31.5.08

bon voyage

Ontem passei pelo café onde pára a autoridade. Só lá estavam dois. A imperialzinha na mão é que não faltava. Só para chatear, comprei um magnum java. Armas desiguais, portanto. Tive que esperar pela noite para reequilibrar. Ao jantar, cuscuz com vinho Ermelinda. Quando eu me ri, viraram-se para mim e disseram: 'o vinho Ermelinda não é nada mau'. Duma coisa não há dúvidas: é um nome que não se esquece. Para além disso, capaz de deixar embaraçado qualquer restaurante. Uma pessoa chega ao Gambrinus e pede: empadão de perdiz. E para beber vinho Ermelinda. Vinho Ermelinda não temos.

É assim que a gente os apanha. A partir daqui é-me indiferente que para sobremesa possa escolher entre
Eisben com choucroute, Crepes Suzette Flamejados ou Soufflé Rotschild. Resultado: despedi-me da dama de Xangai, que está de partida outra vez, com vinho Ermelinda. Pas chic mas já com saudades.

30.5.08

títulos

Comecei a ler há duas semanas um estudo intitulado: "O LOGOS DA JURIDICIDADE SOB O FOGO CRUZADO DO ETHOS E DO PATHOS DA CONVERGÊNCIA COM A LITERATURA (LAW AS LITERATURE, LITERATURE AS LAW) À ANALOGIA COM UMA POIESIS-TECHNÉ DE REALIZAÇÃO (LAW AS MUSICAL AND DRAMATIC PERFOMANCE)". Ainda não passei do título.

29.5.08

esticão

A Alice foi assaltada ao virar da rua, noutra rua, num bairro periférico. O dia tinha começado cinzento mas não creio que isso tenha estado na origem do acto.

O ladrão tinha visto a patroa das sextas dar-lhe o dinheiro. Isso é que lhe deve ter dado ideias. Mas não se pense que se ficou a rir, quero eu dizer, o ladrão. Desde logo porque a Alice resistiu ao esticão e foi por ali fora esticada mais a mala e o ladrão, todos esticados rua fora, até que o ladrão conseguiu desesticar e desandou. A Alice ficou agarrada ao braço, impotente, a meio da rua, sem fôlego, a vê-lo desaparecer com a mala, o telemóvel e os euros acabados de ganhar. Mas o vizinho da patroa, que estava à porta com a mulher, tinha visto o início da jogada. Não sei se o ladrão terá contado com isso. Acho que não.

O vizinho entrou no jeep e foi atrás do ladrão. Ele e a mulher. Apanharam o ladrão, recuperaram a mala. E ainda lhe chegaram a roupa ao pêlo, disse-me a Alice. Mas o pior, menina, são as costas, não queira saber a dor de costas com que ainda estou, da força, ele a puxar dum lado e eu a segurar do outro. Mas também levou a seguir. Bem feita. Deixe lá, Alice, são uns desgraçados. Pois são, menina. Na polícia mostraram-me umas fotografias mas ia lá eu saber qual deles eram. Eles são todos iguais. Pois são.

28.5.08

cão abandonado

Entrei no café e estavam lá cinco polícias. Todos a beber imperiais. Eu para chatear pedi um café. Um dos polícias ripostou. Pediu um maço de tabaco. 'Dos azuis'. O patrão sorriu. É portista. Eu para chatear guardei o pacotinho de açúcar. Não ponho açucar no café, prefiro ler o que os pacotinhos trazem escrito. Li. 'Um dia levo para casa um cão abandonado. Hoje é o dia. Nicola. Encontros perfeitos'. (Aquilo era para mim? Devia ser). Do outro lado, estava escrito: Desejamos-lhe um óptimo café Nicola'. (Saberão os cafés Nicola que eu tenho duas gatas? E quem são eles para me atribuirem pensamentos? Um dia levo para casa um cão abandonado?!) Polícias, cães abandonados, cafés amargos, não é preciso ir mais longe para reunir num instante quase todos os ingredientes duma narrativa moderna. Quase.
Cá fora cruzei-me na passadeira com uns saltos verdes de 12 cm e mala a condizer. Antes de virar a esquina, olhei para trás e vi-a entrar no café e sentar-se numa das mesas com toalhas de plástico aos quadrados. Aposto que a seguir pediu o 24 horas. Era a personagem que faltava à minha narrativa.

27.5.08

aforismos 39.40.43.44.45.47.48.

