31.12.07

poder de observação

Na biblioteca. Primeiro, a Mulher de Casaco Abotoado Até Acima aproximou-se da Bibliotecária. Queria saber se podia tirar fotocópias. Não ouvi a resposta da Bibliotecária, a Bibliotecária fala num tom muito sumido, pelo menos enquanto está na biblioteca, acho. Em contrapartida, ouvi ainda mais perfeitamente a pergunta seguinte: - “Então quer dizer que aqui só os funcionários é que podem tirar fotocópias?" Não ouvi a Bibliotecária. Como já expliquei, fala num tom sumido. Esperei. As coisas não podiam ficar por ali. Cheirou-me a cirurgia, a selecção empenhada das palavras, uma lógica qualquer, mas não arbitrária, o desejo de comunicar era óbvio: - “E telefonar, pode-se telefonar daqui?” Não ouvi a Bibliotecária, só ouvi o comentário que fechou com chave d'ouro a presença na biblioteca da Mulher de Casaco Abotoado - “Estou a ver que aqui não há mais nada a não ser livros”.

29.12.07

as cartas e os barões assinalados

Vou pelo rua e ouço: "- Tenho aqui uma coisinha para assinar". Gosto que o carteiro me conheça. Uma questão de território, desde logo.

28.12.07

uma dúzia de leões

A Rosa foi ao Serviço de Urgência, não o da televisão, o outro, o real, o dela, o nosso, vou contar desde o princípio, a Rosa foi ao Serviço de urgências acompanhar uma amiga. Quando estavam no balcão de atendimento, um Homem ultrapassa-as ensanguentado. Sangue numa face, sangue no abdómen, sangue numa toalha que atira para cima do balcão:
- Tentei matar-me.

Do outro lado do balcão, a Senhora olha por cima do óculos, ou talvez não usasse óculos, mas olhou, com certeza que olhou, fez uma pausa, entreabriu hesitante os lábios, alguma coisa parecida com um sorriso ficou desenhado no que sobrava dos óculos, ponderou, portanto, e depois disse:
- Tentou matar-se? Ai, ai, ai, ai...

Receio que o caso não esteja bem contado, por isso vou ser muito explícita: imaginemos uma avózinha dos anúncios do azeite galo a dizer ai, ai, ai, ai, assim disse ao balcão a Senhora dos óculos talvez postos ai, ai, ai, ai. A Joana é que a sabe imitar bem, foi o que disse a Rosário quando me contou. Praticamente toda a gente, menos a Rosa, me contou a história e as várias versões são unânimes numa coisa: a senhora ficou bastante incomodada.

O Homem, o que não acabou de se suicidar, poderia ter usado outras palavras que não aquelas, secas, cinzentas, frias. Ter-lhe-ia dado jeito ter à mão O Pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião: “somente a morte poria termo ao meu desconsolo. Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em que seria devorado por eles.” Se acaso tivesse usado estas palavras decerto a Senhora teria sido poupada a rematar com a pergunta que se segue:
- Por acaso, tem aí o seu cartãozinho de utente?

Post Scriptum: esta pergunta do cartão nunca existiu naquele caso, naquela noite, naquele balcão. Mas toda a gente que me contou a história decidiu incluir a pergunta na versão final e não serei eu que me vou pôr agora a contrariá-la. Acho que é compreensível.

27.12.07

biorritmo

Hoje, que está sol e acordei tarde, reparo ao abrir o biorritmo que vivo o meu 18 490º dia de vida. Já ou só, seja como for, qualquer coisa há-de ser. Não tenho mais nada a dizer sobre o assunto. Não, para já.

26.12.07

sobre a angústia (diários de Elf)

Não posso trabalhar em stress. Embrulho-me na fita-cola. Foi o que me aconteceu na quarta-feira, quando o Cliente Holandês telefonou, ia - ele- a caminho do aeroporto. Que precisava duma prenda. Nessa altura, eu atendia o Simpático Bayes, o marido da Doutora, a cliente que me introduziu na técnica dos teoremas.

