6.3.09

sobre a paciência

Fragmento do diário de Elf - Empregada de Loja Fina:

"De Kafka não tenho nada a dizer", disse Sartre. Mas depois não foi capaz de ficar calado. Constato isso ao ler um dos livros que uma cliente aqui deixou. A cliente escreve online e prepara uma tese intitulada 'criador e criaturas', acho e, se acho, é porque não tenho a certeza. Eu gosto de certezas. A culpa não é minha. A cliente é de poucas conversas.

Não gosto de poucas conversas. São más para o negócio, são más para a auto-estima e, além disso, fazem mal à pele e ao couro cabeludo. A prova é a cliente - a Fuínhas. A Fuínhas não tem um ar saudável. Muito magra, aqui e ali uma espécie de escamas à flor da pele, e uma indesmentível ruga a anteceder o olhar. A Fuínhas anda sempre com livros, parece que o corpo já não suporta a ausência do papel impresso. A Fuínhas só consegue um brilhozinho nos olhos quando encontra outro cliente também com um livro agarrado ao corpo. De preferência, uma cliente, já reparei.

Primeiro pensei que a Fuínhas olhava para elas por causa do corte das saias, do padrão dos lenços, dos colares, do gloss, mas depois processei as ligações, no dia em que ela cá apareceu com uma amiga. Hoje sorrio da minha ingenuidade. A amiga da Fuínhas é gira, speedada, toda ela Hermès. Uma amiga... Perceber o que é que a Fuínhas vê na Hermès é simples, até eu vejo. Perceber o que é que a Hermès vê na Fuínhas é que não é nada simples. Não admira que a Fuínhas se esqueça do Kafka em cima do balcão.

Umas horas depois telefona-me (a Fuínhas). Antecipei. Eu gosto de antecipar. Tenho mesmo convicções fortes sobre a antecipação. Antecipo sempre, mas dou uma pequena margem de contra-antecipação, neste caso sob a forma de um ponto de interrogação: 'já sei, já sei, é por causa dos livrinhos sobre Kafka que a Sôtora cá deixou? Não se preocupe que estão guardados'. A voz da cliente - voltou a ser a cliente, agora que já desabafei, o meu registo mental de clientes organiza-se em 'antes do' e 'depois do' desabafo e 'segundo o' desabafo, mas sempre por ordem alfabética -, então a voz da cliente mudou quando eu insisti, momentos depois, sobre os 'livrinhos', claro que os tinha guardado, sobre o 'Kafka', claro que estivesse descansada. E a voz da cliente, quer dizer o tom, o não dito, ainda mudou mais quando acrescentei, antes de desligar: 'se quiser posso entregá-los à amiga da sôtora, se a amiga da sôtora passar por cá primeiro que a sôtora, claro'. Quis ser prestável, concisa e produtiva. Se a cliente sobreinterpretou é com ela. Pode sobreinterpretar sentada porque claro que eu vou continuar a ser prestável, concisa e produtiva com qualquer cliente, incluindo ela, Fuínhas, a sôtora.

Não sei se pelo travo de contrariedade, se pelo apelo do conhecimento, nesse mesmo dia, antes de fazer a caixa, passei pela bibliografia perdida e pus-me a ler Kafka aos bocadinhos. Kafka lê-se muito bem aos bocadinhos. Encontrei uma passagem à minha medida e pensei 'porque será que nos grandes escritores encontramos sempre passagens à nossa medida?' Contive-me, porém, e li, limitei-me a ler. E reli:

"Não é necessário saires de casa. Fica à mesa e escuta. Não escutes sequer, fica completamente quieto e só. O mundo oferecer-se-á para que o desmascares, não lhe resta outra coisa. Arrebatador, contorcer-se-á perante ti."

O meu cérebro começou a trabalhar: se eu substituir a palavra 'casa' por 'loja' e a palavra 'mesa' por 'balcão', ponho-me ao nível de Kafka. O meu problema é ficar quieta e só. Acho que não tenho paciência. Quererá isto dizer que estes diários nunca poderão concorrer com os diários de Kafka? E os Diários de Kafka foram escritos porque ele ficou quieto e só?"

Faz agora um ano que eu não punha os olhos em fragmento algum dos Diários de Elf. Conheci-a no Outono de 2007 e durante largos meses vieram-me parar às mãos, por meios que não interessa para o caso, fragmentos dos seus diários, escritos nos intervalos entre clientes. Depois, o silêncio. Nunca mais soube nada dela. Até que me deparei com este fragmento sobre a paciência (de Kafka). Receio não ter mais notícias de Elf nos próximos tempos. É um pressentimento. Esta comparação com Kafka não lhe foi particularmente favorável.