30.12.10

singing in the rain

Esperava o toner para uma impressora, encomendado na net, e recebi uma pequena sombrinha amarela, graciosa e infantil. O toner passou por Vila Nova de Famalicão, soube depois. Mas na altura em que o soube já o toner estava em Puerto de Santa Maria, Cadiz. O laser e a fantasia andam à solta na Península Ibérica, pensei, mais o dia e o mundo pertence-lhes.  É o mercado. Don't worry, disseram-me. Isso teve em mim uma acção libertadora. Imediatamente me imaginei a receber um mail de Dunedim, estado de Otago, Nova Zelândia: your toner is so nice, you can stand under my umbrella.

29.12.10

Ai, doce pensamento meu,
quando me levarás onde te envio eu!
Anónimo
início séc.XVII
Romancero general

28.12.10

alegria passageira

Ontem ao cair da noite, a alameda cheirava a relva cortada. Dei quatro voltas e fiquei sem fôlego.

27.12.10

dia de natal

Ali estava ele na estação. Parecia nervoso. E se ela já tivesse chegado? E se ela não tivesse esperado? Desde sempre ouvira histórias sobre mulheres. Caprichosas, cruéis, infantis. As mulheres não esperavam. Mas mesmo que essas garras de veludo fossem excluídas dos cálculos, as mulheres esperavam, sim, mas em casa. As mulheres não esperavam em estações de comboios. Era uma espécie de jogo. E agora ali estava ele, nervoso, a contar os passos no cais, os olhos a fugirem para o relógio de minuto a minuto. E se ela já tivesse chegado? Finalmente ouviu o aviso, o comboio procedente, etc., etc.,  circulava com atraso. Terá esta voz rouca que anunciava, a que parecia faltar o ar, evitado um crime passional no dia mais celebrado no mundo ocidental?

25.12.10

boas festas

Lá em cima, na minha terra, tenho mil metros à volta da casa, já lhe tinha falado disso, lá em cima, ao pé de Aveiro, tenho mil metros quadrados à volta da casa. Tenho lá 10 macieiras - golden, starking e reineta, mas a maioria é golden, tenho pelo menos umas cinco golden, em dez, 'tá a ver, é metade -, tenho 3 pereiras, 1 tangerineira, que pus lá o ano passado, nunca pensei que pegasse, 2 laranjeiras, 3 figueiras, 6 marmeleiros, tudo se dá naquela terra, e ainda são mil metros quadrados.  Olhe, tenho uma figueira tão grande, tão grande, as raízes vão daqui até onde está aquele carro encarnado, não sei se está a ver, que grande figueira. Já não posso com figos, é que já nem os posso ver, quanto mais comer. Vou mandá-la cortar, para a Páscoa vou mandá-la cortar. E já que estamos com esta conversa, sabe quem é o maior produtor mundial de maças? Eu digo-lhe, a China, meu amigo, a China.

23.12.10

Marcar como lida.

"Escrever é descobrir um segredo e comunicá-lo."
Maria Zambrano.
Marcar como lida.
"Nos habitons notre corps bien avant de le penser."
Albert Camus.
Marcar como lida.
"Porque razão, quando alguém pensa matar-se, se imagina morto, não para si próprio mas para os outros?"
Luigi Pirandello.
Marcar como lida.
"Where I am there is no one but me, who am not."
Samuel Beckett
Marcar como lida.
"O batom deixa acima de tudo uma nódoa gordurosa; logo, trate da gordura primeiro."
Guia da Limpeza de Nódoas
Marcar como lida.
Feliz Natal!

21.12.10

cavalo e cavaleiro

A criança brinca com um cavalo sobre a mesa do café. Cabe-lhe na mão fechada. Mas a criança fá-lo deslizar num infindável trote, contorna chávena e pires, contorna inclusive uma migalha de torrada, o pacote de açúcar aberto, os dedos da avó ao lado do jornal. A mesa torna-se escassa e cavalo e cavaleiro avançam a galope e escalam a parede ao lado da mesa. Mas eis que algo se avista. A criança encosta a orelha à parede e escuta em silêncio. Cá para mim eram índios.

20.12.10

Merry Christmas, Madame Castafiori!

Cá e lá c'est noel. Comprei um paté de nozes e vinagre balsâmico ao preço do vinho do porto. No dia seguinte, senti-me culpada.  Tudo me pareceu triste, ao acordar. A roupa estupidamente estendida, as ondas que, nestes dias, se formam no alcatrão e que as rodas dos carros lançam contra as pessoas nos passeios, as laranjas húmidas expostas à porta do chinês, os pombos recolhidos entre os andares, tudo imagens a invandir o meu triste cérebro, nesta cidade temporariamente triste, onde as pessoas abrem obedientes os guarda-chuvas, como se dissessem, Se a nossa única certeza - o sol - nos abandona, a esperança ou o desespero deixam de fazer parte das nossas vidas. Foi com este estado de espírito que telefonei a Castafiori. Castafiori foi condescendente. Disse para eu não pensar na chuva nem nas paragens dos autocarros. Disse-me também para eu não pensar no preço dos chocolatinhos com trufas, que me esqueci de mencionar acima. Para Castafiori, só uma grande falta de prática ou uma completa ausência de sentido social poderia justificar a culpa que me assaltou ao amanhecer. "Pensar nos preços não lhe faz nada bem", concluiu, e acrescentou após breve pausa,"mas não serei eu quem a vai censurar, é monótono ser sempre pobre". Merry Christmas, Castafiori.

17.12.10

a partilha de informação

- então parece que descobriram que a mãe era culpada
- não me diga
- sim, descobriram, ai, como é que se chama, acho que foi por satélite, mas os ingleses já sabiam
- por isso é que não queriam deixar lá ir a judiciária portuguesa nem que eles entrassem, agora passou-me, como é que aquilo se chama?
-facebook?
-não, mas daqui a bocadinho já me lembro, olhe, sabe uma coisa, eu digo que foi ela, cá para mim foi ela
-acha?
- estava bêbada e naquele desespero sufocou a miúda

16.12.10

to swim

Hoje, ao pequeno-almoço estrelei um ovo, convencida que nesse gesto estava o início de uma bela amizade com o espírito inglês e um modo seguro de conjugar qualquer verbo irregular. Não percebo porque é que nada disso aconteceu. Bom, mas o dia ainda não acabou.

