31.12.08

meia de leite

O homem do talho pôs os cotovelos no balcão e pediu uma meia de leite. Desviei o olhar. Sempre embirrei com as meias de leite. Se eu fosse inglesa criava um top ten das minhas embirrações só por causa das meias de leite.

Preferi desviar o olhar. Concluídas as primeiras cinco páginas do livro que levava comigo, insisti. Apanhei o homem do talho com uma bola de berlim atravessada na boca no momento em que um bocadinho de creme se soltou e caíu ao chão. O homem do talho primeiro tentou apanhá-lo no ar, depois encostou o pé e empatou o jogo. Tudo isto enquanto mastigava a meia bola de berlim, e com a meia de leite na mão, agitando-a, como se algures no tempo um metrónomo concertasse todos aqueles movimentos. Bebeu uma pinguinha. Afastou os grãos de açucar da cara e fez um movimento com a língua no interior da boca. Estava nervoso. Olhou nervoso para a meia de leite.

Ainda tinha outra meia bola de berlim para comer e não tinha outra meia de leite para beber. Desviei o olhar. Nada podia fazer por ele. Ele continuou no seu dilema. Eu fingi que escrevia isto num guardanapo: tréguas, hoje é o último dia do ano.

29.12.08

inícios (22)

- Há uma data na varanda desta sala - disse Germana - que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.
A SIBILA
Agustina Bessa Luís

Guimarães & C.ª Editores

25.12.08

exercícios (ontem jantei)

Ontem jantei sem ela.
Ontem jantei costeletas. Com hortelã.
Ontem jantei rabanetes.
Ontem jantei com ela.
Ontem jantei às duas da manhã.
Ontem jantei no sofá que trouxe do Ikea.
Ontem jantei em S.Petersburgo.
Ontem jantámos os dois.
Ontem jantei numa estação de serviço.
Ontem jantei na Travessa do Enviado de Inglaterra.
Ontem jantei numa mesa com três castiçais e um vaso de orquídias na varanda.
Ontem jantei ao pé dum cemitério.
Ontem não jantei.

24.12.08

natal

Mais logo é noite de Natal. Eu desejaria estar à espera do Menino Jesus, em Évora, diante da chaminé; saber que lá fora há frio, provar a cacholeira assada, deixar-me enfeitiçar pelos cristais da garrafa de anis, ao som do rádio. Hoje interrogo-me como é que conseguia adormecer e esperar pela manhã seguinte. Devia ter muito sono ou acreditar muito. Em qualquer dos casos, resultava. Acordava cedo. A casa cheirava a carne frita e bacalhau cozido, eu olhava para os restos de bolo e aproximava-me da chaminé e via finalmente qualquer coisa no sapatinho, qualquer coisa que o Menino Jesus lá tinha deixado, evidentemente.

Esta noite estarei na Penha de França, pensarei nos meus mortos, no salto que não darei, no tremendo equívoco que foi a minha vida, no futuro que nunca mais passa. A nostalgia é muito útil no Natal.

23.12.08

a lanterna

O pai era ferroviário. Quando se levantava de noite, tinha sempre uma lanterna à mão. Essa imagem apareceu-lhe quando entrou na estação com a filha pela mão.

22.12.08

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19.12.08

a medida

Era uma ilha onde os habitantes conheciam todos os cães pelo nome .

18.12.08

ainda agora

Nevoeiro: amanheceres no Alentejo, máquina de fumo, D.Sebastião, hoje mesmo ao acordar. Escrevo aqui e não além, como se dum caderno de significados se tratasse.

17.12.08

XIV

Através do teu coração passou um barco
Que não pára de seguir sem ti o seu caminho.

Navegações
Sophia de Mello Breyner Andressen

16.12.08

à espera dos linguadinhos (com arroz de feijão)

Estás a falar sozinha?

Olha para mim. O que é que estavas a dizer? Estavas a falar sozinha? Diz-me lá, o que é que estavas a dizer? Eu não ouvi, como estavas a falar sozinha eu não ouvi. O que é que estavas a dizer? O que é que estavas a dizer? Olha para mim. Estavas a falar sozinha? Eu não ouvi. Olha para mim. Olha para mim. Olha para mim.

