31.12.03

em plena benard

Mandou a fatia de bolo-rei para trás. Não estava em condições. O Empregado perguntou se, nesse caso, desejava outra coisa. Não, não, muito obrigada. Talvez uns scones? Não, não, não lhe apetecia. E, voltando ao seu chá de camomila, Madame Castafiore declarou em plena pastelaria Benard: "Nunca gostei de anos ímpares." Palavras não eram ditas e os seus olhos brilharam. Não me atrevi a perguntar mas alguma coisa tinha acontecido. Madame Castafiore era outra. Não foi preciso esperar muito para que a súbita transformação fosse explicada. O Empregado aproximou-se. Madame Castafiore tinha acabado de se lembrar de umas fantásticas queijadinhas de leite.

30.12.03

definição (1)

"Alcance eficaz: distância à qual uma bala ainda é mortal"
in Manual do Graduado de Infantaria
(citado por Jorge de Sena não sei bem onde)

29.12.03

prenda de natal (3)

A loja estava a fechar. Não era hora de responder com uma graça. A Empregada não percebeu nada. Recuei.

- Eu estava só a brincar...
- Deixe lá, uma pessoa tem que dizer alguma coisa.

Entregou-me os dois cadernos, embrulhados num papel com motivos infantis. Paguei. A dois euros o caderno, do que é que eu estava à espera?

28.12.03

prenda de natal (2)

A Rita ofereceu-me um "moleskine". Por fora tem escrito numa banda de papel laranja: "The legendary notebook of Van Gogh and Matisse, Hemingway and Chatwin. Its history lies in its inside pocket."
Na primeira página escrevi o nome, e-mail e número de telefone. Na segunda página escrevi: o dono deste café costuma chamar-me "querida" mas não foi por isso que vim cá. Estou só à espera do homem do "baccara". Vou comprar um carro.

27.12.03

prendas de natal (1)

Madame Castafiore ofereceu-me uma caixa de "Mon Chéri" e dois livros. Os bombons têm dentro licor. Os livros a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen.

ATLÂNTICO

Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.

26.12.03

sopa de cação

Nos meus tempos de estudante em Coimbra a viagem até Évora durava uma eternidade. Fazia-a três vezes por ano e, três vezes por ano, assim que o comboio partia eu só pensava em duas coisas: na sandes de ovo que compraria na estação do Entroncamento e na sopa de cação que a minha mãe haveria de fazer quando eu chegasse.

Ingredientes: "1kg de cação; 1dl de azeite; uma cabeça de alho; dois molhos de coentros; 1/2 colher de colorau; duas folhas de louro; três colheres de farinha; vinagre; sal; fatias de pão."

Técnica: "Num almofariz pisam-se as folhas de coentros, os alhos e o sal. Num tacho, coloca-se o azeite e frita-se ligeiramente a massa obtida dos coentros e alhos e junta-se o louro e o colorau. Deita-se um litro e meio de água, colocando em seguida o cação, que deverá estar partido às postas. Deixa-se cozer o peixe, não muito tempo, para não se desfazer, e antes de terminar junta-se a farinha e o vinagre, que anteriormente se misturou num recipiente, para fazer um polme. Numa terrina deitam-se as fatias de pão e entorna-se o caldo para fazer a sopa. Antes deverá retirar-se o peixe. Come-se em prato fundo, misturando as sopas com o peixe."

Fonte: "Cozinha Regional do Alentejo", de Manuel Fialho, Publicações Europa-América

25.12.03

s.m.s

Recebi uma mensagem de Madame Castafiore. Ou muito me engano ou é um comentário ao post da noite de Natal: "Você adora esses números à Charles Dickens."

24.12.03

alguma coisa coisa se despedaçou no ar

"De repente, alguma coisa coisa se despedaçou no ar imóvel e uma rajada violenta rodopiou pela estepe, rugindo e assobiando. Um murmúrio saiu das ervas e dos arbustos secos do ano anterior. A poeira elevou-se em espirais na estrada, fugiu através da estepe, arrastando atrás de si palhinhas, libélulas e penas e ergueu-se para o céu numa coluna negra impetuosa que obscureceu o Sol. Através de toda a estepe, flores de cardo voaram em todos os sentidos, oscilando e saltando; uma delas foi apanhada no turbilhão. Volteou como um pássaro, elevou-se no céu, onde se tornou um ponto negro, para depois desaparecer completamente. Uma outra seguiu-a, depois uma terceira, e Iegoruchka viu duas delas chocarem-se no céu, agarrando-se, como para se baterem em duelo."