15.12.10

post instantâneo

Ontem à noite, disse para mim própria, Não me vou deitar, sem escrever um post. De modo que este é o post escrito ontem à noite, e que não passou daqui. Por falta de inspiração? Por excesso de dever? Adormeci e acordei com igual falta de fundamentos. E agora basta. Não vou dizer nada que possa ser usado contra mim.

14.12.10

nevoeiro

é preciso sair de casa antes que o nevoeiro feneça

13.12.10

fiado

Disse, Eu já não escrevo versos.  Passei o resto da manhã com a frase na cabeça. Até que, ao entrar num café, percebi tudo.  Encostado à box da tvcabo, li num azulejo, Aqui não se vende fiado, que é como quem diz, Aqui não se escreve versos, tal como ele tinha dito, como se dissesse, Aqui não se vende fiado.

12.12.10

chama imensa

Saí à rua. Da janela, já vira o céu cinzento, e uma calçada enegrecida por uma espécie de chuva que caía, e na grande rua perpendicular, os carros a passarem sorrateiros. Saí cinzenta, resignada, com as mãos nos bolsos do blusão de penas. Ao virar da esquina, um homem com um boné do Benfica. Lembrei-me que hoje há jogo a eliminar. A malta anda chateada, mas há alturas em que se tem de sair à rua assim, com a porcaria do boné e conquistar o mundo, e começar a conquistá-lo ali mesmo, à esquina da rua.

10.12.10

The Great Day

Viva a revolução e mais tiros de canhão!
Um mendigo a cavalo chicoteia um mendigo a pé.
Viva a revolução e o canhão que voltou!
Os mendigos mudaram de lugar, o chicote ficou.
W.B.Yeats

9.12.10

o 158

Aí há uns tempos largos, ligo a televisão num sábado à noite e ouço isto já a caminho da cozinha: "- Que belo toiro de Veiga Teixeira". Volto para trás. Vejo primeiro um número, depois umas patas, depois uma cabeça imponente. Olho e concordo comigo mesma, Que belo toiro que é este 158. Mas eu sou pessoa para ver imperfeições em tudo e vi imediatamente que os cornos do touro estavam tortos, estavam um bocado afastados, pelo menos aos olhos duma leiga. Pensei, ó 158, esse par de cornos ainda te vai dar problemas. Mas imediatamente discordei de mim mesma:  se, seja como for,  o 158 vai morrer dali a bocado, que diferença pode fazer os cornos estarem um bocado tortos? Nisto o cavaleiro crava uma farpa no animal, não sei se se diz assim, farpas, touro, farpas, Ramalho, farpas, farparemos, farparás. Estava eu nestas divagações e vejo o animal andar por ali um bocado à toa. É uma coisa que me incomoda nas touradas. Depois percebi. O cavaleiro tinha desaparecido. Aumentei o som da televisão. O cavaleiro tinha ido mudar de cavalo. Mudar de cavalo?  Olhei para o 158 enquanto ouvia o comentador, O toiro aguenta perfeitamente mais um ou dois ferros. E eu pensei, e então o cavalo, não aguenta? Olhei para o 158 pela última vez, interrogando-me estupidamente, Para que serve a beleza, 158? Mudei de canal.

8.12.10

gatos, gatas e gatinhos

Andam gatos nas traseiras. A gata só se ouve ao anoitecer. Já sei que antes da Primavera haverá gatinhos a aprender a andar sobre os telhados e antes do Verão vê-los-ei desaparecer. Depois, quando em pleno Agosto me levantar de madrugada, hei-de ver um jovem gato a beber a água que a vizinha do primeiro andar lhes põe numa embalagem de gelado. Nessa altura, vou pensar: olha, lá está o gato que nasceu este Inverno.

6.12.10

laranja

descasquei uma laranja com as mãos e mordi-a; que mais se pode fazer no inverno?

3.12.10

exercícios (nunca mais)

nunca mais como ostras
nunca mais rezei
nunca mais é dia
nunca mais atravessei o rio sem medo
nunca mais chega o correio
nunca mais  choveu como no dia em que o telegrama chegou
nunca mais lá fui
nunca mais ninguém saberá de ti
ou é hoje ou nunca mais

2.12.10

je voudrais que mon amour meure

queria que o meu amor morresse
e a chuva chovesse sobre o cemitério
e sobre mim pelas ruas onde eu andar
chorando aquela que julgou amar-me
Samuel Beckett
trad.:M.E.Cardoso

1.12.10

feriados

Os feriados parecem domingos, disse eu. Castafiori discordou. Os feriados parecem sábados, disse ela. Saí à rua. Concordei. Os feriados parecem sábados, disse eu. Voltei para casa.

30.11.10

deambulação

Quem sabe quando. Quem sabe onde. Espero-te. A vantagem de não sair do mesmo sítio, esta espécie de passerelle, ter diante dos olhos um mundo que se apresenta já feito, a vantagem de não estar dentro é essa distância, essa mentira piedosa de pensarmos que dominamos e sermos dominados, de pensarmos que esperamos e exasperarmos. A chuva não melhora a visão. Decido aniquilar este momento e rodar sobre mim própria. Daqui vejo um prédio azul, e no rés-do-chão uma videira e isso, sim, melhora a minha visão, e vejo quatro calças de ganga a secar no estendal do primeiro andar e isso, sim, melhora a visão, e ouço um grito na rua e isso também melhora a visão. Deixar de pensar e deixar de esperar, e em seu lugar olhar pelas traseiras. Mas sempre no mesmo maldito sítio. A chuva volta. Não ouço nada. Só ouço a chuva. Não vejo nada, só vejo a chuva. Vou recomeçar. Um dia acerta-se.

