31.3.09

habilitações

é que não há nenhum curso, ó Vanessa, não sejas teimosa, pá. sabes onde é que é a igreja? ao lado não há um centro? quando se vem pela rua daquele restaurante onde fomos quando a minha irmã fez anos, não há aí um centro? foi lá que me disseram isso, não há nenhum curso desses, tenho a certeza, Vanessa, porque é que achas que andam até ao 9º ano? é obrigatório, Vanessa, 'tás a ver, é obrigatório, senão não andavam, depois uma pessoa vai para se inscrever e zás, não a aceitam, ó Vanessa, não sejas teimosa, foi o que a mulher me explicou, não há nenhum curso de cabeleireira lá, tem que se ter o 9º ano, pronto. olha, comemos uma meia dose a meias?

30.3.09

este ano, no inverno

Um prado e um choupal e um comboio em andamento. Esta é a minha vida. Poderia ser mais divertida. Mas não seria a minha.

26.3.09

ELEGIA COM UMA VARIAÇÃO ROMÂNTICA

As mulheres loucas arrumam os quartos, fazem
as camas desfeitas, empilham camisas e calças,
abotoam os cintos do infinito, prendem os laços
da sombra. Com os seus olhos cegos, enfiam
agulhas no buraco da vida, cosem as feridas
do amor que não tiveram, cantam devagar
a canção da idade fria. Dispo essas mulheres
no meu poema; espalho as suas roupas pelas cadeiras
do quarto; abro a cama onde as deito; rasgo
os pontos que acabam de coser. O seu sexo -
seco pelos ventos de uma inquietação nocturna
- humedece-me os dedos. Desfolho os dias de março
enquanto desfloro os seus lábios. Por vezes
as mulheres loucas abrem a porta da varanda,
respiram o perfume das trepadeiras brancas
da primavera, desmaiam com o sol.

NUNO JÚDICE
Raptos

25.3.09

movimento

Panorâmica vertical, descendente, talvez um pouco em diagonal, da direita para a esquerda vejo o telhado, e o sol a bater num friso metálico, vejo o andaime, vejo os pedreiros e os baldes, e as cortinas afastadas da janela, vejo o verde desmaiado da parede, vejo o exterior, vejo o interior, os fios da tvcabo, o parapeito enferrujado, os pombos, os vasos das sardinheiras da vizinha da frente, vejo a própria vizinha da frente, vejo a persiana corrida, vejo a caixa de derivação, a porta de ferro a precisar de pintura, o carteiro a tocar à campainha, o esquizofrénico a vender meias, e uma velha a entrar no mini-preço, vejo também o rapaz do talho a fumar à porta, e também há excremento de cão, e muita, muita gente para cima e para baixo, uma fila enorme de carros, passou agora a ambulância, vejo um sinal de cargas e descargas, vejo um jornal a voar, e vejo-te a ti, não é verdade.

24.3.09

um sorriso popular

Amor não me escrevas
cartas em latim

Que eu não as sei ler

dás cabo de mim...


in
Ensaios Etnográficos,
Leite de Vasconcelos

23.3.09

zizania palustris

Lembrei-me de arenque cru, lembrei-me de Amesterdão em Fevereiro. Uma heinecken, please, peço mentalmente. Ninguém me ouve, do que é que eu estava à espera se ninguém me pode ouvir? Na falta de arenque cru, vou comer arroz selvagem. Zizania palustris é o seu nome em latim. Acho que melhora o paladar.

21.3.09

meteo

Coimbra parece hoje uma praia do Norte. Triste.

20.3.09

chopin

Querido Frederic,
hoje acordei às 7 e meia da manhã com alguém acima do décimo primeiro andar a tocar a tua música. Obviamente tocava mal. Mas eu perdoei-lhe porque me lembrei de ti. Se calhar a música nem era tua. Mas mesmo que fosse do Franz, de quem eu me lembrei foi de ti.

19.3.09

na serra

Fui à serra da Lousã. Estive colada ao céu, estive lá no cimo, num caminho de torres eólicas imaginei-me a atravessar La Mancha. Desci, e bebi uma água das pedras. Só depois de ler os conselhos da dica da semana visitei uma ovelhinha com a idade de dez dias. Mas o que eu queria contar era que a Primavera chegou.

18.3.09

'horses'

Quando Patti Smtih canta, uma pessoa fica com vontade de ter a sua voz, uma escrita, um palco, correr à campa de Rimbaud e pedir-lhe iluminação para cantar 'horses'.

16.3.09

ouvir e escrever

Não consigo escrever. A francesa do lado oposto do jardim fala desesperada ao telemóvel. Eu ouço. Uma outra mulher, agarrada a um homem em sandálias, cinquentas, alemão, solta risos volumosos, nervosos, desafiadores talvez, não sei, talvez ela pense que sim, talvez ele pense que sim, não sei. Eu ouço.

13.3.09

inícios (23)

E alguém disse:
Fala-nos do Amor.

Khalil Gibran
'poemas de amor e abandono'
(vários; colectânea), edições A Mar Arte, 1999

12.3.09

(a casa onde)

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
lido em livro de João Barrento, de que não me lembro do nome

6.3.09

sobre a paciência

Fragmento do diário de Elf - Empregada de Loja Fina:

"De Kafka não tenho nada a dizer", disse Sartre. Mas depois não foi capaz de ficar calado. Constato isso ao ler um dos livros que uma cliente aqui deixou. A cliente escreve online e prepara uma tese intitulada 'criador e criaturas', acho e, se acho, é porque não tenho a certeza. Eu gosto de certezas. A culpa não é minha. A cliente é de poucas conversas.

