9.12.03

inícios (5)

"Na sala de jantar da minha avó havia um aparador com portas de vidro e dentro desse aparador um pedaço de pele. Era apenas um bocadinho, mas espesso e coriácio, com manchas de pêlo avermelhado e rijo. Esteve preso por um alfinete enferrujado a um postal onde mal se distinguia qualquer coisa escrita a tinta preta, mas, nessa época, eu era demasiado miúdo para saber ler.
- O que é aquilo?
- Um pedaço de brontossauro."

Assim começa "Na Patagónia", de Bruce Chatwin (Quetzal Editores, trad. J.L.Luna). Gostava de escrever como Bruce Chatwin. Gostava de escrever um livro como "Na Patagónia". Vai mais ou menos dar ao mesmo, mas é uma maneira de, em dose dupla, exprimir a minha admiração. Aliás, não é bem admiração. Também não é adoração. As palavras terminadas em ão não me estão a soar nada bem.

Dos ratos dizia a minha mãe que não tinha medo. Tinha respeito. Também não tinha medo das trovoadas, tinha respeito. Pois eu não tenho inveja de Bruce Chatwin. Tenho respeito.

Precisamente há dois anos, pelo Natal e sem nunca o ter lido, ofereci o livro a uma amiga minha. Foi quase um acto de desespero. As lojas estavam a fechar e eu sem a prenda. Mergulhei naquela livraria da rua Cavaleiro de Oliveira e ouvi-o a sussurar: leva-me contigo. Foi um casamento de conveniência. Eu não tinha prenda e ele não queria passar o noite de Natal ali, entre "As Cartas do Meu Moínho" e "O Erotismo Sagrado". Ainda por cima, soube-o depois, temia o pior: de um lado há uma loja de vinhos, do outro uma loja de animais e, naquelas circunstâncias, não era difícil imaginar iguanas, tartarugas, pardais e peixinhos vermelhos a fazer uma visita à espirituosa loja, tendo para isso que passar pela livraria e, muito provavelmente, por cima dele. E se isso poderia não incomodar à ida certamente à vinda outro galo cantaria. Mas atenção, ele não se estava a queixar. Apenas aspirava à liberdade ou, pelo menos, a um pouco de ar fresco. Tal como as iguanas, tartarugas, pardais e peixinhos vermelhos. Mandei-o embrulhar, paguei e saí da livraria sem olhar para a loja de animais. Também não olhei para a loja dos vinhos.

Ofereci o livro e pedi-o emprestado (por esta ordem). De então para cá já ofereci para aí umas quatro patagónias. Esgotei o stock da livraria mais perto de casa. E continuo sem ter o livro. A próxima vez que for à fnac não saio de lá sem a minha própria patagónia. Há livros que uma pessoa tem mesmo de ter.

"In Patagonia", título original, foi publicado em 1980. Bruce Chatwin morreu. Mas continua a ser amado por muitos, nomeadamente, pelos que nunca viajaram, como eu. Não é bem verdade. Há dois anos, pelo Natal, fiz uma viagem inesquecível à Patagónia. Este ano ainda não sei onde vou passar o Natal. Mas vou escrever ao Menino Jesus a pedir-lhe um bocadinho de brontossauro.