29.11.10

bilhete simples

Quando o comboio parou na estação da Pampilhosa eu ouvia um samba. Tudo estava em ordem, o comboio cumpria a tabela, o sol aprareceu e desapareceu atrás das nuvens, alguns passageiros tossiram. Mas com Elis Regina não há sossego. Tentei dormir, tapei os olhos com  o cachecol, procurei o ângulo certo entre a cabeça e o ombro. Inutilidades de domingo. "Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós"

26.11.10

crise

fui ao mini-preço e esqueci-me dos cupões; atravessei a rua, estava  a chover; no caminho vi tudo aos tropelões; ó,  deixei cair o doce de framboesa; o prejuízo foi no total um euro e tal e o lucro cessante incalculável

25.11.10

lapsus (1)

Chris Marques

24.11.10

isto não é uma metáfora

Anda um bando de pássaros nas traseiras da minha casa. Observo-os em voo picado sobre os quintais. Fico assim por momentos, observadora de pássaros em dia de greve geral. Depois lembro-me das gatas e fecho a janela.

23.11.10

interrogação logo ao acordar

Que poderemos nós dizer para além das palavras usadas vezes sem fim? É preciso estar sempre a inventar.

22.11.10

falta

sem manteiga não há torradas

19.11.10

world music

Oiço ópera algures. O meu prédio não é muito dado à ópera. Vejamos. O andar de baixo, não desfazendo na ópera, põe Leonard Cohen acima de tudo. O primeiro, está silencioso desde que o cão morreu. No rés-do-chão varia-se bastante; mas não há perigo de confundir a Vitória de Los Angeles com nem eu sei quem, que também de óperas pouco cheiro. O andar de cima, isso sim, eu sei, prefere definitivamente frango no churrasco. E do quinto, não tenho notícias frescas. Mas donde é que virá o raio da música, que acaba de passar-me outra vez pelos ouvidos? Espera lá, espera lá, mas aquilo é a Carmina Burana, pois é, a Carmina Burana, ó se é, e eu quase a lançar-me numa teoria geral sobre o espaço e a multiculturalidade e vai-se a ver e o que estão a ouvir é a Carmina Burana. Por acaso até vem a calhar, até me resolve o enigma, sendo a Carmina Burana, pode vir de qualquer dos andares. Fortune plango vulnera. Olha e agora estou a ouvir o concerto de Aranjuez. Mas esta gente está a passar-se ou quê? Francamente, daqui a nada chega a vez do Rachmaninoff. E onde é que anda o kuduro e o forró?
(reflexão de ontem à noite, eram prá aí dez e meia)

18.11.10

momento

Ou baixo os estores ou páro de escrever. Não quero incomodar as gatas, animais mimados, sim, mas em cativeiro. Não posso tirar-lhes o sol que entra pela janela. E quererei incomodar-me a mim própria? O sol entra pela janela e eu vejo-me reflectida no écran do computador. Agora.

17.11.10

dito de espírito

"- Como tem andado? - diz o cego ao paralítico.
 - Como vê - responde o paralítico ao cego."

16.11.10

dois olhinhos a brilhar

"Já matámos a ratazana", li na parte de trás do envelope. Primeiro facto: onde dantes era o remetente, estava escrito "Já matámos a ratazana". Segundo facto: acordei. Estava a sonhar. Primeira questão, e, talvez, primeira conclusão: o segundo facto põe em causa o primeiro, anula-o, ou torna-o mesmo inexistente, passando por isso a ocupar o lugar do primeiro, quer dizer, passando de segundo para primeiro - e único facto? A verdade é que acordei, não descansada como devia, por alguém ter liquidado a ratazana, mas assustada. Talvez por saber que elas - as ratazanas - existem. Outras informações que poderão, quiça, esclarecer o caso: o recado foi-me deixado pelo primeiro andar; no meu prédio, que eu tenha conhecimento, não foi vista nenhuma ratazana; recentemente duas pessoas das minhas relações disseram-me ter visto ratazanas. Eu própria, há um mês, mês e meio, vi um animal minúsculo, que não reconheci imediatamente, admito, a entrar no Metro. Não era uma ratazana. Era um ratinho. Mesmo assim, senti um sobressalto. Foi um bocado humilhante. Em minha defesa posso dizer que não era uma ratazana mas era como se fosse. Cinzento, lustroso, com dois olhinhos a brilhar no cinzento do chão do metro, era uma ratinho, bem sei, mas raios me partam se não parecia uma ratazana, cinzenta, lustrosa, com dois olhinhos a brilhar no cinzento do chão do metro. São séculos e séculos a encaramo-nos uns aos outros.

15.11.10

advogados

Castafiori virou-se para mim e disse, De todos os homens que conheci o mais fiel tem sido o meu advogado. Disse-o com sinceridade e quando Castafiori quer ser sincera, é sincera. A emoção andou por ali. Isso fez-me recuar quanto ao menu. É que estávamos num restaurante e vi-me obrigada a afastar automaticamente a hipótese de pedir bacalhau. Teria sido uma comparação de mau gosto.

11.11.10

a fitinha

- Viste a minha fitinha? Se calhar perdi-a.
- A do cabelo ? Perdeste, perdeste. Tu não perdes nada.
- Já a tenho desde os 8 anos.
- Desde os 8?!
- E tenho este blusão desde os 13.
- Tchii. Eu já nem a dos 16 tenho.
- Sou muito apegada às cenas.
- Eu sou o contrário. Um dia destes fui ao hifi e li: feminino, 21 anos. Eu nem me reconheço. Continuo a pensar que tenho 16. Fazem de mim o que querem.
- Eu cá não. Dos 16 só mesmo a cena da roupa.
- Já encontraste a fitinha, eu não te dizia? Tu não perdes nada.
- Tinha caído. Vamos.

10.11.10

facebook

Só acreditei quando ele me disse:
- Há gajos de quem eu não seria amigo nem no facebook.

3.11.10

bens

É um bocado estranha esta sensação: parece que os livros nunca me pertencem. E, no entanto, recuso-me a separar-me deles. Quero-os, como meus, mas sinto-os de passagem, em trânsito, como se não me pertencessem. Talvez por isso raramente lhes ponha o meu nome.

1.11.10

poemas de amor

(...)
a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo que as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei
(...)
Samuel Beckett
(1936)
trad.: M.Esteves Cardoso

31.10.10

abrupto

São seis e tal e já é noite escura. A hora mudou. O outono avança em trombas de água e a mim apetece-me um chá que cheire. Alto e pára o baile. A nostalgia aproxima-se.