15.12.08

a limpeza

Limpou a janela com a competência que se lhe conhecia. Divergiu da colega sobre a técnica, os materiais, os pequenos truques, o ritmo, o tempo médio que cada janela levava a limpar e, finalmente, deixou as superfícies vidradas de lado, virou-se para as empadas da pastelaria. Que já tinham estado muito melhores, que a massa cada vez valia menos, e encontrava bocados de ossos, e às vezes até a deixavam queimar, ela sabia muito bem, há anos que comia aquelas empadas, não lhe viessem dizer que estavam iguaizinhas ao que eram quando a casa abriu. Isso não. Era um hábito aquele, estar sempre a discutir. Às vezes a colega recusava-se a discutir, como naquela madrugada , quando perguntou: - Gostava de saber porque é que no Natal passam filmes de violência na televisão? A colega respondeu: - E eu gostava de saber porque é que eu hei-de ter que responder. Nem as empadas escapam. O que é que me interessam as empadas? Já me viste comer alguma empada, já? Então se não viste porque é que me vens com essa conversa das empadas? Sabes que mais? Olha o melhor é eu calar-me .

Passados uns minutos, mais calmas, e já com três quartos das janelas lavadas, a que tinha a mania das discussões - meu Deus, como ela adorava uma boa discussão, era o que ela costumava dizer às pessoas, "eu adoro uma boa discussão", dava vontade de acrescentar "quase tanto como como uma boa empada" - ela, então, disse: - Ouve lá, mas afinal não me respondeste: achas bem que passem filmes de violência no Natal? A outra abriu a janela de par em par.

Naquela madrugada ouviu-se por toda a cidade uma palavra. A cidade acordou. Não toda, mas muita gente acordou. As pessoas que acordaram contaram às que não acordaram que tinham ouvido nessa madrugada um palavra gritada, uma palavra que circulava abaixo das nuvens, uma palavra urgente e definitiva. Ninguém sabia explicar a origem desse eco mas todos pronunciavam a palavra. A palavra, simples, não tinha nada de misterioso. Só era inquietante a forma como cada qual tentava reproduzi-la, para não trair nem a memória nem a imaginação dessa madrugada. Passados muitos anos, para quem não assistiu, é difícil acreditar que possa haver alguma coisa de inquietante na palavra "sim".

12.12.08

pequeno almoço tardio

Bebeu o café. Pousou a chávena e agarrou no copo, rodou-o entre os dedos, agitou o líquido e bebeu-o satisfeito. Era sumo de laranja natural. Abriu os braços e espreguiçou-se. Só depois comeu a meia torrada. Desde pequeno que fazia tudo ao contrário. Antes de ali chegar fumara um charuto longamente,

11.12.08

Amália

Quando o pensamento me ocorreu achei-o absurdo: Amália foi quem mais me fez chorar em toda a minha vida. Ora por causa de um fado, e às vezes um fado chega aos meus ouvidos como se nunca o tivesse ouvido, ora por causa de uma imagem sempre outra, os olhos fechados, o grande rio ao fundo. Ora porque estou contente, porque sou triste, por causa duma certa maneira, por causa duma nota suspensa, porque passo na Mouraria, porque passo na Madragoa, por um ciúme, por uma resignação, ou se uma gaivota vier. Sei lá as vezes que eu já chorei à conta de Amália. Quando sexta-feira saí do Londres depois de ver um filme sem cinema, arrumei a coisa sob um "que se lixe" de fim de tarde. Atravessei a Alameda por entre os cães, os donos e as crianças nos baloiços, e fui para casa ouvir o "Com que voz" duma ponta à outra. Amália dá-me um intervalo, uma consciência, é um tumulto mas também uma serenidade, como um sol que ilumina o negro.

10.12.08

lucidez

- E tu Nina, como é que tu és?
- Eu?
E olhou a interlocutora de alto a baixo, para marcar de forma absoluta a inutilidade da pergunta.
- Eu sou linda!