Quando o Holandês se desviou, ele e o taxi, bem entendido, do caminho do aeroporto e entrou na loja, ainda o Simpático Bayes lançava umas graças para o ar, desconfio que para me impressionar. Um nadinha convencido. Mas simpático. A leste da questão dos teoremas, mas simpático. Até me custou, para abreviar, mandar o Simpático Bayes simpatizar para outro lado, afinal é marido de uma Cliente, da Doutora, não sei se já disse, mas tinha de atender o Cliente, nervoso, muito nervoso este Holandês em trânsito que, para abreviar, mais nervoso ficou quando surgiu o Problema, o Sintoma, o Stress, a fita-cola, o stress da fita-cola, abreviando.

Gastei meio rolo a fazer o embrulho, foi penoso, para mim, para o Cliente, eu penso sempre no cliente, para o embrulho, para a fita-cola, foi penoso quase em termos de cosmos, eu gosto de pensar que não estamos sozinhos neste mundo. Agora, eu esforçei-me, eu, a fita-cola e o nervoso e, mesmo assim, a merda do embrulho foi com um aspecto de fugir a sete pés. Mas foi. Abreviado, mas foi.

Elf, a Empregada de Loja Fina, que entrou no meu convívio há coisa de dois meses, surpreende-me cada vez que passo os olhos pelo seu diário, ou diários, como ela própria prefere designá-los. Quem não se rende à sincera admissão de falhas de competência, ainda que em assuntos menores? Quem não se rende à forma airosa como transforma os obstáculos em oportunidades, como manda a regra comercial, afinal a nova vida de Elf ? Que me importa que use o gerúndio e não se canse dos advérbios de modo? Que me importa o abuso duma graçola tipo abreviado? Lá está, uma falha de competência e uma falha de carácter não são a mesma coisa. Boas Festas, Elf, e demais clientela.

25.12.07

inícios (13)

Uma das poucas coisas, aliás, talvez a única que eu tinha a certeza de saber, era esta: chamava-me Mattia Pascal. E aproveitava-me disso. De todas as vezes que algum dos meus amigos ou conhecidos demonstrava ter perdido o juízo ao ponto de me visitar para obter algum conselho ou sugestão, eu encolhia os ombros, semicerrava os olhos e respondia-lhes:
- Eu chamo-me Mattia Pascal.
- Obrigado, meu caro, eu sei isso.

- E parece-te pouco?

Ele Foi Mattia Pascal
LUIGI PIRANDELLO

24.12.07

enigma assertivo

- Ela partir a perna é que a suicidou.

20.12.07

18.12.07

17.12.07

a arte da cozinha

"A porta do forno a lenha é selada com bosta de vaca. A seguir reza-se baixinho: "Deus te ponha o que te falta, que eu já fiz o que podia" - declarou a mestra de cozinha, 81 anos, em entrevista à Visão Gourmet.

É por estas e por outro que eu chego a ter pena da outra, da Asae, cumpridora, incompreendida. Eu, que sou uma sentimental, ponho-me logo no lugar da Asae, por exemplo, hoje, segunda-feira, início de uma semana de trabalho, é uma maneira de dizer porque a Asae não dorme quanto mais descansar ao fds. A Asae sai de casa, apanha bué de transportes, chega ao local de trabalho, ter que ouvir os gajos do fcp, sim, a Asae está informada e eles também, o Glorioso perdeu, ter que levar com os gajos do sporting e depois, imagine-se, e depois dos risos e das bocas e do raio que os parta, levar com uma bosta para autuar. E lá vai a Asae, cumpridora, incompreendida, autuar a bosta, deve ser bué de bosta, a mestra a protestar, a rezar baixinho - "Deus te ponha o que te falta, que eu já fiz o que podia", enfim uma chatice, cumprir a lei, ser mais papista que o papa, que é como quem diz, sermos mais europeus que os europeus, os verdadeiros.