26.10.10

movimento

"Esta sensação: "Aqui não vou deitar âncora", e logo a seguir sentir como a maré ondulante nos envolve e sustenta."
Franz Kafka
trad.: João Barrento, "Parábolas e Fragmentos"

25.10.10

tradição oral

Convidei Castafiori para jantar. Recusou. Sopa de courgettes com coentros, omelete simples e uma salada de rúcula selvagem. Está bem que o menu era singelo mas quand même. Admirei-me, portanto. Só depois veio a explicação. Castafiori anda numa formação. Em todos os cursos que frequenta, e sabe-se como Castafiori adora manter-se up-to-date, não gosta de faltar. Diz que aprende muito por tradição oral. (As palavras foram dela.)

22.10.10

cansaço

Viveria outra vez
não me atrevo a pôr-lhe um ponto final; interrogo-me?

21.10.10

a aposta

Dois e dois são cinco? Não. Dois e dois são quase cinco. Continua a estar longe de ser exacto. Mas não deixa de ser uma afirmação com futuro, penso eu, pelo menos, com algum futuro. Quem sabe se, um dia, dois mais dois não serão cinco, e ainda que seja uma afirmação arriscada, há nela uma expectativa, não direi própria de uma utopia, mas, vá lá, própria de uma certa abertura de espírito. Em contrapartida, há afirmações que, sendo exactas, escapam a qualquer futuro, como esta: às cinco e  cinco, o príncipe morreu; o príncipe morreu sem chegar a rei e a princesa ficou viúva à hora do chá sem chegar a rainha. É uma afirmação exacta, desesperadamente exacta. Poor girl, comentaram, há amores perfeitos e capelas imperfeitas. É uma afirmação inadequada e, numa certa óptica, de mau gosto. A batata pode ser doce mas a lógica também pode ser uma batata. Se não fosse assim, diríamos, Olha ali está uma laranja amarga, mesmo antes de a provar, e renegaríamos para sempre o princípio in dubio pro reo que, não sendo um princípio citrino, lhe poderá ser aplicável, cum grano salis. É claro que há pessoas que dizem, Olha ali está uma laranja amarga, mesmo antes de a provar. Geralmente esta afirmação é acompanhada por uma aposta. E cá voltamos ao que interessa: há quem aposte que dois e dois são cinco, mas não há quem aposte que dois e dois são quatro. Daí que considere provada a afirmação supra: dois e dois são quase cinco - está longe de ser exacto, mas não deixa de ser uma afirmação com algum futuro.

20.10.10

balança comercial

Tenho um relógio que, para mudar de pilha, precisa de ir à Suiça, Mas porquê?, pergunto eu, Com esta marca é assim, respondem-me. Ah, não sabia. As lentes que uso têm de vir da Alemanha, ou melhor, elas estão cá, depois assinalam as dioptrias com uns risquinhos na superfície das lentes e dizem-me, Agora tem de esperar oito dias. Mas porquê, perguntava eu quando comecei a usar graduação progressiva, e respondiam-me, Têm de ir à Alemanha, Ah, dizia eu. Agora já não digo, Ah. Penso, entre dentes, Vão lá à vossa vida, ó lentes alemãs. As bananas vêm aos cachos do Panamá. Que giro, já tenho ouvido dizer em certas grandes superfícies, como sinónimo de romântico, Ah, o Panamá. O vinagre balsâmico vem de Modena, onde nasceu Enzo Ferrarri e Luciano Pavarotti, vejo no Google. Se eu quisesse continuar, continuaria: o whiskey vem das Ilhas Britânicas, os livros da Amazon, o café de vários lados, etc, etc (fora as coisas que vêm da China, que é quase tudo).
E, se querem saber, eu vim de Gáfete.

19.10.10

suspensão

Cada vez que no café se parte loiça, todos páram, todos riem. Aquele segundinho entre o parar e o rir é a alma do nosso negócio de viver.

18.10.10

vultos

Não vim aqui por nenhuma razão especial. Estou de passagem. Forço-me a estar de passagem. É uma maneira de forçar a rotina. A rotina força-nos e, às vezes, pensamos que podemos simplesmente inverter a situação. É o que eu estou a fazer agora. De uma maneira um tanto pueril, como veremos a seguir.
Os domingos são terríveis para as rotinas. Mas a consciência da rotina raramente chega a tempo de ser planeada e devemos aproveitá-la, mesmo que chegue a um domingo. Seria mesmo um contra senso podermos planeá-la, seria um luxo podermos recusar os domingos. Estou, então, de passagem. É o estado que escolhi para estar contra a rotina. Fui ter a uma estação de comboios. Achei normal. Sentei-me no bar da estação e afastei os óculos dos olhos. Tenho agora os óculos por cima da testa. Não distingo as feições das pessoas. Vejo vultos. Vultos de passagem.

12.10.10

a colcha indiana

A colcha indiana tem elefantes e deuses de pernas cruzadas. A colcha indiana é feita de bocados de pano, unidos com linha da mesma cor (e eu pergunto o que se pergunta quando se olha para coisas feitas à mão: quem os terá unido?). Ao centro, a colcha indiana tem dois pavões e mais acima dois papagaios. Estão todos no mesmo arbusto, dentro do mesmo bocado de pano. Esse bocado é só deles e talvez isso justifique o quão indiferentes estão ao elefante que está de pernas para o ar no bocado ao lado (mas eu também não conheço a Índia e talvez não seja tão raro assim os elefantes andarem de pernas para o ar). O elefante é verde escuro (esse em particular, porque a colcha tem mais elefantes, a Índia não é só surpresa) muito diferente das vacas ou do homem que toca flauta para as vacas ou das nuvens por detrás dos deuses, paradas pelo som da flauta do homem que toca flauta para as vacas. A colcha indiana tem pedacinhos de espelho, que nunca nos deixam esquecer quem somos, e aposto que ainda lá tem as impressões das mãos que a coseram, não sei, em Goa, em Bombaim, na fronteira pasquistanesa, sei lá, ou do outro lado, em Calcutá. A colcha indiana nunca está só, mesmo quando a casa onde está se fecha e a parede onde está escurece, a colcha indiana nunca está só. Por exemplo, agora tem-me a mim a olhar para ela.