Acabei "A Estepe", de Anton Tchekov. Tchekov escrevia de tal maneira que até a sua morte parece escrita por ele. "Tchekov continuou a respirar com dificuldade. O médico mandou um dos estudantes buscar oxigénio. - Não vale a pena - disse Tchekov. - Estarei morto antes de eles chegarem. Então o médico mandou vir champanhe. Tchekov pegou no copo, voltou-se para Olga Knipper e disse sorrindo: "Há muito tempos que não bebia champanhe." (in "Tchekov" , de D.Magarshack, colecção grandes biografias, editorial aster).

Desde que a minha mãe morreu que a noite de Natal passou a ser para mim uma pequena tortura. Lembro-me sempre da morte e dos que já morreram. E amarrado a isso vem o rol das coisas que não correram bem, os ventos que não sopraram, as miragens que não soube reter. Na noite de Natal os fantasmas divertem-se comigo que nem uns alarves. Mas hoje à noite vou comer faisão e eu nunca comi faisão. Por isso, vou fazer um esforço e sempre que um fantasma aparecer vou lembrar-me do Sebastião, o neto dos donos do restaurante onde almocei e que me contou que fez de rebuçado na festa da sua escola.

23.12.03

fantasia americana

Não sei se foi no sábado, se no domingo. Sei que o dia estava enevoado quando Madame Castafiore me contou a sua fantasia americana. Tudo se passa numa lavandaria. Ele já lá está. Ela chega. Ela põe a roupa na máquina. A máquina põe-se em movimento. Não trocam uma palavra. Um olhar basta. Quando voltam, a roupa está pronta. Very fast, nice price.
Eu estava atónita. Quando Madame Castafiore voltou a falar disse:
-Plutão vai entrar na minha casa.
Senti-me a mais. Só me ocorreu perguntar:
-Quando? Agora?!
Foi nessa altura que reparei que Madame Castafiore tinha entre as mãos o guia astrológico para 2004.

22.12.03

sociedade por quotas

INT/ DIA INFANTÁRIO DA ROSÁRIO

A Telma é da Musgueira. É uma menina alegre e usa fitinhas com missangas no cabelo. Por isso só surpreendeu tudo e todos porque declarou:

- O meu pai trabalha com o Pai Natal.

Na sala a respiração foi suspensa. Houve olhares, houve sorrisos até que, em coro, a sala exclamou:

-O teu pai trabalha com o Pai Natal?!
-Sim. Todos os dias trás coisas novas para casa.

21.12.03

Light

Não me consigo recompôr. Vou sleepar o powerbook e fazer sopa de cação. Arroz Árabe Light:

Ingredientes:
- água q.b.
- 1 dente alho
- 200 grs de arroz vaporizado
- 1 cebola pequena
- 100 grs de ervilhas
- 100 grs de passas
- 50 grs de pinhões
- sal a gosto

Preparação:
Frite a cebola e o alho numa panela anti-aderente (para não ter de utilizar gordura). Junte o arroz, refogue bem e tempere com sal. Adicione a água, misture e deixe cozer em lume forte. Quando começar a secar, apague o lume, junte as passas e os pinhões, tape e deixe acabar de cozer no próprio calor, vedando bem a panela. receitas do mundo

"google sinto-me com sorte"

Felizmente que o Benfica não jogou ontem. É que ontem não foi o meu dia. Exemplo #1: ofereceram-me como prenda de natal um tapete para o rato. Um pormenor das "Tentações de Santo Antão". Acontece que eu não tenho rato. Exemplo #2: publiquei neste bloque uma receita de arroz árabe. Acontece que o meu arroz árabe leva toucinho. Ainda estou em estado de choque. Já confessei publicamente, e volto a confessar, que até corei ao ler o comentário que o Pedro Aniceto fez ao post, relembrando-me o que é que o Maomé pensava do toucinho. Por isso, fiz uma consulta rápida "google sinto-me com sorte". Aqui fica.