(diálogo no infantário, entre a Nina, uma jovem eslava de 5 anos, e a Rosário, educadora, "a minha vizinha do 2º")

9.12.08

aforismos; Kafka; tradução

67. Ele corre atrás dos factos como um principiante da patinagem sobre gelo, que, ainda por cima, pratica no sítio onde isso é proibido. 94.Duas tarefas do princípio da vida: restringir cada vez mais o teu círculo e verificar constantemente se não estás escondido algures fora do teu círculo. 43.Os cães de caça estão ainda a brincar no quintal, mas a caça não lhes escapa, por muito que esteja já a correr por entre a floresta. 5.A partir de um certo ponto já não há regresso. Há que atingir este ponto.


trad.:Álvaro Gonçalves; Assírio& Alvim, 2008
na nota de apresentação de "Aforismos", feita pelo tradutor, pode ler-se: "Esta edição de "Aforismos" segue rigorosamente a edição crítica denominada Franz Kafka, Nachgelassene Schriften und Fragmenten II. In der Fassung der Handschriften" (...) esta obra surge titulada em itálico e com aspas, indicando que o título de "Aforismos" não é da responsabilidade de Franz Kafka, mas que segue tão-somente o título do índice do volume da edição crítica acima citada."

8.12.08

a capa do livro

Assim que lá chegou arrependeu-se e abandonou o livro em cima do edredon. "Meu Deus, o frio que está". Estava frio. Diz-se que as noites frias convidam à leitura. Deveria acrescentar-se, pensou, se os quartos estiverem aquecidos. As noites frias são boas se forem quentes, ora aí está. Esta reflexão deixou-a satisfeita. Deixou também a cabeça de fora e apagou a luz.

Na escuridão tentou lembrar-se do nome da cidade que estava na capa, em letras impressas sobre o cabelo do autor, nariz afilado, a olhar para nós. Gosta desse olhar, direito à objectiva, que jeito que dão as objectivas. Dispensam-na de interpretar, pelo menos de interpretar olhares, e assim escapar aos sentimentos de inveja e pavor que lhe provocam as pessoas que têm sempre uma interpretação engatilhada. Ela preferia confiar nas objectivas e no olhar que, diga-se, pelo menos naquele caso, eram uma e a mesma coisa.

Virou-se. Ouviu ao longe uns pneus desesperados. Abriu os olhos. Sempre achou que aquela passadeira estava mal colocada. Fechou os olhos. A cidade começava por w., lembrou-se ou pensa que se lembrou, como veremos. Acha que sorriu. É um bocado estúpido sorrir na escuridão. Nem para a própria sombra se sorri. É desolador. É estúpido. Este pensamento esgotou-a e adormeceu.

Acordou às 6 da manhã. Acordava pontualmente às 6 da manhã. Os vizinhos do andar superior acordavam cedo, às 6 da manhã. Ouviu por cima da sua cabeça o soalho a ranger, uma cama a ranger, pés, pés com botas a ranger. São emigrantes. Não têm culpa. Às vezes também se levantava às 6 da manhã, mesmo sem ser emigrante, custava-lhe, os pés gelados e sem culpa percorriam o corredor, cujo soalho rangia e, nesses dias, é possível que no andar inferior alguém acordasse às 6 da manhã. É a cadeia alimentar. Não há maneira de evitar esse tal soalho das 6 da manhã. Acendeu a luz, olhou para o lado e irritou-se: a tal cidade não começava por w. e talvez nem sequer cidade fosse. Começava por z.

Pegou no livro de capa amarela e leu o primeiro aforismo:

O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada ao alto, mas rente ao chão. Parece antes destinar-se a fazer tropeçar do que a ser percorrida.

Por baixo estava o aforismo no original: der wabre Weg geht e não sei que mais, não tinha paciência, passou à frente. Fosse como fosse de nada serviria: não sabia alemão.
Leu os aforismos todos seguidos. Chegou ao 37 ou ao 38, sim, talvez tivesse chegado ao 38. Os aforismos provocavam-lhe esta estranha reacção: punha-se a lê-los todos de seguida e a dada altura começava a saltitar, acabando por espreitar o último, como se fosse o fim. Neste caso foi a partir do 37 ou 38 que começou a saltitar. Escorregou no 67. Daí para o 94. Voltou atrás: 43. Ah, o 43., o 43. No 5 fechou os olhos.

Pousou o livro no edredon e o gato sentou-se sobre a capa: Franz Kafka, "Aforismos" "(escritos na localidade histórica de Zurau)", Assírio&Alvim. Havia uma vinheta colada que o gato raspou com a garra: "125 anos do nascimento de Franz Kafka". De olhos fechados, sorriu. Pôs-se a imaginar Kafka com 125 anos. Era possível. Fechou mais os olhos e imaginou Tolstoi com 180 anos. Imaginar Tolstoi com 180 anos é mais complicado, é muito complicado. E Rosseau ? Com 296? Querem ver que não sou capaz de imaginar Rosseau com 296 anos? Estava quase a adormecer. Mas adormecer não é desistir. A ver se não se esquecia de amanhã começar pelo Rosseau, depois Caravaggio, depois Dante, depois.

