A minha Mia anda muito chateada - comigo - por causa da paparoca. A Miazinha é uma gulosa e nem sempre se lhe pode fazer a vontade. É preciso contrariá-la. E quando a contrariam a Mia fica chateada. Como a compreendo. Eu também fico. Há muito que adoptei a divisa duma realizadora com quem trabalhei: podem dizer mal de mim, mas não me contrariem. Ela dizia isto em francês porque era, é francesa, mas resulta em qualquer língua, incluindo a dos gatos.
Eis então o estado de espírito - não encontro melhor expressão - da Miazinha, a gulosa, a minha gata tigrada, olhos tortos, pêlo de arame, mas doce como qualquer gata criada entre as dobras dum xaile, lá para os lados de Sintra, e que chegou a esta casa carregada de pulgas, porém toda mignont, consciente da sua importância, e já generosa, capaz de perdoar as minhas maldades - que se resumem à palavra dieta e não mais que isso. Miazinha, Mimi, Micha, Miolo (de Coelho Mal Assado) - são estes os pouco heterónimos da minha gata Mia, a gulosa, a mimada, zero em comportamento. Tenho razões para me queixar.
Ontem a Miazinha assaltou-me os lombinhos que num momento infeliz - para mim, como num ápice me dei conta-, eu pousara em cima da mesa, antes de descascar os alhos. A Mia, a minha Miazinha, é reincidente no comportamento desviante e se me socorro da linguagem das ciências criminológicas é porque o caso não é um simples devaneio, um passo mal dado, um episódio passageiro: carapauzinhos, pescada, fiambre, strogonoff, espadarte fumado, atum em óleo vegetal, nada pode ser deixado à sua mercê. Mia, a intérprete, delinquente desde a mais tenra idade, para quem tudo é um convite aos prazeres da vida, esse segredo que os pequenos felinos já trazem ao nascer e que eu confessadamente invejo.