15.12.07

piercing

“1971” era o que estava inscrito no capuz do blusão. Era uma inscrição em fibra, alto revelo, cinzenta sobre azul escuro. O cabelo, talvez melhor dito, o penteado, é mais difícil de descrever, embora, embora a cabeça tivesse quase toda rapada, quase, porque em cima tinha uma espécie de crista, uma crista seguida de um carrapito. Tudo isto sob uma cor crioula. Ela não. Mais velha, deslavada, um piercing no lábio, outro piercing no nariz, mais um na orelha direita. Estavam na mesa em frente, mas de costas para mim.
O 1971 disse-lhe a um dado momento, depois de ter deitado um olho à janela - “olha o teu irmão”, mas ela não reagiu logo. Deve ter sido por isso que o 1971 insistiu - “queres que o chame?”. Ela, ponderada apesar do tremor da perna direita, e eu reparei nisso porque era do mesmo lado da orelha do piercing, ela levou a garrafa de pedras salgadas à boca e depois é que disse - “chama aí”. O 1971 saíu. Saíu e voltou, voltou com o irmão dela. Eu nem precisava de ter ouvido o 1971 dizer "olha o teu irmão". Via-se logo que eram irmãos, pelo piercing no nariz via-se logo.

14.12.07

insónia

- Hoje não vejo a novela. Ontem à noite tive de desligar a televisão, não consegui ver tudo. Não imagina como é que eu fiquei. Quando o meu filho telefonou até disse "Já estás na cama?", mas o que é que quer, não aguentei, agora ando assim, o que é que quer. Desliguei a televisão e fui-me deitar. Estava-me a enervar tanto que nem queira saber. Até tive insónias, toda a noite a acordar, só a pensar na novela, a remoer, a remoer. É que há gente muito malvada!

13.12.07

tabacaria

Imprimiu duas receitas de sopa de alho francês. Depois decidiria. Uma levava 2 dl de natas, outra 50 gr de bacon em tirinhas. Fosse qual fosse a escolha, desceria à rua antes da mercearia fechar. Não tinha em casa nem natas nem bacon, e também não tinha noz-moscada.
Vá-se lá saber porque é que antes de sair escreveu ao fundo da folha impressa uns versos de Álvaro de Campos:

"O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão."

12.12.07

ao almoço

Fez-se um silêncio tumular. A conta tinha chegado.

11.12.07

sobre o teorema (diários de Elf)

Toda a gente gosta de mim. Ainda agora, ao cruzar-me na escada com o senhor Onofre, pude testar o teorema. Esta ideia do teorema surgiu-me após uma conversa com a Doutora, uma professora de matemática nossa cliente, que um dia desabafou comigo e me falou da sua tese sobre o teorema de Bayes ou a fórmula da probabilidade à posteriori. É certo que me falta paciência para demonstrações, mas atenção, eu sou muito intuitiva. Toda a gente sabe isso.

Li quase comovida esta frase do diário de Elf, pois tenho a certeza que Elf terá tentado demonstrar o seu teorema íntimo pelo absurdo: ninguém gosta de mim. E assim passará pelo Natal com o seu teorema: toda a gente gosta de mim. Como lhe invejo a força de viver.

10.12.07

benny goes to school

'Tá bem que a conversa não era comigo mas não consegui, acho que foi automático como um cadáver esquisito, olhei para a Baixinha, pronto. Olhei descaradamente, é o que eu quero dizer. Quem me conhece sabe que eu não costumo pôr-me assim a olhar, descaradamente, quem me conhece sabe que alguma causa de exclusão da ilicutude deve haver. Eu aqui limito-me à matéria de facto e sobre isso tenho a dizer o seguinte: eu já estava com o caderno na mão quando ouvi a Baixinha dizer para a outra que, sinceramente, nem vi se era ainda mais baixa que a Baixinha, a Baixinha disse então para a outra: - Pois fica sabendo, quem sai aos seus não genebra! Eu olhei para a Baixinha, meio felosa, com três sacos de plástico numa mão e a carteira na outra e nem tive tempo de reparar na outra porque a Baixinha avançou logo: - O que é que foi, minha senhora? Nunca ouviu? Quem sai aos seus não genebra.