5.12.08

outra pergunta

- Estás a pensar em quê?
- Mas queres mesmo saber em que é que eu estou a pensar?

(Não. Tenho medo que não estejas a pensar em mim).

4.12.08

a pergunta

"Um dia pergunto o teu nome". Passei o pacote de açúcar duma mão para a outra e meti-o no bolso. Em casa guardei-o no sítio dos pacotes de açúcar: "um dia arranjo uma casa à beira-mar", "um dia desato a cantar na rua", "um dia escrevo-te uma canção", "um dia pergunto o teu nome". Eu tenho vários nomes. Tenho o ascendente em Gémeos. Sempre que me constipo, lembro-me de Fernando Pessoa.

2.12.08

Fera sou

Fera sou deste lugar sombrio
E com uma flecha no ombro
fujo, triste, ao cabo da minha dor
e o cerco que lentamente me agrilhoa.

Como a ave que o fogo arde
entre as plumas, a fugir num voo
do seu ninho quente, a ao debandar
o fogo aviva com as próprias asas.

Assim eu entre a aurora estival e as sombras,
voando alto com as asas do desejo,
tento escapar do fogo que me queima.

Quanto mais eu voo entre as margens
fugindo deste mal, com um salto feroz
sobre a morte lenta, procuro a vida curta.

CHIARA MATRINI (1514-1597)
Rosa dos Ventos, Assírio&Alvim
trad.: J.H.Bastos

1.12.08

fashion

Castafiori telefonou-me. Chorosa, desamparada, irreconhecível. Uma queda, um pé torcido, um grande aborrecimento. Estava em casa cheia de dores e, agora que tinham passado umas horas, o seu estado agravara-se, não sabia se havia de ir ao hospital. Receava ter alguma coisa partida mas ainda receava mais as horas de espera na urgência. E depois toda aquela gente a tossir, em cima uns dos outros, e as máquinas de café sem trocos, ciganos no exterior, polícias com bonés de basebol, radiologistas apressados, ortopedistas sem piedade, meu Deus, já bastava o pé partido. Não estaria a exagerar?

"- Conhece a minha fragilidade neste pé, não conhece? Desde pequena que estas coisas me acontecem, 'tá a ver?" Só não digo que larguei tudo para ir ter com ela porque eu, diga-se a verdade, não estava a fazer nada. Efectivamente, testemunhei várias vezes ao longo da nossa já longa amizade a famosa fragilidade do pé direito de Madame Castafiori onde, segundo ela, pouca coisa ainda se assemelhará a ligamentos, apesar de existirem 107 em cada pé, como veio a referir duas horas mais tarde o ortopedista de serviço.

Subi apressadamente as escadas e, pensando agora em retrospectiva, eu acho que o cheiro já lá estava, já me cheirava a verniz nas escadas. Mas a situação urgia. Encontrei Madame Castafiori a pintar as unhas dos pés, sim, dos pés, no plural, com um verniz carmim, espesso, brilho médio, todo ele química. Sentei-me sem uma palavra. "- Já sei o que está a pensar. Eu sei que não percebe estas coisas, mas eu não podia ir assim para o hospital. Evidentemente." Admirei-me com o suspiro normativo que interrompeu a frase. Segundos depois completou-a:"- Como uma vadia". Sentindo que o argumento tinho caído em mim como uma fogueira no S.João, Castafiori virou-se para mim: "- Gosta da cor?"

Eu disse que sim, que havia eu de dizer? Não? Sim, parecia-me bem, a cor. "- É para dar com o roxo, a blusa é roxa e o casaco também, 'tá a ver?" E mudando definitivamente de tom, agora mais grave, mais envolvente, outro treino, enfim, levantou voo: "-Acha que eu vou bem de roxo para o Hospital?" Não sei se Castafiori terá repetido a pergunta diante do ortopedista que confirmou que, de facto, havia ali uma fractura antiga, mal tratada, ou tratada, quem sabe, com demasiada piedade, e que lhe afectava todo o ciclo biomecânico. Felizmente, desta vez estava inteira.