11.10.10

o lugar do frango assado

Castafiori trabalhou até tarde. Só lhe restava, no caminho para casa, comprar um frango assado numa loja popular. Ou isso ou não jantava. Castafiori desceu à terra e entrou numa loja popular. Enquanto esperava pelo frango, viu o homem do balcão pôr-lhe à frente um pires transbordante de batatas fritas: - Quer ter a fineza de provar estas batatas?
Sabe-se como Castafiori é sensível às palavras ditas, aos pequenos incómodos, aos gestos facultativos e, porque não dizê-lo, às batatas fritas. E intimamente pensou, como mais tarde me veio a revelar: teria comido todas as batatas fritas deste mundo. E foi envolvida por esta mistura de sentimentos, onde a reconciliação terrena e o favor divino coexistem, que Castafiori chegou a casa com o frango, as batatas e a recordação de uma gentileza inesperada, tudo bens encontrados a uma sexta-feira, numa loja popular, pouco faltava para as dez da noite. O telefonema que me fez terá sido então uma espécie de homenagem ? Ignorou-o mas o certo é que o fez. Claro que só o fez depois de comer o frango e as batatas fritas. Todo? Não, sobraram as asinhas, disse com um riso adolescente.

5.10.10

Dedicatória

Aos carbonários, aos marinheiros, aos doutores republicanos, aos operários, aos suicidas, aos que estiveram na rotunda, ao que tiveram medo e sobretudo aos que não tiveram.

4.10.10

love

A rapariga tinha escrito nas costas do casaco branco: love, lo em cima, ve em baixo. Como subtítulo, dispostas no limite inferior, li ainda  estas palavras: love me I love you. Primeiro sentou-se o namorado, depois ela e eu vi-os, na mesa ao lada da minha: cada qual comeu metade de uma sandes de ovo com salsicha, ele bebeu leite com chocolate, ela uma água natural. Suponho que por estar de dieta.

1.10.10

passado

Quando é que deixamos de pertencer a um sítio? Como é que sabemos que aquele sítio já não é a nossa casa? Não sei. E, todavia, se entrarmos nesse sítio, o corpo vai dizer-nos, aos gritos ou em tímidos sussurros, diz-nos que nos tornámos passado. O corpo raramente se engana.

30.9.10

Ontem à noite

- Amanhã é dia trinta?
- É.
- Então, até dia trinta.

29.9.10

tintas

Quantas vezes escrevo só por causa da tinta? Gosto de ver as palavras plenas de tinta a deslizar por entre as aspereza do papel, e de sentir o impacto, um impacto mínimo, é certo, mas que eu acho serem pequenas brechas a abrir-se no meu cérebro, a expandi-lo, a alongá-lo como se alonga a coluna vertebral. Também gosto de ver as letras no écran e ter a sensação de o que escrevo é escrita. É claro que para isso precisarei de encontrar outras palavras, como aquela que não encontro para o lugar de "gostar". Isto para começar.  É preciso abrir brechas cada vez maiores.

28.9.10

segundo

O segundo é a duração de 9.192.631.770 períodos da radiação correspondente à transição entre dois níveis hiperfinos do estado fundamental do isódopo 133 do átomo de césio, a uma temperatura termodinâmica de 0 K.
Eis a ciência.

27.9.10

noites frias

"A noite está fria". Numa esplanada sobre a Avenida percebe-se quanto a noite está fria. E ao sentir na pele o frio da noite, veio-me à ideia a Terra Estreita de manhã. Pensei na areia e nos reflexos na água, e pensei também na viagem de regresso, curta e dourada. Em vez que pensar nos dias de chuva que, tarde ou cedo, se aproximam, lembrei-me daquela espécie de felicidade passada entre o mar e o mapa. Não há só exaltação no acto de recordar. Há nele também ingratidão, como se os bons momentos do passado fossem responsáveis pelos momentos que queremos excluir do presente. Porém, tenha eu ou não razão, uma coisa é certa: o Verão já acabou.

24.9.10

comutações

leilões sem carabina, letões sem gin, limões sem frio, leões sem cheta

23.9.10

ímpares

leilões sem cheta, letões sem frio, limões sem gin, leões sem carabina

22.9.10

no hall

O hall do teatro é um sítio agradável. Está fresco, mas não está frio, a luz é natural e artificial, e eu estou sentada numa cadeira e não tenho pressa em levantar-me. Está-se bem no átrio do teatro. É possível que lá fora ocorram, agora mesmo, mil e um dramas, dos quais eu poderei escrever dois, vá lá, três, por ano, se lá estivesse para os ver e ouvir, é possível que eu os pudesse escrever. Mas estou aqui sentada. E também os poderei escrever, penso. Não me inquieto. Eu sei o que são dramas. Mesmo que os visse na minha frente, em vez de os adivinhar pelos vidros das altas portadas, mesmo que os ouvisse directamente em vez de estar a ouvir a máquina de café, mesmo assim nada garantiria que os viesse a escrever, e já não digo auspiciosamente, digo segundo qualquer convenção. Não basta estar lá. Escrever, ainda que mal, dá trabalho.

20.9.10

lugares livres

É difícil estacionar naquele lugar. Por isso, ele, quando viu o lugar, disse, Este é meu, este não me vai escapar. E a partir do momento em que disse "este é meu", não havia outra hipótese, o lugar tinha de ser dele, tinha de estacionar exactamente ali - nem mais abaixo, nem mais acima, nem para um lado, nem para o outro, mas ali. Evidentemente que não contava com o pilarete. Estúpido é que ele não é. Se soubesse que estava ali o pilarete não tinha estacionado o carro exactamente ali, aliás, nem sequer teria dito, como disse, "este é meu", pela simples razão de que teria visto o pilarete em vez do lugar, estamos entendidos?

17.9.10

com amêndoa por cima

Um croissent. Com fiambre? Sem fiambre, faz favor. Com queijo? Um croissant, sem fiambre, sem queijo, sem manteiga, um croissent. E um croissent com creme? Daqueles que leva amêndoa por cima? Sim. 'Tá bem, um croissent com amêndoa por cima. Sai um croissant com creme. É daqueles que leva amêndoa por cima? Todos os croissents com creme levam amêndoa por cima. Todos? Isso é alguma lei? Hoje não está muito bem disposta, pois não?

