ia no lugar do morto.)

- Mas que relógio é esse que brilha tanto?
- É um Rolex.
- Um Rolex? Nunca tive um Rolex na mão. Empresta aí.
- Olha, mas atenção, aqui está escrito Casio, 'tás a ver, no mostrador está escrito Casio. Mas não ligues. Por dentro é um Rolex.
- Rolex por dentro e Casio por fora?
- É para não o roubarem. Não chama a atenção.
- ....
- A sério, está escrito Casio, mas por dentro é um Rolex.

4.3.11

foi assim

Foi assim que eu falei com ela. Cara a cara. Ela nem abriu a boca. Tem dívidas? E eu? Não tenho contas para pagar? Eu também tenho a minha vida, tenho medicamentos para aviar, tenho que comer, tenho que pagar a luz, tenho que pagar a água, o gás, a internet. Eu não ando todos os dias no cabeleireiro. Mas há quem ande. Ai há, há.

1.3.11

antes da montagem

faço sopa de courgettes com coentros como quem chama por mim, é isso que vou almoçar antes da uma da tarde, e depois, pergunto, não basta ter imaginação, pois não, raios partam a métrica