Ingredientes:  
350 gr de arroz
70 gr de margarina
7 dl de água quente
1 colh. sopa de pó de caril
1 cubo de caldo de carne
50 gr de miolo de amêndoa
50 gr de sultanas
1 maçã
Sal q.b.

Receita:  
Pele e lamine as amêndoas; seque-as e torre-as ligeiramente no forno. Lave muito bem as sultanas, descasque a maçã e corte-a em fatias. Leve ao lume a derreter a margarina num tacho, junte o arroz e, sempre ao lume, mexa com a colher de pau durante cerca de 2 minutos, até o arroz ficar com aspecto vidrado. Junte o pó de caril, mexa e junte a água a ferver. Volte a mexer, tempere com sal e deixe levantar fervura. Mexa de novo e rectifique os temperos. Espalhe por cima as amêndoas, as sultanas e as fatias de maçã, tendo o cuidado de não voltar a mexer. Reduza o lume, mas de modo a que não perca a fervura, e deixe cozer em lume moderado durante cerca de 15 minutos, até o arroz estar cozido. Quando estiver pronto, mexa com um garfo e sirva. receitas pedidas

Acho que entre uma e outra, menos toucinho, menos knorr, alguma coisa se há-de arranjar. O Benfica-Estrela é daqui a quatro horas. Já devo ter sido perdoada. Quantos às tintas, continuam as mesmas.

20.12.03

arroz árabe

Fazer fundo com azeite, alho, toucinho, cebola e alho francês. Juntar o arroz e o açafrão e deixar glacear um pouco. Deite o caldo de carne. Deixar cozer e juntar os frutos secos.

arroz vaporizado
50gr. toucinho picado
20gr. passas
10gr. pinhões
20gr. nozes
50gr. alho francês
caldo carne
açafrão
azeite
cebola
alho

Receita lida numa revista. Local: cabeleireiro. Tintas: 5N+5.3.

19.12.03

replay DDR

A minha vida está um caos. Finou-se a velha sony e agora o relvado não cabe na outra. Só consigo ver a bola entrar em replay. Como eu não sou taxista, pagamento por conta e nova sony são incompatíveis. Depois, nunca mais chega o clio parisiense e na minha cabeça já está armada uma grande confusão entre o estacionamento em espinha e o estacionamento entre dois carros. Além disso, tenho poemas e receitas em lista de espera. E filmes.

Ontem fui ver "Adeus, Lenine". DDR 1989-1990. Alexander, com a conivência do círculo que lhe é próximo, esconde à mãe, recuperada de um coma de 8 meses, a queda do muro de Berlim e as transformações que anunciam a extinção do país que, para o bem e para o mal, é o seu.

O enredo, tricotado por peripécias e fait-divers, em que os símbolos falam antes das personagens, serve de uma forma simples e sem rodeios as questões da identidade (e da identificação), do amor (e da entrega), da realidade (e da representação), da cumplicidade (e da partilha). O filme nunca foge, nunca deixa de responder às questões que põe, escolhendo para tal um registo trágico-cómico. E isso é um mérito maior.

Actores, cinco estrelas. Realização: convicta, na relação com o argumento; sólida, na direcção de actores; um tanto irregular quanto à técnica e ao domínio do tempo. Em particular apreciei a construção dos primeiros e últimos 20,25 minutos. Igualmente, tão depressa não me esquecerei da sequência de Lenine aerotransportado. Saí da sala com esta estranha sensação: um filme tocante e frio.

Et voilà! Agora que despachei o Lenine da lista de espera, segue-se o arroz árabe ao jantar.

solilóquio

INT/DIA - INFANTÁRIO DA ROSÁRIO

Mesa de trabalho. Concentrados, o Fábio e o Tiago pintam velas de Natal. A Rosário repara que o Fábio fala sozinho. Não consegue perceber o que diz. Um patati patatá sem fim. O Tiago resolve meter conversa com ele. Mas o Fábio não o deixa prosseguir e, um tanto ríspido, diz para o seu companheiro de mesa:
- Cala-te! Não vês que estou a falar sozinho?!

