31.1.08

a revolta

A revolta veio para ficar. Ao granulado x torce os bigodes, olha de esguelha o granulado y , e vejo-a altiva passar como cão por vinha vindimada pelo granulado z. Assim é a minha Mia. A sobredose é o seu estado natural. Reinvindica, protesta, amua e finalmente mia. Mia com insistência, mia em vários tons, afina e desafina, mia até dizer chega, Mia, chega de tanto miar, se não gostas deita-te ao pé, como dizia a minha mãe quando eu não queria comer feijão com couve. Não sei se estás debaixo da cama, se em cima da máquina da roupa, não sei onde estás, se estás na senhorinha, ou o que resta dela, se na varanda a olhar para os pombos que cruzam o céu da nossa rua. Onde quer que estejas uma coisa é certa, tão certa como eu me chamar Maria: isto vai piorar. Acabei de comprar Hill's Science Plan, LIGHT!

30.1.08

breve

"A primavera é breve;
quem dirá que a nossa vida é imortal?",
perguntei, e fi-lo afagar com as mãos
os meus fortes seios.
Yosano Akiko
(Japão, 1878-1942 )
trad: S.Leckert, Rosa dos Mundos, Assírio&Alvim

29.1.08

aluguer

A máfia italiana já deu o que tinha a dar, disse o homem ao contornar o expositor no clube de vídeo. Olhei para o dvd que tinha escolhido e hesitei. Pus os olhos na sinopse. Confirmei o título, verifiquei o nome do realizador. A minha vez estava a chegar e eu ali, cliente inconstante e agora também a rimar com vacilante. A máfia italiana já deu o que tinha a dar. Olhei para o homem: calças de ganga, blusão de cabedal e um saco dos frangos primavera. Não tinha imaginado assim a mão invisível do mercado mas não foi por isso que deixei de levar o filme. A minha vez tinha chegado. Subi a rua, passei por mais dois ou três sacos de plástico, pensei com certeza noutra coisa, talvez mesmo em Yosano Akiko, uma poetisa japonesa nascida no século dezanove, mas as palavras determinadas ouvidas no domingo à noite acompanharam-me até aqui.

25.1.08

Coimbra B

Sorrio sempre que aqui chego.

24.1.08

o coração dos homens sensatos

O Príncipe protestou contra os excessos do Imperador, seu sobrinho. O Imperador ouvir e respondeu: "Dizem que és sensato e que os homens sensatos têm sete caminhos que vão dar ao coração. Quero ver com os meus próprios olhos se não me mentem." E para comprovar a verdade ordenou que o coração do príncipe, seu tio, fosse esquartejado.

(história lida ontem à noite, ao adormecer, numa introdução ao I Ching; depois admiro-me de andar com insónias)

23.1.08

chama

FILIACION OSCURA

No es el acto secular de extraer candela frotando una piedra.

No.

Para comenzar una historia verídica es necesario atraer en sucesiva ordenación de

ideas las 7 ánimas, el purgatorio y el infierno.


Después, el añelo humano corre el señalado albur.

Después, uno sabe lo que ha de venir o lo ignora.

Después, si la historia es triste acaece la nostalgia. Hablamos del cine mudo.

No hay antes ni después; ni acto secular ni historia verídica.

Una piedra con un nombre o ninguno. Eso es todo.

Uno sabe lo que sigue. Si finge, es sereno. Si duda, caviloso.

En la mayoría de los casos, uno no sabe nada.

Hay vivos que deletrean, hay vivos que hablan tuteándose,

y hay muertos que nos tutean, pero uno no sabe nada;

En la mayoría de los casos, uno no sabe nada.

JUAN SÁNCHEZ PELÁEZ
(Venezuela, 1922-2003)

22.1.08

obras nas escadas

Da rua alguém toca a meio da tarde. Um passo, penso no correio, no outro, penso em publicidade, ao terceiro pergunto pelo intercomunicador:
"- Quem é?"
"- Sou eu, o afagador".
No instante seguinte sorrio e não por causa do sotaque africano.

