29.11.03

Tatiana Chtcherbina

"E o meu coração já não bate
na minha voz, de alegria e tristeza.
Acabou...e o meu canto galopa
para a noite vazia, onde tu já não estás.

Ardo em febre, a minha cama é uma lareira,
deliro, que num automóvel vou deitada,
e como num obus, ou mina despoletada,
quebra-se a minha cápsula em poeira.
Cobre-me como pó-de-arroz uma luz viscosa,
que me crucificasse para a benção do céu,
não passarei invisível sob cortina ou véu:
colam-se às janelas os carvões, dos telhados
das torres, tristes como lares apagados,
olham, roçam as cascas, receando
a luz quente das cascas da ostra-veículo,
e a mim não me larga a viscosidade da vida."

Tatiana Chtcherbina
(Munique, 1992)

28.11.03

daqui é o pai natal

A Rosário, a minha vizinha do 2º andar, veio cá antes de jantar devolver-me o escadote. Aproveitou para me contar as suas aventuras no trabalho. A Rosário é educadora de infância. Hoje, quando chegou ao Jardim Escola, a auxiliar fez-lhe queixa de dois meninos que se andavam a bater. A Rosário diante dos outros meninos exclamou: "Por isso é que o Pai Natal me telefonou ontem à noite!". E contou-lhes a conversa:

- Pai Natal, como é que tem o meu número de telefone?
- Rosário, não sabe que eu sou mágico? (silêncio) Então diga-me lá, como é que se têm portado os seus meninos?
- Muito bem, Pai Natal, muito bem.
- Não me minta, Rosário.

27.11.03

rosas

Quando o paquistanês entrou no bar com um brinco luminoso e uma braçada de rosas para vender, o homem que estava comigo disse-me que deve ser muito chato para uma mulher que lhe ofereçam uma rosa no princípio da noite. Achei que tinha toda a razão. Os problemas são mais que muitos: ele é o caule da rosa sempre demasiado comprido, ele é a rosa que pica, ele o transporte da rosa dum lado para o outro and so one. Perde-se o romantismo mas também o incómodo. E poupa-se um euro. Foi então que me lembrei do meu horóscopo do dia anterior e quando cheguei a casa voltei a consultá-lo:" En el amor, tu postura será mágica y ella se enterará. Un consejo: dile que su piel huele a rosas."

26.11.03

a balada inglesa

Reparei nela ainda o 18 não tinha saído do paragem. Sentei-me à sua frente. Ouvi-lhe a voz: estava a cantar uma balada inglesa. O autocarro arrancou, o sol batia-me na cara e na minha cabeça ressoava a balada inglesa. Ao começarmos a descer a Afonso III começou também o monólogo :"Óptimo. Este vai directamente para a carrinha da metadona". Parecia contente. E voltou à sua balada, agora também minha. Mas de um momento para o outro desatou a praguejar contra os médicos. Elevou o tom e gritou para o motorista: "Este autocarro vai para Chelas?" Eu virei-me para trás: "Vai". "E sabe se passa na carrinha da metadona?". E eu não sabia. Levantou-se repentina e fez meio autocarro a gritar para o motorista:"Ó senhor, este autocarro passa na carrinha da metadona?" Não sei o que o homem lhe respondeu. Sei que desceu na paragem seguinte. Quando a vi pela janela do autocarro, cabelos em desalinho e carteira a saltar do bolso de trás das calças, levava um cigarro na boca, ainda por acender. Parecia zangada. Ou então ia simplesmente a cantar a balada inglesa mas à sua maneira.

25.11.03

dominó

tenho no porta-chaves dois micro cartões. um diz "clube mini-preço", o outro "dominó". da utilidade do primeiro ainda faço uma ideia: com o talão da conta, recebo vales de desconto. é certo que raramente os utilizo ou porque não sei onde páram ou, se sei, o prazo de validade já lá vai. quanto ao cartão dominó, do pingo doce, permanece o enigma: para que serve? todavia, sempre que, na caixa, a empregada me pergunta se tenho cartão dominó, saco pronta e, desconfio, mesmo alegremente do porta-chaves. Ah! esta absoluta necessidade de pertencer a...

Nana Issaia

A ALTERNATIVA

"Onde é que estamos ?" perguntei-lhe uma vez
por causa do palidíssimo aspecto
de um sol nórdico.
Havia uma tonalidade de não sermos nós.
Só um castelo no ar
E o registo de um passado inútil.
"Ou tu ou a minha arte".
Que ultrapassada alternativa!
Porque era tarde de mais.

Nana Issaia

(tradução: Ana Hatherly)

24.11.03

promoção

coisas que acontecem a um cidadão francês, residente em Portugal, ao aderir por telefone a uma televisão por cabo:

- nome?
-(...)
-nº do passaporte?
-(...)
-qual é o seu clube?
-como?
-qual é o seu clube?
-bom...não sei...o Benfica.
-Óptimo! Tem 5% de desconto.