18.12.03

Cesare Pavese

"Para "possuir" algo ou alguém é preciso não se abandonar a ele, não perder a cabeça, em suma, continuar a ser superior. Mas é lei da vida que "goza-se" só aquilo a que nos abandonamos. Foram pois espertos os inventores do amor a Deus: não existe outra coisa que ao mesmo tempo possa "possuir-se e gozar-se".

(diário) 16 de Novembro (de 1937), "Il Mestiere di Vivire. Il Mestiere di Poeta",
Cesare Pavese nasceu em 1908 e suicidou-se numa noite de Verão do ano de 1950 num quarto de hotel em Turim.

Conheci a obra narrativa de C.P. em Madrid e em espanhol, há mais de 10 anos, quando lá passei uns meses de programa Erasmus. Os livros estavam em saldo nas lojas vip. Agora recordo que comprei também as obras completas de Freud. Fiquei encantada com a busca do essencial, do traço essencial, do ruído essencial, do diálogo essencial, da colina essencial. Toda uma paisagem sussurrada e um tempo reconstruido onde moram os temas do instinto sexual, da aproximação amorosa, da amizade, das origens... É isso que retenho hoje dos belos livros de C.P. lidos à hora da siesta.

«L'unica gioia al mondo è cominciare. E' bello vivere perché vivere è cominciare, sempre ad ogni istante.»

Manuel Bandeira

ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma,
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Manuel Bandeira (1886-1968)

17.12.03

a legenda

"Nas paredes e nas janelas não havia nada que pudesse parecer-se com um adorno. No entanto, havia: uma das paredes estava enfeitada com um regulamento que tinha por cima uma águia com duas cabeças, numa moldura de madeira cinzenta, e noutra das paredes havia, numa moldura idêntica, uma gravura com esta legenda: " Indiferença humana." Qual o objecto desta indiferença dos homens, eis o que era impossível dizer, porque a gravura empalidecera com o tempo, além de estar generosamente coberta de cagadelas de moscas. Um cheiro a fechado e a azedo flutuava na sala"

Anton Tchekov, "A Estepe", Publicações Europa-América, 2ª edição (acrescente-se, cheia de gralhas tipográficas), tradução de Mª do Carmo Santos.

Este post "tchekov" foi patrocinado por Vera, gata nascida no ano de 2001, actual titular do cargo de gatafamilias, por morte da gata Lena ( nickname: Leninha), natural do Largo da Graça e que hoje vê nascer o dia debaixo de uma nogueira, no meu Alentejo natal. Quanto ao Benfica ganhou um a zero e passou à eliminatória seguinte. O Belenenses - não sei porquê as gatas desta casa são todos do Belenenses, tal como o meu irmão António - eliminou o Penafiel. E agora vou acabar "A Estepe". Estou na página 95.

relatório médico-legal

Uma pessoa deita-se descansada e, quando acorda, os problemas são mais que muitos. Fui à cozinha e não havia pão. Pelas vidraças da marquise, vi que o dia estava muito, mas mesmo muito mal encarado. Na rádio, um comentador com voz fúnebre analisava o caso da absorção da Somague por um grupo espanhol ( aliás, com o sugestivo nome de Vallehermoso), dando razão a uma amiga de Madame Castafiore que acha que o outro lado da fronteira tem como desígnio nacional vingar 1640. Mas o melhor estava para vir: a prova de que a jovem Mia não gosta do Natal.

Espalhados pelo chão, e olhando-me com ar de poucos amigos, como se eu lhes devesse dinheiro, todos os berloques e bonequinhos com que alguém resolveu decorar as portas da casa. O felpudo pai natal, fabricado na china, metia dó. Não darei pormenores. Direi apenas que estava reduzido a algodão e pequenos fios encarnados, quer dizer, estava esventrado. Os raminhos de azevinho, à primeira vista sem danos de maior, não aguentaram um exame mais profundo, quer dizer, estavam estraçalhados. As árvores de natal feitas de pasta de papel e feltro dourado estavam irreconhecíveis, quer dizer, feitas num oito. Um massacre. Só não percebi por que terá escapado o barrete do pai natal.