16.1.08

contas de cabeça

Eu quando entrei já sabia a tabuada toda, ou quase toda, vamos - disse o homem ao balcão do estabelecimento, sobrepondo-se ao som dum comboio a chegar perto dali, Vila Nova de Gaia. E o homem que tinha acabado de se gabar continuou, fino na mão, jornal à sua frente, aberto nas páginas centrais: agora, agora nem sei o que andam lá a fazer. Queres ver como eu tenho razão? O homem falava para o patrão, do lado de dentro, silencioso, a tirar o café de que eu estava à espera. Chama aí a catraia. Ninguém chamou ninguém, talvez porque a sombra da retórica deslocava a pergunta para o interior deste típico monólogo de cervejaria no Inverno, talvez porque simplesmente também não era preciso. A catraia apareceu vinda da copa, dava a impressão de ter estado a ouvir a conversa. Uma rapariga alta, cabelo preso com uma espécie de lapiz, ou quem sabe se não seria mesmo um lapiz, cabelo em movimento perpétuo tal a forma insistente com que tinha de pôr as pontas caídas para trás das orelhas.

6X9? Queres ver, 6X9? A catraia pega no telemóvel algures à sua espera, pareceu-me que à frente da máquina do totoloto, e responde pouco depois: 54. Assim não vale, olha a esperta. 'Tás a ver? Não sabe. De cabeça, não sabe, queres ver? A prova final ali estava, a um passo de ser pronunciada. 7X8? A cervejaria deserta naquele final de tarde, mas habitada por espíritos atentos, ficou suspensa desse golpe de magia que é um simples cálculo numérico. Sim, 7X8? Pois é, não sabe. Entretanto, eu própria dava voltas à cabeça, ora se 7X7 são 49, mais 7 são: 56, ouço o homem. Sem telemóvel. Nem máquinas, nem meio máquinas, era o que faltava. Agora uma coisa é certa, eu não sei bem o que lá andam a fazer. Dou-te um exemplo. Estudo do Ambiente. Nós dávamos Geografia, dávamos História, dávamos, bom, dávamos uma data de coisas. Agora compara lá. Ora isto é uma coisa que eu não admito, quer dizer, eu admitir, admito, mas cai-me mal, ó se cai.

15.1.08

acto falhado

Quanto mais conheço os homens, mais gosto de isqueiros, foi o que me pareceu ouvir.

14.1.08

vogais em Londres

ENCONTRO
NUMA FESTA EM LONDRES
Durante um minuto permanecemos desconcertadamente juntos.
Perguntas a ti mesmo em que língua hás-de falar-me,
ofereces, antes, uma cebola avinagrada num palito.
És jovem e talvez te esqueças
de que o Império vive
apenas nos sons puros das vogais que te ofereço
acima do ruído.

EUNICE DE SOUZA
Índia, 1940
ROSA DOS MUNDOS, Assírio&Alvim

11.1.08

esperança

A esperança é a última a morrer. A que está viva.

10.1.08

esplanada

Cheguei agora da rua. Não se pode estar na esplanada por causa do fumo. Não sei como vai ser no Verão. Alguém ontem me contava o seu método pessoal: não ficava na rua, à porta do trabalho, a fumar. Ele não. Afastava-se a sete pés dessa imagem deprimente. Ele acendia o cigarro e andava, andava, como se fosse a algum lado.

9.1.08

sobre o conceito (diários de Elf)

No escritório, eu vi tudo pela câmara de vigilância. A Cliente entrou de rompante na loja. Ninguém. A Cliente ficou nitidamente contrariada. Eu sei ver quando uma cliente fica contrariada, não preciso que ela fique nitidamente contrariada. Saí do escritório e a Cliente dispara como se tivesse acabado de pisar caca de caniche sem pedigree: "- Onde é que estão os seus Funcionários?". Também sei ver quando uma Cliente é petulante. Uma profissional tem que estar preparada para cheques sem cobertura e petulância. Já tenho trocado uma ou outra opinião sobre o assunto com o meu Colega , mas ainda não concordamos por inteiro na Atitude. Se Profissionalismo, puro e duro, se sim mas também. Eu limitei-me a responder: "- A Funcionária sou eu." Fi-lo com grande dignidade. Se não fosse o grande profissionalismo, teria acrescentado "e para a próxima mude de passeio quando vir um caniche".