39. Mas isto não é particular às essências, mas também se verifica em muitas outras coisas, como nas quantidades.
40. Parece outrossim, que as essências não são susceptíveis de mais, nem de menos.
43. Das quantidades, umas são discretas, outras são contínuas; umas constam de partes, que têm certa situação entre si; e outras, cujas partes não são susceptíveis de situação entre si.
44. É quantidade discreta qualquer número, qualquer discurso; e, contínua, a linha, a superfície, o corpo e, além destas, o lugar, e o tempo.
45. Absolutamente falando, só estas, que temos nomeado é que são quantidades. Todas as outras só o são acidentalmente.
46. Além disso, à quantidade nada é contrário.
47. Nem tão pouco a quantidade determinada é susceptível de mais nem de menos.
48. O que é principalmente particular às quantidades, é o dizerem-se iguais ou desiguais.

Categorias de Aristóteles

26.5.08

aforismo 46.

"46. Além disso, à quantidade nada é contrário."

in Categorias de Aristóteles.
Traduzidas do Grego e ordenadas conforme a hum novo plano por Silvestre Pinheiro Ferreira. Para uso das Prelecções Philosophicas do mesmo Traductor. Rio de Janeiro. Na impressão Regia. Anno de DCCC XIV. Com Licença de S.A.R.

24.5.08

polaroids

A Rita ofereceu-me um livro: "Instant Light, Tarkovsky Polaroids". A edição original é de 2002, Thames&Hudson. São sessenta polaroids. Como escreve Tonino Guerra na abertura, a fond farewell.

23.5.08

bagagem

Voltei a Lisboa, cheia de fotocópias e ciência selvagem. Em contrapartida, não aumentei o peso nem diminui o sono. A minha Mia sim, vim encontrá-la mais robusta, como um suv alemão. A Vera continua ligeira. Lisboa continua enublada. Que raio de mês de Maio.

15.5.08

inícios (16)

Um dia, já eu era velha, um homem dirigiu-se-me à entrada de um lugar público. Deu-se a conhecer e disse-me: - "Conheço-a desde sempre. Toda a gente diz que você era bonita quando era nova, vim dizer-lhe que, para mim, acho-a mais bonita agora do que quando era jovem, gostava menos do seu rosto de mulher jovem do que aquele que tem agora, devastado."
O Amante
Marguerite Duras
tradução: Luísa Costa Gomes e Maria da Piedade Ferreira

14.5.08

pratos

O que me chateava mais nas baratas fritas eram as patinhas que ficavam entre os dentes. No outro dia, ainda tinha patinhas nos dentes. Isto não sou eu a dizer, sou eu a ouvir. Ontem no jantar dos meus anos.

12.5.08

o nome da lei

Disse um: - E como é que se chama a lei? Fiquei atenta. Já agora queria saber o nome da lei que estava a lançar o pânico nas jovens mentes (os dois rapazes e a rapariga exibiam um ar um bocado nervoso; pensei mesmo que estavam à porta da capela por causa disso). Ouvi o outro responder: - A lei chama-se lei da oferta e da procura. Nem mais. Foi o que eu ouvi. Os rapazes teriam talvez vinte anos (ou nem isso) mas o dobro da graça. Os rapazes de vinte anos continuam a ter muita graça.

9.5.08

langsam

'Dispo-te lentamente, beijo a beijo.'
Isaac Felipe Azofeija
Costa Rica, 1909-1997

8.5.08

cara fiori

DSC03131© fatima ribeiro2008DSC03131© fatima ribeiro2008

7.5.08

a resposta

Ela quer divorciar-se dele. Foi-lhe dizer que se tinha apaixonado por uma mulher. Ele disse-lhe que não queria saber disso p'ra nada. Gosta dela e pronto! E assim se desfaz um divórcio.

3.5.08

sinopse

DSCN7723© fatima ribeiro2008

2.5.08

também foi dia da espiga

Quando passei pela paragem vi um alguidar encarnado a transbordar de espigas; aligeirei o passo e ouvi a mulher dizer ao freguês: "Esta noite sonhei um sonho -" e respirou para continuar. Já não quis ouvir mais. Tive medo que o que viesse a seguir estragasse a frase, não por não ser um sonho mas por não ser tão belo.

1.5.08

na véspera do 1º de Maio

"Ó Márcia se não vens para aqui levas já uma chapada no focinho". Pai é pai. Melhor perfomance só mesmo se fosse a mãe: "Ó Márcia Maria se não vens para aqui levas já uma chapada no focinho". O nome composto é essencial para fazer valer a regra do jogo. O perigo espreita. A ameaça será executada. Mas francamente, chapada no focinho...Não sei como é que eu teria dito. Talvez: "Ó Márcia se não vens para aqui levas já uma estampilha". Acho um bocado mais elegante.