E para acabar a manhã em beleza, quando procurei "A Estepe", minha companhia de ontem à noite e que adormeceu ao mesmo tempo que eu, não a encontrei. Procurei debaixo das almofadas primeiro, debaixo da cama depois, e acabei por me resignar. "A Estepe" desapareceu durante a noite. Não estou certa que tenha sido a Mia. Inclino-me mais para a Vera. A Vera é uma gata rebelde e anda farta de ver o amanhecer da janela de um 3º andar. Também eu, Vera, também eu. Por isso, aqui fica o aviso: "A Estepe", uma novela do meu mais que tudo Tchekov, vai ter que estar na almofada ao lado da minha depois do Académica-Benfica. Tens sete horas, Vera. Nem mais um minuto.

16.12.03

curso de jardinagem

Madame Castafiore tem andado desaparecida. Entre projectos e prestações de serviços - e Madame Castafiore é uma mulher tanto duma coisa como doutra -, frequenta aos sábados, pela manhã, um curso de jardinagem.
Bem sei que nisso sai a sua mãe. Madame Castafiore gosta muito de plantas. Mas vivendo ela num terceiro andar e estando provado que o saber ocupa lugar, por que raio andará Madame Castafiore num curso de jardinagem, pensei.
Ontem falei com ela. Já sabe o que são canas índicas. Mais. Sempre que no curso falam dos ladrilhos e da areia vinda dos rios que cobrem o fundo dos vasos, vem-lhe à memória a queda da ponte. E. Finalmente viu a árvore da sumauma, mistério das almofadas da sua infância. Mas conte-me mais, insisti eu, um pouco inquieta, já que o meu sexto sentido não me largava. Com razão. Entre samambais, trepadeiras e coníferas de rápido crescimento, adubos e compostos, correntes de ar, rega e pulverização, Madame Castafiore confessou que, efectivamente, do que gostava mais no curso de jardinagem era o intervalo. Ao intervalo servem um cafézinho acompanhado por sortido húngaro e broas de espécie.

15.12.03

problema de audição

INT/DIA - INFANTÁRIO DA ROSÁRIO

- Onde é que trabalha a tua mãe? No Continente?
- Não, Rosário, no Intendente.

musgueira norte

redacção: "O que eu penso sobre a minha família"

"Eu acho que a minha família o que só tem de mal é ser pobre, não muito pobre, mas assim, assim porque não pode ter possibilidades de ser rica. E se a minha família fosse rica ajudava os pobres e dava roupa à casa de caridade. Portanto já contei tudo o que penso da minha família, não tenho mais nada para dizer acerca da minha família querida e boa, que é a coisa que eu mais adoro no mundo. Pronto acabei de escrever o que penso.
Igor"
boletim rendimento mínimo, edição especial, ano 1-Julho/98

14.12.03

bombordo, o lado do coração

direita-verde-estibordo. esquerda-vermelho-bombordo.
quando as luzes são iguais não há perigo de colisão.

12.12.03

Anónimo Árabe

A SOLIDÃO

Como todos os dias, espero-a.
Voltará ela?

Penso na noite do nosso adeus,
no ruído da porta que ela fechou sem cólera,
no silêncio que se fez na minha alma.

Como todos os dias, espero-a.
Voltará ela?

Ela entraria dizendo, por falar:
"Passava diante da tua casa.
Venho ver se as rosas
não sofreram com o Inverno."

Ela sorriria ao meu pequeno jardim,
ao horizonte calmo
e estou certo que não voltaria a partir.

