28.12.07

uma dúzia de leões

A Rosa foi ao Serviço de Urgência, não o da televisão, o outro, o real, o dela, o nosso, vou contar desde o princípio, a Rosa foi ao Serviço de urgências acompanhar uma amiga. Quando estavam no balcão de atendimento, um Homem ultrapassa-as ensanguentado. Sangue numa face, sangue no abdómen, sangue numa toalha que atira para cima do balcão:
- Tentei matar-me.

Do outro lado do balcão, a Senhora olha por cima do óculos, ou talvez não usasse óculos, mas olhou, com certeza que olhou, fez uma pausa, entreabriu hesitante os lábios, alguma coisa parecida com um sorriso ficou desenhado no que sobrava dos óculos, ponderou, portanto, e depois disse:
- Tentou matar-se? Ai, ai, ai, ai...

Receio que o caso não esteja bem contado, por isso vou ser muito explícita: imaginemos uma avózinha dos anúncios do azeite galo a dizer ai, ai, ai, ai, assim disse ao balcão a Senhora dos óculos talvez postos ai, ai, ai, ai. A Joana é que a sabe imitar bem, foi o que disse a Rosário quando me contou. Praticamente toda a gente, menos a Rosa, me contou a história e as várias versões são unânimes numa coisa: a senhora ficou bastante incomodada.

O Homem, o que não acabou de se suicidar, poderia ter usado outras palavras que não aquelas, secas, cinzentas, frias. Ter-lhe-ia dado jeito ter à mão O Pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião: “somente a morte poria termo ao meu desconsolo. Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em que seria devorado por eles.” Se acaso tivesse usado estas palavras decerto a Senhora teria sido poupada a rematar com a pergunta que se segue:
- Por acaso, tem aí o seu cartãozinho de utente?

Post Scriptum: esta pergunta do cartão nunca existiu naquele caso, naquela noite, naquele balcão. Mas toda a gente que me contou a história decidiu incluir a pergunta na versão final e não serei eu que me vou pôr agora a contrariá-la. Acho que é compreensível.