Paguei e saí sem levar a factura dos caderninhos benny goes to school, uns com argolas, eu gosto muito de cadernos com argolas. Embora também goste se cadernos sem argolas, gosto muito de cadernos com argolas. Saí com o benny goes to school, ia até chocando com outra cliente e um cão. Eu estava um bocado à toa e, reconheço, com receio que a Baixinha viesse atrás de mim aos gritos: - O que é que foi? Até parece que nunca ouviste dizer que quem sai aos seus não genebra.

Eu nem me apercebi imediatamente do score. E detenho-me agora neste conceito e respectivas mais-valias. A Baixinha acabara de bater aos pontos, sem mas nem meio mas, um alegre retrato de família que eu tinha flashado no princípio da semana quando entrei numa outra das minhas congéneres, lojas de 300. Conto. E mais, vou contar até com um certo detalhe. Acho que foi na terça-feira. Apreciava eu com um ar um bocadinho enjoado, ou seria desdém, não sei, um video cable set, eram cinco e tal, seis horas, e ouvi umas prateleiras atrás: - Se eu soubesse que as fotografias cabiam, levava já duas malduras. É que estas aqui são mesmo jeitosas, filha. E a filha: - Pois é, até têm aqui uma coisa para segurar ao contrário! Eu se fosse a si levava já as malduras, mãe! E a mãe: - Olha, filha, nem tinha reparado. Pois agora é que eu levo mesmo as malduras. E a filha: - Ó mãe, se não der, vem cá trocar, que o senhor troca a maldura. Larguei o video cable set. Se fosse hoje teria pensado: Quem sai aos seus não genebra, ó yes in deed.

8.12.07

progressão geométrica

Recomeçei a correr. No primeiro dia não corri. No segundo, corri dois minutos e no terceiro quatro. Mas andei muito. Hoje tenciono correr oito. E andar. Faz muito bem andar.

7.12.07

ensaios fotográficos

O FOTÓGRAFO
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotogafei o perdão.
Olhei um paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski - seu criador.
Fotografei a Nuvem de Calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.
MANOEL DE BARROS Ensaios Fotográficos

6.12.07

miazinha

A minha Mia anda muito chateada - comigo - por causa da paparoca. A Miazinha é uma gulosa e nem sempre se lhe pode fazer a vontade. É preciso contrariá-la. E quando a contrariam a Mia fica chateada. Como a compreendo. Eu também fico. Há muito que adoptei a divisa duma realizadora com quem trabalhei: podem dizer mal de mim, mas não me contrariem. Ela dizia isto em francês porque era, é francesa, mas resulta em qualquer língua, incluindo a dos gatos.

Eis então o estado de espírito - não encontro melhor expressão - da Miazinha, a gulosa, a minha gata tigrada, olhos tortos, pêlo de arame, mas doce como qualquer gata criada entre as dobras dum xaile, lá para os lados de Sintra, e que chegou a esta casa carregada de pulgas, porém toda mignont, consciente da sua importância, e já generosa, capaz de perdoar as minhas maldades - que se resumem à palavra dieta e não mais que isso. Miazinha, Mimi, Micha, Miolo (de Coelho Mal Assado) - são estes os pouco heterónimos da minha gata Mia, a gulosa, a mimada, zero em comportamento. Tenho razões para me queixar.

Ontem a Miazinha assaltou-me os lombinhos que num momento infeliz - para mim, como num ápice me dei conta-, eu pousara em cima da mesa, antes de descascar os alhos. A Mia, a minha Miazinha, é reincidente no comportamento desviante e se me socorro da linguagem das ciências criminológicas é porque o caso não é um simples devaneio, um passo mal dado, um episódio passageiro: carapauzinhos, pescada, fiambre, strogonoff, espadarte fumado, atum em óleo vegetal, nada pode ser deixado à sua mercê. Mia, a intérprete, delinquente desde a mais tenra idade, para quem tudo é um convite aos prazeres da vida, esse segredo que os pequenos felinos já trazem ao nascer e que eu confessadamente invejo.

