31.8.07

a viagem

Entrei e cheirou-me a sândalo. Lembrei-me da viagem que mais quis e nunca fiz. Enquanto ganho balanço, ardem varetas de bambu.

30.8.07

pesadelo

Hoje acordei com um pesadelo: dois ou três dias depois de ter começado a trabalhar numa rodagem, concluí que não me entendia com ninguém, que nos faltava uma linguagem comum, que a linguagem que eu desde sempre acreditara ser a linguagem da rodagem de um filme afinal não só não servia para nada como produzia equívocos atrás uns dos outros. Após dois episódios sucessivos, acordei. Lá fora, era noite.

29.8.07

piscinas

No tempo em que eu era nova, o Verão nunca mais acabava e isso era para mim uma grande chatice. Évora ardia em febre, e as paredes brancas faziam-me doer os olhos. As janelas de casa estavam fechadas entre as 9 e as 19 e a maior parte dos dias eu também. Abria uma nesga da portada, lia romances, "Gente de Hemso", "A Rua do Gato Que Pesca ", " O Valente Soldado Cheveik", " Aparição", "Carta A Uma Desconhecida". Também ia à piscina duas ou três vezes por semana. Inesquecíveis piscinas municipais, onde aprendi a nadar no Inverno.

28.8.07

campainha

Ela percebeu logo quando tocaram à porta: "Tenho um telegrama para si".

27.8.07

Aos Amigos

HERBERTO HELDER
Poesia Toda

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

25.8.07

Anda para casa, Carina!

Troca de palavras entre mãe e filha, mãe a gritar da janela de um quarto andar, filha na rua, vá-se lá saber precisamente onde e a fazer precisamente o quê:

- Ó Carina!
- O que é?!
- Ó Carina!
- Estou aqui!

Imaginemos tudo isto no Porto, num bairro social, ao cair da tarde. Prolongam-se algumas sílabas, fecham-se algumas vogais, enfim, tudo mais perto de nós, Carina.

24.8.07

inícios (12)

Gumbril, Theodore Gumbril Junior, B.A.(1) por Oxford, sentado no banco de carvalho, no lado norte da capela do Colégio, ouvia, através do silêncio inquieto de meio milhar de alunos, a Primeira Lição e, olhando para a vasta janela em frente, toda de vidros azuis, amarelados e vermelhos do século XIX, meditava, à sua maneira rápida e erradia, sobre a existência e a natureza de Deus.
(1) Bacharel em Artes

Geração Perdida
Aldous Huxley
tradução: Moacyr Werneck de Castro

23.8.07

a assinatura

Eu ia beber um café com ela. Bebíamos o café e chamava-a à razão. Na boa. Juro, pá, na boa. Quando lá cheguei o patrão disse-me que ela tinha ido almoçar. Deve andar aí com a rapariga que é caixa no talho, elas costumam andar aí à hora de almoço a ver as montras. A jogada não tinha começado bem cá pró meu lado e piorou mal eu a vi com os olhos nos saldos da charles, ela e a outra. Só podia piorar. Quando ela me viu começou logo com segredinhos prá outra e daí a nada estava aos gritos comigo. Não é que eu tivesse dito alguma coisa de especial. Palavra. Eu mal abri a boca. Se ela diz que a letra não é dela qual é o problema dela? Foi isso o que eu perguntei: Mas ouve lá, se a letra não é tua qual é que é o teu problema. E sabes o que é que ela me disse: pois esse é que é o problema. Eu nem abrangi imediatamente. Ainda perguntei: Qual? A letra não ser minha, respondeu-me ela. A letra não é dela e esse agora é que é o problema. Sim, senhora. Só se for pró lado dela que pró meu o problema não é esse. E aí está a resposta à tua pergunta: porque é que eu me sujeitei. Ora porque é que eu me sujeitei, sim, tens razão em perguntar, porque é que eu me sujeitei? Ora porque é que havia de me sujeitar? Por causa da merda do dinheiro. A mim também me custa a ganhar. Eu quero lá saber que a assinatura não seja dela, a mim tanto me faz que seja dela ou doutra pessoa qualquer, desde que o carcanhol apareça. Agora sem carcanhol nada feito. Ou o dinheiro do cheque aparece ou vai direitinho pró banco de portugal. Agora quem não fica a arder sou eu. Essa é que é essa. Olarela.

21.8.07

inícios (11)

Nada garante que Kublai Kan acredite em tudo o que diz Marco Polo ao descrever-lhe as cidades que visitou nas suas missões, mas a verdade é que o imperador dos tártaros continua a ouvir o jovem veneziano com maior atenção e curiosidade que a qualquer outro enviado seu ou explorador.

