15.12.08

a limpeza

Limpou a janela com a competência que se lhe conhecia. Divergiu da colega sobre a técnica, os materiais, os pequenos truques, o ritmo, o tempo médio que cada janela levava a limpar e, finalmente, deixou as superfícies vidradas de lado, virou-se para as empadas da pastelaria. Que já tinham estado muito melhores, que a massa cada vez valia menos, e encontrava bocados de ossos, e às vezes até a deixavam queimar, ela sabia muito bem, há anos que comia aquelas empadas, não lhe viessem dizer que estavam iguaizinhas ao que eram quando a casa abriu. Isso não. Era um hábito aquele, estar sempre a discutir. Às vezes a colega recusava-se a discutir, como naquela madrugada , quando perguntou: - Gostava de saber porque é que no Natal passam filmes de violência na televisão? A colega respondeu: - E eu gostava de saber porque é que eu hei-de ter que responder. Nem as empadas escapam. O que é que me interessam as empadas? Já me viste comer alguma empada, já? Então se não viste porque é que me vens com essa conversa das empadas? Sabes que mais? Olha o melhor é eu calar-me .

Passados uns minutos, mais calmas, e já com três quartos das janelas lavadas, a que tinha a mania das discussões - meu Deus, como ela adorava uma boa discussão, era o que ela costumava dizer às pessoas, "eu adoro uma boa discussão", dava vontade de acrescentar "quase tanto como como uma boa empada" - ela, então, disse: - Ouve lá, mas afinal não me respondeste: achas bem que passem filmes de violência no Natal? A outra abriu a janela de par em par.

Naquela madrugada ouviu-se por toda a cidade uma palavra. A cidade acordou. Não toda, mas muita gente acordou. As pessoas que acordaram contaram às que não acordaram que tinham ouvido nessa madrugada um palavra gritada, uma palavra que circulava abaixo das nuvens, uma palavra urgente e definitiva. Ninguém sabia explicar a origem desse eco mas todos pronunciavam a palavra. A palavra, simples, não tinha nada de misterioso. Só era inquietante a forma como cada qual tentava reproduzi-la, para não trair nem a memória nem a imaginação dessa madrugada. Passados muitos anos, para quem não assistiu, é difícil acreditar que possa haver alguma coisa de inquietante na palavra "sim".