A palavra "petulante", usada pela primeira vez ao escrever a frase "sei ver quando uma Cliente é petulante", está riscada e substituida pela palavra "impertinente", que veio a ter o mesmo destino. Seguiu-se a palavra "presumida". Obviamente insatisfeita, Elf riscou "presumida", voltou ao início e escreveu "petulante". Se querem saber a minha opinião, Elf fez muito bem.

8.1.08

imagem

A ANTEPASSADA
Então a minha imagem no espelho leva
as mãos à cabeça
E, paralisado de horror,
vejo no vidro escuro
as minhas feições a desfazerem-se.
Continuam a ser as mesmas
E no entanto são diferentes, terrivelmente diferentes
E não são mais semelhantes a mim mesmo
Que um ser vivo ao seu cadáver.
Ela abre muito os olhos
Olha-me fixamente e com um dedo
Ameaça-me e avisa-me.
FRANZ GRILLPARZER

7.1.08

Neujahrskonzert

Faz amanhã oito dias. Orquestra Sinfónica de Viena na tv. Concerto de ano novo, etc e tal. Já o maestro tinha exibido a bola de futebol do euro 2008, já os violinos valsavam, já Strauss tinha tomado conta da tarde, quando elas - eram duas, mãe e filha, vim a saber depois - deixaram a esplanada, onde cada qual tinha fumado o seu estóico cigarro, e entraram no interior do café para pagar e pagaram.
Mas antes da nota de cinco euros estar sobre o balcão, ouvi a mais velha: "- Olha, ópera". A mais nova olhou para a televisão junto ao tecto: "- Isto não é ópera". A mais velha não ligou e disse à dona do café "um kit kat, se faz favor", mas é evidente que tinha ficado a matutar no assunto porque ripostou: "- Ai não? Então o que é? Se não é ópera, é o quê? Opereta, se calhar é opereta...".
A mais nova, talvez levada pelos violinos incessantes, voltou os olhos para a televisão e pegou no chocolate: "-Posso abrir, mãe?". Parecia ter-se desinteressado. Ficaram as duas a olhar para a televisão e os votos de paz mundial começaram ali mesmo, entre as duas, mãe e filha. Este estado foi contagiante ao ponto de me fazer entrar numa zona crítica, com a minha memória a vacilar agora, contra mim falo, mas não posso garantir qual das duas disse "isto é um concerto". Sei que se riram bastante e a mãe aproveitou e reincidiu: "isto é ópera".
A filha ia no segundo kit kat, que parece ter funcionado como uma espécie de musa, às vezes basta uma coisinha para uma pessoa desbloquear, está visto. Disse: "- É uma valsa. Quer, mãe?" e só nessa altura é que terá reparado que a mãe já não está ao seu lado mas a dois passos da porta, e o mais provável é que não a tenha ouvido. Dá uma última olhadela para a televisão, talvez para se certificar de alguma coisa, não faço ideia de quê, talvez pelo prazer nostálgico do que não viveu, como costuma acontecer com o som do violino. Ainda a oiço dizer entre a porta e a rua: "-É ópera, sim senhora, mãe, tem razão, é ópera".

1.1.08

o punhal

Eu vi uma cigarra atravessada pelo Sol - como se
um punhal atravessasse o corpo.
Um menino foi, chegou perto da cigarra, e disse que
ela nem gemia.
Verifiquei com os meus olhos que o punhal estava
atolado no corpo da cigarra
E que ela nem gemia!
Fotografei essa metáfora.
Ao fundo da foto aparece o punhal em brasa.

ENSAIOS FOTOGRÁFICOS
Manoel de Barros