16.9.10

exterior





15.9.10

porta







14.9.10

janela





13.9.10

suportar:

barulho na biblioteca  comida sem sal  multibanco fora de serviço
ordene de 1 a 3

10.9.10

saída de campo

Estava um homem de camisa branca sentado no muro antes do molhe. Estava virado para o mar. A camisa estava por fora das calças e os punhos estavam desabotoados. Isto era tudo o que eu via. Eu via-o dum sítio onde esperava um café tardio. Via-o a olhar para o mar, como um veleiro impaciente que aguarda uma decisão vinda de terra. Como se, a bordo, tudo estivesse há muito tempo pronto a zarpar. Por isso, naquele universo constituído por mim, pelo homem e pelo veleiro imaginário, nada nem ninguém, nem mesmo o homem, percebia porque é que tudo tinha de continuar como estava. O homem manteve-se ali parado, a olhar o mar, com as mãos apoiadas no muro, com o vento a entrar-lhe para dentro da camisa e a fazer dele a vela dum veleiro, uma vela branca, branca da cor da espuma que se desfazia e transformava o ar num mar de pequenos cristais. Provavelmente estes pensamentos foram a causa da minha distracção. Perdi o domínio da situação. A certa altura o homem levantou-se e foi-se embora. Levava as mãos nos bolsos e, de vez em quando, virava o olhar para o mar. Saíu da minha visão pelo lado direito. Prescindi de qualquer movimento panorâmico e perdi-o de vez. Tirei os headphones e fiquei ali, a ouvir a estranha canção do mar.

9.9.10

descansar:

acordar noutra cidade  correr ao sol  parar no meio da ponte
assinalar com X a resposta

27.8.10

noite


    IMG_3287.JPG© FATIMA RIBEIRO 2010

26.8.10

Tudo o que

Tudo o que o meu pai me disse quando, aos 15 anos, declarei em família que ia começar a escrever poesia
"Antes
de te sentares
à mesa
lava bem
essas mãos"

Luís Filipe Parrado
"A Poesia em 2009"

25.8.10

laços de sangue

O Sr. Soares, talhante, é filho de Manuel Soares, talhante reformado, e de Ermelinda Soares, doméstica. O Sr. Soares é pai de Rui Manuel Soares, talhante, Ricardo Soares, aprendiz de talhante e Anabela Soares, caixa. O Sr. Soares mais a mulher, caixa, os pais e os filhos vivem num primeiro andar, direito e esquerdo, da Rua Morais Soares. O andar fica por cima do talho.

23.8.10

miopia

Ao início da tarde, chegaram os meus óculos de sol. Uma hora depois chovia.

22.8.10

fruta da época

Os melões sorriem na vitrina do restaurante. Ao lado, as meloas, permeáveis, insinuam-se. As laranjas, mais abaixo, estão passivas e os quivis permanecem sorumbáticos. As maças, essas, resistem todo o ano.

20.8.10

lágrima

Telefonei a Castafiori. "Agora não", disse-me, "estou a pôr uma lágrima artificial." Desliguei cheia de culpa.

6.7.10

cometa25.(e pronto!)

4.7.10

cometa24.

3.7.10

cometa23.

2.7.10

cometa22.

1.7.10

cometa21.

29.6.10

cometa20.

cometa19.

27.6.10

cometa18.

26.6.10

cometa17.

25.6.10

cometa16.

24.6.10

cometa15.

23.6.10

cometa14.

22.6.10

cometa13.

20.6.10

RIP Saramago

Há precisamente um mês que José fora convidado. Acabou por aceitar. Por isso não percebeu o porquê daquela espera. Não estava certo. Ele, José, embora não aspirasse a toda a cerimónia, não renunciava a toda a cerimónia. Gostava de ser tratado com alguma cerimónia. Era um homem claro. Sentia-se enfadado, ali, como se estivesse num corredor da misericórdia, como um vegetal, uma maçã calibrada. Mas não precisou de invocar qualquer protocolo para desfazer o enfado. Ouviu uma voz. Tomou-a como a voz de Deus. Era com Deus que o encontro tinha sido marcado. Nunca antes ouvira a voz de Deus mas nem ele, José, duvidou por um instante que fosse de Deus a voz que dizia: não te enfades, José, a tua hora está a chegar. E a partir do momento em que José se levantou sumiram-se-lhe as palavras. Deus ainda brincou: o gato comeu-te a língua, José? e José ainda sorriu, mas já não foi capaz de explicar porquê, nem para quê, nem para quem. Também o elementar se fora com ele.

Deus é cruel como as crianças e as crianças caprichosas como os gatos. Mas nem uns nem outros amam as palavras como José, porque só José ama as palavras como um deus. E era precisamente isto que Deus tencionava dizer-lhe. Não disse. Só pensou. E José não ouviu. Nessa noite já não sonhou com Deus. Sonhou com o sabor dos pêssegos e com o rio que passa na sua aldeia. E pronunciou uma palavra que ninguém conhecia e descreveu uma cidade coberta de cinza e imaginou um grande pássaro sob um céu descoberto. Foi tudo.

cometa12.

18.6.10

cometa11.

17.6.10

cometa10.

cometa9.

16.6.10

cometa8.



15.6.10

cometa7.




12.6.10

cometa6.

cometa5.

11.6.10

cometa4.

10.6.10

cometa3.



8.6.10

cometa2.

7.6.10

cometa1.

18.5.10

personagem à procura de um autor

"Bem, ninguém quer os cães vou ter de matá-los !!!", disse ele, exactamente assim: com três pontos de exclamação, tantos quanto os cachorros inocentes, foi assim que ele disse.

3.5.10

como eu gosto de cozinhar

se há coisa que me dá prazer é cozinhar; gosto particularmente de passar por uma receita no jornal e fazê-la nesse dia; foi isso que fiz sábado e hoje, segunda-feira; fiz cogumelos de paris à grega e linguine com espargos, ervilhas e limão, quer dizer, fazer não fiz, mas fiz uma coisa parecida: se não havia linguine e os espargos estavam a um preço impossível que culpa é que eu tenho? (também não havia hortelã); só foi pena foi ter exagerado no limão; para a próxima fica melhor; acho eu.