AS CIDADES INVISÍVEIS
Italo Calvino

20.8.07

quilos a mais

Vou correr. A rodagem acrescentou uns quilos aos quilos a mais que já tinha. Agora, não tenho outro remédio: correr. Correr ou recomeçar a fumar. Acontece, porém, que só em Maio próximo os quatro anos do ciclo "não fumar" se completam, quer dizer, só em Maio próximo poderei começar o ciclo "fumar". Ainda não sei se recomeçarei. Apesar da minha experiência - iniciei-me nestes ciclos antes dos 30 anos, isto é, desde essa altura que fumo 4 anos, não fumo 4 anos - é cada vez mais difícil controlar os vários dados do problema: o desejo, o peso, a perfomance. Às vezes penso que é da idade, outras simplesmente que os dados estão viciados.

19.8.07

posição horizontal

Ontem, estendida no sofá, começei a ler um policial, perdi dois pontos no Bessa, e adormeci. Mudei-me para a cama, continuei a ler o policial e adormeci. Acordei com fome, acordei com sede e de ambas as vezes retomei o policial e adormeci. De manhã abri os olhos e senti-me um pouco estonteada. Fui à janela das traseiras e o vento devolveu-me à cama. Página após página atirei-me ao policial e acabei com ele. Era meio-dia, mais coisa menos coisa.

18.8.07

o sistema

Tesouraria da Fazenda Pública.
Prazo de pagamento de um imposto a esgotar-se, fila nem grande nem pequena, sol escaldante do outro lado do vidro. Lá dentro, sob a benção ou a praga do ar condicionado - a malta nunca está satisfeita - olhos postos no ecran que modernamente equipa serviços públicos, bancos, centros de diagnóstico, bolsa de valores e não sei se também a Pastelaria Suiça. É nessa janelinha que passam, do lado direito, branco sob fundo azul, os números das senhas. Ao centro gráficos de receitas fiscais e outras informações úteis, que entretêm muito e, sobretudo, fazem roer de inveja a Martha Stewart.

A meu lado, um homem velho, franzino, de cabelo colado à cabeça e óculos fora de moda, soletra para si próprio: G26, G27, G28. Assim é efectivamente: G26, G27, G28. Adiro mentalmente ao jogo das senhas: JC002, JC003. Mais abaixo: J56, J57. É então que surge o problema. Diante dos nossos olhos: J55. Nem queria acreditar. Nem eu nem os outros jogadores de senhas. Instala-se algum burburinho (se não com a minha contribuição, ao menos com a minha simpatia). J55? Não faltava mais nada! J55 ? Com que então J55?! J55 o caraças! Resumindo, impossibilidade técnica e ética é a conclusão tácita que atravessa aquela sala como um vendaval de emoções.

Aí uma mulher assim para o forte, e acompanhada do lado direito por um saco de plástico da Tamanca e do lado esquerda por uma neta dos seus oito anos, diz pausadamente mas com firmeza fiscal: - É o sistema. E perante a indiferença de uns, poucos, e a perplexidade de outros, a nossa avó esclarece: - O sistema é que decide quem vai a seguir. E mais não disse porque, como se costuma dizer, o providencial telemóvel da senhora tocou. Seguiu-se uma sequência de gestos técnicos exigentes e que eu segui com ímpar atenção: resgatá-lo no interior do saco de plástico, olhar para o displey, encontrar a tecla verde e proferir as sábias palavras: - Onde é que estás? Tudo isso me distraíu da questão dos desígnios do sistema. Mas fiquei a pensar no assunto. Só para terminar: eu era J62 e o sistema foi generoso comigo e permitiu-me pagar o impostozinho depois do J61. Eternamente grata e viciada, por vezes tenho a matinal tentação de me dirigir a uma Tesouraria da Fazenda Pública.

17.8.07

TYOQ-IOQ

"I,1. O mandato ou missão de Deus é a Lei Natural.
Submeter-se às exigências da Lei natural é o que se chama Moral, bons princípios ou Rectidão.
O culto da Moral chama-se Educação ou Magistério.
2. A Moral não se pode abandonar um instante sequer. O que se pode abandonar será outra coisa, mas não a Moral.
Por isso um Homem, um Senhor, toma cuidado mesmo do que não vê, e acautela-se até do que não ouve.
3. Nada dá tanto nas vistas como o que se oculta; nem em nada se repara tanto como naquilo que desaparece.
Por isso, um Homem vela sobre si quando está só.
4. Antes de qualquer movimento de gozo, ira ou alegria, diz-se que há Equilíbrio. Sobrevindo esses movimentos, se tudo for com medida, chama-se a isso Harmonia.
O Equilíbrio é o grande fundamento do universo; e a Harmonia o caminho para o êxito.
Com equilíbrio e harmonia, o céu e a terra estão certos, e todas as coisas se desenvolvem."