Anónimo Árabe, sec.X, "O Jardim das Carícias"

11.12.03

muitos como os chapéus

catorze horas e trinta minutos num café alentejano. dezoito clientes. quinze homens e três mulheres. doze dos quinze homens usam boné. um boné sai. boné e saco de plástico. entram duas gravatas. há música na parabólica. muito metal e uma voz de barítono do exército vermelho. mas podemos continuar. quantos óculos. quantas camisas aos quadrados. blusões versus casacos. sapatos, sapatilhas e botas. mas atenção, muita atenção que nas botas há duas subcategorias: atacadores e caneleiras. nuvens rápidas, sol na objectiva e aí vai disto. é um novo videoclip. continuando, se tivermos o privilégio de ver um homem que usa boné sem boné poderemos ver que a metade superior da testa está branca e metade do cabelo acachapado. o boné tira-se para dormir. em "O Largo", Manuel da Fonseca fala de quando os homens acompanhavam as mulheres à missa, não passavam do adro. não entravam em casas onde fossem obrigados a descobrir-se. desde que idade usam bonés? um boné que se preze está sebento na ponta e as marcas dos dedos não deixam mentir. outra música. uma montagem à maneira. eisentein trial. que vejo eu? vozes com bonés. há bonés na parabólica. americanos. mas bonés, quand même.

10.12.03

"Inscrição"

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

Sophia de Mello Breyner Andresen

9.12.03

"olá, pessoal"

INT/ DIA - INFANTÁRIO DA ROSÁRIO

A Rosário explica aos seus meninos a maneira de saudar os outros, segundo a altura do dia: "Bom dia", "Boa tarde", "Boa noite". No final, o Fábio (a young man de 5 anos, que não vê nada sem óculos e está loucamente apaixonado pela auxiliar) fala em particular com a Rosário:

- Ó Rosário, eu quando chego ao pé dos meus amigos digo: olá, pessoal!

Que podia a Rosário fazer? Dar-lhe um beijinho.
Já, já disse à Rosário para fazer um blogue.

inícios (5)

"Na sala de jantar da minha avó havia um aparador com portas de vidro e dentro desse aparador um pedaço de pele. Era apenas um bocadinho, mas espesso e coriácio, com manchas de pêlo avermelhado e rijo. Esteve preso por um alfinete enferrujado a um postal onde mal se distinguia qualquer coisa escrita a tinta preta, mas, nessa época, eu era demasiado miúdo para saber ler.
- O que é aquilo?
- Um pedaço de brontossauro."

Assim começa "Na Patagónia", de Bruce Chatwin (Quetzal Editores, trad. J.L.Luna). Gostava de escrever como Bruce Chatwin. Gostava de escrever um livro como "Na Patagónia". Vai mais ou menos dar ao mesmo, mas é uma maneira de, em dose dupla, exprimir a minha admiração. Aliás, não é bem admiração. Também não é adoração. As palavras terminadas em ão não me estão a soar nada bem.

Dos ratos dizia a minha mãe que não tinha medo. Tinha respeito. Também não tinha medo das trovoadas, tinha respeito. Pois eu não tenho inveja de Bruce Chatwin. Tenho respeito.

Precisamente há dois anos, pelo Natal e sem nunca o ter lido, ofereci o livro a uma amiga minha. Foi quase um acto de desespero. As lojas estavam a fechar e eu sem a prenda. Mergulhei naquela livraria da rua Cavaleiro de Oliveira e ouvi-o a sussurar: leva-me contigo. Foi um casamento de conveniência. Eu não tinha prenda e ele não queria passar o noite de Natal ali, entre "As Cartas do Meu Moínho" e "O Erotismo Sagrado". Ainda por cima, soube-o depois, temia o pior: de um lado há uma loja de vinhos, do outro uma loja de animais e, naquelas circunstâncias, não era difícil imaginar iguanas, tartarugas, pardais e peixinhos vermelhos a fazer uma visita à espirituosa loja, tendo para isso que passar pela livraria e, muito provavelmente, por cima dele. E se isso poderia não incomodar à ida certamente à vinda outro galo cantaria. Mas atenção, ele não se estava a queixar. Apenas aspirava à liberdade ou, pelo menos, a um pouco de ar fresco. Tal como as iguanas, tartarugas, pardais e peixinhos vermelhos. Mandei-o embrulhar, paguei e saí da livraria sem olhar para a loja de animais. Também não olhei para a loja dos vinhos.