30.4.10

confusão madrugadora

Ao estender a roupa numa madrugada quente, olhou para baixo e, do 3º andar, viu um rato no pátio de cimento. Só depois percebeu que era um pássaro. Isto não é nada poético.

29.4.10

ar abafado

está abafado, o ar cheio de pombos, e daqui vejo os segundos correr no cronómetro do relógio com o interesse de quem tem que fazer uma data de coisas e não sabe por onde começar; todavia, se voltar a olhar para lá, para a cronómetro desarrumado, não deixarei de perguntar: e nunca se cansa? o tempo nunca se cansa.

27.4.10

registo

Abro a janela e as gatas não aparecem. Preferem o edredon da cama. Vou tirá-lo hoje, o Verão está a chegar.

24.4.10

tai-chi

o tigre desce a montanha. hoje é dia mundial do tai-chi

indie

foi ao cinema e perdeu um brinco. ficou muito arreliada. dá alvíssaras a quem o encontrar. era preto.

19.4.10

inícios (25)

Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames." Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.
O ESTRANGEIRO
Albert CAMUS

9.4.10

"se eu pudesse desamar"

Se eu pudesse desamar
a quem me sempre desamou,
e podess'algum mal buscar
a quem me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
se eu pudesse coita dar,
a quem sempre coita deu.

Pero da Ponte
lido em "Direito e Literatura", almedina, 2010

8.4.10

inventário (6)

um compact flash, de 256mb, usado na minha primeira máquina digital, uma coolpix 2000, um rádio philips em portalegre comprado, onde eu oiço agora o pomar das laranjeiras, que voz, e sempre a janela da gata, a minha vera, na minha frente

7.4.10

inventário (5)

comprimidos revestidos (ainda válidos), um relógio (com cronómetro) made in china, um mapa (de áfrica) a cair da parede e tudo lá fora me espera esta manhã (penso com optimismo)

6.4.10

inventário (4)

sangue seco, sangue antigo, acumulação de pó, um lápis faber-castell mordido na ponta por um gato entediado, mais um post-it que diz "gravar a paixão segundo s.mateus"

5.4.10

domingo de páscoa

finalmente é primavera e adormeci na relva da gulbenkian. era domingo de páscoa ontem à tarde. havia famílias e namorados, patos em terra e pombos a esvoaçar, também havia rapazes atrás dos mosquitos junto ao lago e meninas com panamás que caiam das cabeças quando corriam. acordei com o sol a descer das oliveiras, nessa altura já tinha ouvido várias vezes o samba de uma nota só. apanhei o metro e duas estações depois entrei em casa - são os benefícios da ampliação da linha vermelha.

30.3.10

mensagem em vinte e duas palavras

no calendário este é o dia quem sabe um dia que possa valer por dois vezes dois vezes dois dias assim assim

29.3.10

Deus nos lírios

sinto deus, todas as noites, nos lírios
de Monet, olham por mim,
por esta sombra incerta que morre
aos poucos comigo, cobrem
de seiva viva a escuridão da casa
e afastam os demónios
que se escondem nas frestas do sono.

pela manhã, junto as pétalas tenras
caídas no lençol, e rezo baixinho,
com os pardais, um verso branco.

RENATA CORREIA BOTELHO
RESUMO, a poesia de 2009
edição Assírio&Alvim

28.3.10

palavra do dia| toscanejar

(tosco + [pesta]nejar)
v. intr.
Cabecear com sono. = dormitar
flip

26.3.10

anúncio inspirador

"Apanham-se malhas de meias na perfeição"

24.3.10

pas de poème

Pas de poème sans accident, pas de poème qui ne s'ouvre comme une blessure, mais qui ne soit aussi blessant. Tu apelleras poème une incantation silencieuse, la blessure aphone que de toi je désire apprendre par coeur.

Jacques Derrida, "Che cos'è la poesia?"
citado em "Século de Ouro, antologia da poesia portuguesa do século XX"

19.3.10

aviso (2 - correios)

"Por ausência do destinatário não foi possível proceder-se à entrega de objecto urgente". Que pena. Logo hoje que esperava receber o teu coração.

18.3.10

aviso (1- água)

"Estimado Cliente, informamos que devido à realização de trabalhos na rede de distribuição, o fornecimento de água será interrompido temporariamente entre as 14 e as 18 horas. Apesar dos esforços desenvolvidos para concluir os trabalhos no período previsto, este pode ser reduzido ou prolongado sem novo aviso." Eram 17h e 40. Ao ler o aviso na porta do prédio, uma sede imensa assaltou-o, ali, à porta do prédio, ao ler o aviso: e se os trabalhos se atrasassem, apesar dos esforços? Está sempre a acontecer, atrasarem-se os trabalhos está sempre a acontecer, é da natureza do trabalho exactamente isso: estar sempre a acontecer e atrasar-se.

Entrou no café da esquina e pediu uma imperial. Mas não havia. Pediu uma mini. Mas não havia. Pediu heineken, não havia, pediu carlsberg, não, não havia. Desesperado, pediu uma superbock de lata. Não havia. Só de garrafa. Ou então de 50 cl. Mas há cristal. Não. E sagres ? Sagres, sim, de 50 cl, sim, senhor, havia. Sabe, estamos à espera da distribuição. Há dias assim. Toda a gente chega aqui e pede uma imperial, e depois acaba a imperial, pedem minis, e depois acabam as minis, pedem médias, sagres, superbock, acaba a sagres, acaba a superbock e assim sucessivamente. E um copo de água? Um copo de água como? Pode-me dar um copo de água? Água? A água está cortada, a epal andou aí a distribuir avisos em todos os prédios, não viu o aviso? Mas tenho aqui água do luso, luso e formas luso: fambroesa, chá verde, limão. E fastio, tem? Fastio, não tenho, tenho vitalis, tenho pedras, tenho serra da estrela. E tenho luso. E formas luso: fambroesa, chá verde, limão. Que horas são? 18h02. Já há água? Na torneira? Não. Era o que eu pensava. É da natureza do trabalho. Está sempre a acontecer. Dê-me uma sagres de 50 cl. Uma sagres de 50cl? O que é que quer que eu lhe faça? Daqui a nada nem isso tem. Olhe, já há água, não quer o copo de água? Agora já pedi a sagres.