Quadrivolume de Confúcio
tradução e notas de Pe. Joaquim Guerra, missionário de Shiu-Hing

16.8.07

esquecimento

"Para o ano não esquecer: plantar coentros antes de 15 de Agosto", escreveu ela no post-it que durante meses a fio esteve na porta do frigorífico. Hoje ao levantar deu-se conta do esquecimento. Só havia uma coisa a fazer. Rasgou o post-it.

15.8.07

os filetes

Apetecia-lhe filetes de pescada.

- Filetes de pescada só congelados.
- Não.
- Então vá almoçar a outro lado.
- Isso era o que a menina queria.
- Eu? Porquê?
- Para ficar sozinha.
- Eu não perguntei para quê, perguntei porquê.
- Vai dar ao mesmo no seu caso.
- Se continua a desconversar, está o caldo entornado.
- Eu não quero caldo, quero filetes.
- De pescada, só congelados. Não me faça perder a paciência.
- Aceito.
- Tão depressa?
- Estou com fome.
- Não me minta.
- 'Tá bem, eu confesso. Abri o frigorífico e vi lá um bolo de chocolate.
- Nem pense. Isso é p'ra logo.
- Mas eu vou-me embora esta tarde.
- Sabe bem que o bolo é um bolo de aniversário e que um aniversário comemora-se à noite. É um aniversário como outro qualquer e um bolo como outro qualquer. Se eu lhe pedir para ficar, fica?
- Depende.
- Não se arme em sindicalista.
- O que é que há para jantar ?
- Filetes de pescada.
- Congelados?
- Congelados.
- E se eu ficar, posso comer o bolo de chocolate?
- Isso depende de quem comemora o aniversário.
- Mas a aniversariante é você.
- Agora está a chamar-me velha?
- Velha? Não, eu ia agora chamar-lhe velha. Até acho que para a sua idade está muito bem conservada.
- Sabe, às vezes penso porque estou há tanto tempo consigo.
- Eu também.
- E não encontro resposta.
- Não faz mal, querida, é mais uma coisa que não encontra. Pense positivo.
- Não brinque. Eu costumo encontrar o que procuro. Sou uma pessoa determinada.
- Então porque é que os filetes são congelados? Para me pôr à prova?
- Deixe-se de conversas que jé estou atrasada. Vai almoçar?
- Almoçar e jantar. Feliz aniversário, querida.

14.8.07

na origem

ANAXÁGORAS séc. V a.C.
HÉLADE (antologia da cultura grega)
organização e tradução:
Maria Helena da Rocha Pereira

Na origem não há pequeno nem grande

Não há mínimo no pequeno, mas sempre menor (pois o que é não pode deixar de ser) - mas também há sempre um maior do que o grande. E, em quantidade, é igual ao pequeno, mas, de per si, cada coisa tanto é grande como pequena.
---
E, se há partes iguais, quantitativamente, do grande e do pequeno, deverá conter-se tudo em todas as coisas. Não pode haver nada de isolado, mas todas as coisas têm uma parte no todo. Como o mínimo não pode existir, não poderia dividir-se nem formar-se por si, mas, tal como inicialmente, também agora tem de estar tudo junto. Em todas as coisas, porém, existem muitas, e, daquelas que se separam, existe igual quantidade nas maiores e nas menores.

7.8.07

notícia: em portalegre

em portalegre o cemitério
deita por cima dos ciprestes
no leve solto azul funéreo
o exterior véu de mistério
que tem qualquer cemitério

Mário Casariny
Manual de Prestidigitação

6.8.07

inícios (10)

"Se me permitirá que antes de referir el gran suceso de que fui testigo, diga algunas palabras sobre mi infancia, explicando por qué extraña manera me llevaran los azares de la vida a presenciar la terrible catástrofe de nuestra marina.
Al hablar de mi nascimiento, no imitaré a la mayor parte de los que cuentan hechos de su propria vida, quienes empiezan nombrando su parentela, las más veces noble, siempre hidalga, por lo menos, si no se dicen descendientes del mismo emperador de Trapisonda. Yo, en esta parte, no puedo adornar mi libro con sonoros apellidos; y, fuera de mi madre, a quien conocí por poco tiempo, no tiengo noticia de ninguno de mis ascendientes, si no es de Adán, cuyo parentesco me parece indiscutible. Doy principio, pues, a mi historia como Pablos, el buscón de Segovia: afortunadamente, Dios ha querido que en esto solo nos parezcamos."
TRAFALGAR
Benito Pérez Galdós (1843-1820)

2.8.07