Não gosto de poucas conversas. São más para o negócio, são más para a auto-estima e, além disso, fazem mal à pele e ao couro cabeludo. A prova é a cliente - a Fuínhas. A Fuínhas não tem um ar saudável. Muito magra, aqui e ali uma espécie de escamas à flor da pele, e uma indesmentível ruga a anteceder o olhar. A Fuínhas anda sempre com livros, parece que o corpo já não suporta a ausência do papel impresso. A Fuínhas só consegue um brilhozinho nos olhos quando encontra outro cliente também com um livro agarrado ao corpo. De preferência, uma cliente, já reparei.

Primeiro pensei que a Fuínhas olhava para elas por causa do corte das saias, do padrão dos lenços, dos colares, do gloss, mas depois processei as ligações, no dia em que ela cá apareceu com uma amiga. Hoje sorrio da minha ingenuidade. A amiga da Fuínhas é gira, speedada, toda ela Hermès. Uma amiga... Perceber o que é que a Fuínhas vê na Hermès é simples, até eu vejo. Perceber o que é que a Hermès vê na Fuínhas é que não é nada simples. Não admira que a Fuínhas se esqueça do Kafka em cima do balcão.

Umas horas depois telefona-me (a Fuínhas). Antecipei. Eu gosto de antecipar. Tenho mesmo convicções fortes sobre a antecipação. Antecipo sempre, mas dou uma pequena margem de contra-antecipação, neste caso sob a forma de um ponto de interrogação: 'já sei, já sei, é por causa dos livrinhos sobre Kafka que a Sôtora cá deixou? Não se preocupe que estão guardados'. A voz da cliente - voltou a ser a cliente, agora que já desabafei, o meu registo mental de clientes organiza-se em 'antes do' e 'depois do' desabafo e 'segundo o' desabafo, mas sempre por ordem alfabética -, então a voz da cliente mudou quando eu insisti, momentos depois, sobre os 'livrinhos', claro que os tinha guardado, sobre o 'Kafka', claro que estivesse descansada. E a voz da cliente, quer dizer o tom, o não dito, ainda mudou mais quando acrescentei, antes de desligar: 'se quiser posso entregá-los à amiga da sôtora, se a amiga da sôtora passar por cá primeiro que a sôtora, claro'. Quis ser prestável, concisa e produtiva. Se a cliente sobreinterpretou é com ela. Pode sobreinterpretar sentada porque claro que eu vou continuar a ser prestável, concisa e produtiva com qualquer cliente, incluindo ela, Fuínhas, a sôtora.

Não sei se pelo travo de contrariedade, se pelo apelo do conhecimento, nesse mesmo dia, antes de fazer a caixa, passei pela bibliografia perdida e pus-me a ler Kafka aos bocadinhos. Kafka lê-se muito bem aos bocadinhos. Encontrei uma passagem à minha medida e pensei 'porque será que nos grandes escritores encontramos sempre passagens à nossa medida?' Contive-me, porém, e li, limitei-me a ler. E reli:

"Não é necessário saires de casa. Fica à mesa e escuta. Não escutes sequer, fica completamente quieto e só. O mundo oferecer-se-á para que o desmascares, não lhe resta outra coisa. Arrebatador, contorcer-se-á perante ti."

O meu cérebro começou a trabalhar: se eu substituir a palavra 'casa' por 'loja' e a palavra 'mesa' por 'balcão', ponho-me ao nível de Kafka. O meu problema é ficar quieta e só. Acho que não tenho paciência. Quererá isto dizer que estes diários nunca poderão concorrer com os diários de Kafka? E os Diários de Kafka foram escritos porque ele ficou quieto e só?"

Faz agora um ano que eu não punha os olhos em fragmento algum dos Diários de Elf. Conheci-a no Outono de 2007 e durante largos meses vieram-me parar às mãos, por meios que não interessa para o caso, fragmentos dos seus diários, escritos nos intervalos entre clientes. Depois, o silêncio. Nunca mais soube nada dela. Até que me deparei com este fragmento sobre a paciência (de Kafka). Receio não ter mais notícias de Elf nos próximos tempos. É um pressentimento. Esta comparação com Kafka não lhe foi particularmente favorável.

5.3.09

(queríamos ser)

Queríamos ser como as coisas de barro
No meio de
-----tanto
------ aço
---------sobre rodas

Reiner Kunke, para Jan Skácel
trad.: João Barrento ('Umbrais')

4.3.09

Tokio-GA

Estou no café. Faço um movimento trivial: olho à minha volta. Estou cercada por caixas-de-óculos. Eu própria sou uma caixa de óculos. Não sei porque me lembrei desta afronta infantil. Hoje estou muito infantil. Invejo os morangos que um dos caixas-de-óculos está a comer. Ele começou por lamber a colher, inclusivamente. Inclino-me para ler o título do jornal do homem da frente e soletro ainda inclinada: 'fis-co que-ri-a, não, cri-a, cri-a ca-das-tro-'. Agora já não me apetece ler. Agora quero-me ir embora, agora já não quero ir. Agora quero água, agora só falta atirar-me para o chão como o miúdo do metro no filme de Wim Wenders.

3.3.09

/ eixo cruzado:2



2.3.09

/ eixo cruzado:1