5.12.07

call center

- Boa tarde, em que lhe posso ser útil?
- Em nada.
- Em nada? Posso, ao menos, dizer-lhe as horas?
- Não se atreva. Mas obrigada na mesma pela atenção.
- Deixe-se de esquisitices, as horas qualquer pessoa aceita...
- Eu não sou qualquer pessoa.
- Já desconfiava.
- Não se incomode.
- Eu desligo de qualquer das formas. Detesto sentir-me a mais.
- Mas é a sua profissão. Não faça nada de que venha a arrepender-se.
- Concordo consigo. Mas nesse caso teremos de voltar ao princípio.
- Faça favor.
- Em que lhe posso ser útil ?
- Boa tarde. Pode dizer-me as horas?
- Nem pense nisso.
- Já desconfiava.

4.12.07

sobre o nada (diários de Elf)

Toda a gente pergunta o que é que se passa comigo. E eu respondo nada, não se passa nada.
Quando respondo nada, ninguém acredita. E, todavia, nada se passa.
Ora que não se passe nada já é qualquer coisa. Mas isso ninguém diz. Quem é que se arrisca a dar um passo em falso nos tempos que correm? Toda a gente se fecha em copas, toda a gente tem mais que fazer, como, por exemplo, entreabrir a boca num quase ah de espanto perante o novo bastonário da ordem dos advogados ou encomendar cápsulas da nespresso pela net. Ninguém diz que nada é qualquer coisa. Acaba de entrar uma cliente. Vem apressada e não segura.
Fragmento do diário de Elf - Empregada de Loja Fina. Conheço-a, nessa condição, vai para dois meses. Como o diário de Elf me veio ter às mãos é um enigma argentino. Digamos que não estou mal relacionada.

3.12.07

contraditório

"Só sei que nada sei". A mulher ouviu aquilo. Mais uma vez a mulher tinha de ouvir aquilo. Desde pequenina que ouvia aquilo. Mas desta vez não ia ficar calada. Disse: "Não é bem assim".

2.12.07

jantes de liga leve

O cão atravessou a rua direitinho ao automóvel azul. Punto. Rodeou dum lado e doutro, cheirou dum lado e doutro e desinteressou-se. Saltitou para o seguinte. Corsa. Um azar do caraças. O dono estava a chegar. Enxotou-o dali para fora sem piedade. O cão regressou a este lado da rua e esperou. Ao fim de cinco segundos, já desesperava. Coisa normal num cão de orelhas longas. Salvou-o um desportivo japonês que parou em cima da passadeira. Mal ouviu o clic do comando a trancar as portas, o orelhas aproximou-se do pneu do lado direito e fez o que tinha a fazer.

1.12.07

memory

Na padaria há uma nova empregada. É ruiva, jovem; demasia agitada, talvez. Pedi-lhe quatro bolinhas. A padaria é um estabelecimento versátil, vende e fabrica pão, pela ordem inversa, já agora, mas também é café, café-pastelaria, às vezes mercearia. Por lá cirandam velhos, caixeiras das lojas à volta a comer sopas e folhadinhos de salsicha e uma televisão ligada. É sobre esta que quero falar. Estou quase lá.
A padaria está quase vazia. A empregada mais antiga anda por ali a arrumar a loiça, quarenta e poucos, magra, magra, magra. A padaria está quase a fechar. Oiço-lhe a voz, enquanto a nova me avia as bolinhas: gosto muito desta música. A nova acrescenta logo que também, também ela gosta. Quanto a mim não oiço música nenhuma e elas não se atrevem a cantar.
Não ouvia, nem via. O écran era todo chuva. A mais velha empoleirou-se numa banco de madeira, deu uma pancadinha no aparelho mas a chuva não passou. Encolheu os ombros e não desanimou, aumentou o volume.
Ficámos as três a ouvir " Come As You Are". Foi um belo momento de nostalgia, por 68 ou 69 cêntimos que foi quanto eu paguei, informo pelo prazer da minúcia. Naquele momento a padaria estava quase a fechar mas continua a trabalhar na minha cabeça, agora que passou a ser a padaria dos Nirvana.