15.3.10

inventário (3)

duas colheres de prata por arear, mais uma faca de sobremesa, também de prata, mais um guardanapo de papel, que sobrou do último natal, pronto a usar

13.3.10

inventário (2)

há uma gata à janela e outra atrás do computador, e no papapeito um furador de quatro furos

12.3.10

inventário (1)

há um livro a desfazer-se, colado a fita-cola, e letras douradas que não cedem - é um dicionário de língua portuguesa que comprei na feira da ladra nem eu sei quando; há ao lado um livro com nuvens na capa, para que nos dias em que o céu da janela está baço o possa abrir sem remorsos de qualquer espécie - é a colectânea de poesia da assírio& alvim

10.3.10

noivado

Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos
abertas e cheias de ternura.
- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não
serem felizes.
É o que faz a miopia.
Mário-Henrique Leiria

9.3.10

ortografia

tudo o que sei é francamente decepcionante; talvez o novo acordo ortográfico melhore o estado das coisas, quando decepção passar obrigatoriamente a deceção deixará de ser uma ilusão perdida ou, pelo menos, poderá deixar de parecer

8.3.10

(...) O Anjo da Casa

(...)
"Matar o Anjo da Casa fazia parte das tarefas da mulher escritora. (...) O Anjo estava morto; o que restava agora? Poderíeis talvez dizer que o que restava era um objecto simples e comum - uma mulher jovem num quarto e um tinteiro. Por outras palavras, agora que ela se tinha livrado da falsidade, a mulher tinha apenas de ser ela própria. Ah! Mas o que significa "ser ela própria"? Isto é, o que significa ser mulher? Asseguro-vos que não sei. E tão pouco acredito que o saibais."
(...)
" Contar a verdade sobre as minhas próprias experiências enquanto corpo"
(...)
"Ainda virá longe o tempo em que a mulher se possa sentar a escrever um livro sem descobrir um novo fantasma para matar ou um rochedo para demover do seu caminho."
(...)
"Os homens ficam chocados se uma mulher diz o que sente (tal como Joyce o fez). No entanto, a literatura que está sempre a cerrar cortinas não é literatura. Tudo o que temos deve ser exprimido - mente e corpo - um processo de incrível dificuldade e perigo."
(...)

Virginia Wolf

6.3.10

ecologia

estendo a roupa cheia de esperança

5.3.10

Deixa-me dar-te o verão


O verão é feito de coisas

que não precisam de nome

um passeio de automóvel pela costa

o tempo incalculável de uma presença

o sofrimento que nos faz contar

um por um os peixes do tanque

e abandoná-los depressa

às suas voltas escuras


José Tolentino Mendonça

1.3.10

mensagem em vinte e uma palavras

matéria antimatéria partícula antipartícula para cada partícula existe uma antipartícula átomo antiátomo era aqui que eu queria chegar ou não pergunto

26.2.10

GMT

Que horas são no teu país?

25.2.10

jet lag

Castafiori, regressada de uma viagem de quatro dias a Madrid, diz-me: - Andar de avião deixa-me de rastos. Já se sabe que este é o género de comentário que me deleita, o género de comentário com que Castafiori me surpreende sempre, despropositado e solene. Eu sou uma pessoa de resposta bastante rápida e às vezes isso transforma-me numa pessoa perigosa. Quando dei pelo que dizia já a minha voz ia no ar: - Mas a última vez que andou de avião não foi há vinte anos?

24.2.10

mesmo ciclo

se recomeçar for o último estádio do ciclo evolutivo, então eu estou sempre no mesmo sítio

23.2.10

pesto

São duas e meia da manhã e acabei de comer pão torrado com pesto. A isto chamo eu um prazer.

22.2.10

telegrama

chove não chove stop chove não chove stop como um telegrama

19.2.10

planeamento

antes de dormir, fazer um plano para o dia seguir, ao acordar executá-lo imediatamente, usar o resto do dia para fazer um plano para o dia seguinte, ao acordar, tentar executá-lo ainda mais imediatamente que no dia anterior, e usar o resto do dia, ainda mais resto, para fazer um plano para o dia seguinte

18.2.10

inícios (24)

Je forme une entreprise qui n'eut jamais d'exemple et dont l'exécution n'aura point d'imitateur. Je veux montrer à mes semblables un homme dans toute la vérité de la nature; et cet homme ce sera moi.
Les Confessions - livre I
Jean-Jacques Rousseau

17.2.10

manhã de inverno

de gorro e cachecol, parti da estação do rossio, recordo um túnel; campolide, cuidado com o degrau, avisa a voz da gravação; subúrbios, a linha deixa para trás nuvens num fundo levemente dourado, recordo já de noite, agora mesmo

16.2.10

sementes

tenho sementes de erva do gato e de manjericão e três vasos para ocupar; as temperaturas são, porém, adversas e limito-me a olhar para as embalagens; constato o seguinte: a de manjericão traz o nome em latim - 'ocimum basilicum' -, a erva do gato vem traduzida em três línguas: menta de gato, menthe de chat, cat nip; não sei como é que as minhas gatas vão aceitar esta diferença (acabo de descobrir: 'nepeta cataria', é logo outra coisa, nepeta cataria, que alívio, contornar a imprevibilidade de duas feras)

15.2.10

mensagem em vinte palavras

nada de ventos uivantes, humidade simples, gelo gentil, escalada à nossa altura, plana não é menos custosa ó mar salgado

12.2.10

no café

regresso com o som da chuva a meu lado, no alcatrão que sobe a rua popular onde os meus passos se gastam, e distraio-me com o som do motor do autocarro que arranca rotineiro, antes de ir para casa fazer a declaração do iva

11.2.10

post

mais dia, menos dia e eis-me de novo aqui, é hoje, é amanhã, nesta temporada post paradis, a antever a primavera-verão, agora que o sol de inverno se começa a instalar, este ano timidamente, é certo, mas hoje já seguro de si

6.2.10

paradis.46.et voilà, c'est fini!

5.2.10

paradis.45.

4.2.10

paradis.44.

3.2.10

paradis.43.



2.2.10

paradis.42.

1.2.10

paradis.41.

31.1.10

paradis.40.