Ofereci o livro e pedi-o emprestado (por esta ordem). De então para cá já ofereci para aí umas quatro patagónias. Esgotei o stock da livraria mais perto de casa. E continuo sem ter o livro. A próxima vez que for à fnac não saio de lá sem a minha própria patagónia. Há livros que uma pessoa tem mesmo de ter.

"In Patagonia", título original, foi publicado em 1980. Bruce Chatwin morreu. Mas continua a ser amado por muitos, nomeadamente, pelos que nunca viajaram, como eu. Não é bem verdade. Há dois anos, pelo Natal, fiz uma viagem inesquecível à Patagónia. Este ano ainda não sei onde vou passar o Natal. Mas vou escrever ao Menino Jesus a pedir-lhe um bocadinho de brontossauro.

8.12.03

o ventilador do metro de Nova Iorque

"Existem mais livros sobre Marilyn Monroe que sobre a Segunda Guerra Mundial. Há uma certa semelhança entre as duas. Era o inferno, mas valia a pena."

Billy Wilder
dirigiu MM em "O Pecado Mora ao Lado" (The Seven Year Itch) e "Quanto mais Quente Melhor" (Some Like It Hot). Creio que foram só estes dois que fizeram juntos. Lembrei-me da Marilyn por causa do meu trabalho actual, não por causa da 2ª GG. Mas vale sempre a pena lembrar Billy Wilder.

7.12.03

"Inscrições Sobre as Ondas"

Mal fora iniciada a secreta viagem
um deus me segredou que eu não iria só.

Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que deus me segredou.

DAVID MOURÃO FERREIRA

6.12.03

Rua do Passadiço

Mesmo agora me levantei e já estou atrasada. E ainda não li o jornal de ontem. Só tive tempo de ir ao café do guarda-chuva amarelo e beber duas bicas. Não havia muita gente. Talvez por isso, a discussão entre as duas mulheres ouvia-se perfeitamente. Era sobre como chegar à Rua do Passadiço, se virando duas à direita de quem sobe, se logo na primeira à esquerda depois de. Até que o empregado resolveu intervir. Chegou ao pé das duas mulher e disse nas calmas:
- Depois não me venham dizer que o café está frio.

4.12.03

prisão

"Prisão. É a coisa que consigo imaginar mais aproximada de fazer um filme."
Eminem, depois de "8 Mile"

Hoje é o meu dia de folga.

o pai natal e o código postal

INT/DIA - Infantário. Diálogo na sala da Rosário:

- O meu irmão diz que são os pais que dão as prendas...
- Onde é que tu moras? É que depende do sítio.

3.12.03

hoje não temos molotov

Madame Castafiore convidou-me para almoçar. Pediu peixe. Madame Castafiore estava muito aborrecida. Primeiro porque gosta de pastéis de nata pela manhã mas depois fica arrependida e, sobretudo, enjoada. Já não se pode ter uma fraqueza. Segundo porque, no trabalho, foi acusada de ser "muito directiva" por uma serigaita (definição: mulher com madeixas que anda a fazer um mestrado). E a prova de que a vida não lhe anda a correr bem estava ali à sua frente. O peixe que pediu era, afinal, congelado. A filha do dono do restaurante enunciou a lista de sobremesas: pudim flan, mousse de chocolate, mousse de ananás, doce de manga, baba de camelo, doce da avó, arroz doce, pudim de ovos. E molotov? Hoje não temos molotov. A filha do dono do restaurante repetiu a lista. Madame Castafiore acabou por decidir-se: pudim de ovos. No fim, eu paguei a conta.

1.12.03

amores integrais

Um amor passado visitou-me. Com esta vida que tenho levado, o frigorífico tem estado ao abandono. O jantar seria fora. Mas convém ter em casa alguma coisa para trincar. Comprei à pressa laranjas e bolachas. Não sou muito dada a distracções mas não sei o que me passou pela cabeça para ter comprado um pacote de bolachas que tem impresso o nome de "amores integrais". Hoje arrumei o pacote. Faltavam duas bolachas. E encontrei no quarto um policial esquecido: "O Cheiro da Noite". Apeteceu-me chorar.