21.11.03

na flôr do império

Lisboa, antes de almoço. Mal entro, dirigo-me directamente ao empregado que serve às mesas:"uma bica curta". Acompanho as palavras com um gesto de aproximação polegar-indicador. Se há coisa que pode afectar o meu humor matinal, que já de si não é famoso, é o tamanho da bica.

Instalo-me. Dois jornais sobre a mesa. Fico indecisa entre a bola e o dn. A coisa tem a sua importância: se escolher o dn começo a ler da última para a 1ª página, se for a bola da primeira para a última página. Chega a bica. "Traga-me um cinzeiro, se faz favor". O empregado atira tolhas para cima das mesas vazias. "É só?" ouço o outro empregado, atrás do balcão. A criança à minha frente agarra-se à mesa e espera que a avó acabe de pagar a conta. O empregado continua a atirar toalhas, guardanapos, facas, garfos, pratos, tudo para cima da mesa, tudo menos cinzeiros. Levanto-me e vou buscar um.

A avó pega na criança ao colo: "Upa!". Cai um copo na cozinha. O patrão espreita. Ao balcão a avó pede: "Duas pastilhas pirata". Ouço a máquina registadora fazer ronron. "Ó André pára quieto antes que eu me zangue". Não pára. A avó põe a criança no chão. Birra para que te quero. A avó desembrulha num ápice uma pastilha. É tarde,demasiado tarde. Há lágrimas absolutamente incontornáveis, como na política, e uma birra é assim mesmo, como no futebol. É inútil pedir a segunda bica. A criança não se cala, o cheiro a fritos invade o café, são 11: 44 e não há paz na flôr do império.

19.11.03

dicionário: A de Arma

“As primeiras e toscas armas de fogo fizeram sua aparição na Europa nos primórdios do séc.XIV. Eram, a princípio, inseguras e pouco eficientes, maslentamente seu design e poder foram evoluindo, até que, no séc.XVI, já começavam a dominar os campos de batalha. Dai por diante, sua história se confunde mais ou menos com a de inventores em busca de métodos para melhorar o desempenho das armas de fogo. Alguns deles eram pessoas de destaque, e estranhas algumas das novas ideias; alguém chegou a propor disparar balas redondas nos cristãos e quadradas nos turcos.” - Frederick Wilkinson, Armas de Fogo, colecção Prisma, Edições Melhoramentos



A minha Vida permaneceu - Uma Arma Carregada -
Deixada pelos Cantos - até que um Dia
O Dono passou - identificou-me -
E levou-me consigo -

E agora Nós vagueamos pelos Bosques Soberanos -
E agora Nós caçamos a Corça -
E todas as vezes que falo em Seu Nome -
As Montanhas de imediato respondem -

E então sorrio, uma luz tão amistosa -
Sobre o Vale resplandece -
Como se a face de um Fósforo
Seu prazer irradiado tivesse -

E quando à Noite - Nosso belo Dia acabado -
Guardo a cabeça do Meu Senhor -
É melhor do que as Penas de Pato
Da funda Almofada - ter partilhado -

Para o Seu inimigo - sou inimigo mortal -
Não se move duas vezes -
Aquele a quem lanço um Olho Amarelo
Ou um Polegar decidido -

Embora mais do que Ele - possa eu mais tempo viver
Ele - mais do que eu - viverá
Porque tenho apenas o poder de matar,
Sem ter o poder de morrer -

Emily Dickinson


Encontrei esta senhora há uns anos numa biblioteca pública. De então para cá não deixei de pensar nela: Emily Dinckinson (Amherst, Massachusetts, 1830-1886).

O passeio dos AAAAAAAA não tem fim: Amor Ardente, Alentejo, Às de Copas, Arafat, Aurora ,a do meu amado Murnau, mas também podia ser a bela Aurora, Ártico/Antártico, Amália, Alma, Atlas, Água do Luso, Antologia, Amesterdão, Amsterdam, Ah, Adília Lopes,e o AndyWarhol fica para a letra W .

18.11.03

ó-ó

É tão bom fazer ó-ó!

16.11.03

noite

Tantas estrelas!
Tantos micróbios nesta atmosfera...

Andrei Voznessenski

14.11.03

molotov

Madame Castafiore festeja todos os anos o S.Martinho. Este ano não o fez. É esta a explicação que Madame Castafiore encontra para ter chumbado no exame de código. Nem o pudim molotov que Madame Castafiore comia enquanto me contava o sucedido conseguiu evitar a tristeza nos seus olhos.

13.11.03

regresso a casa

Uf!!De novo em Lisboa. Quando entrei em casa, vi os olhinhos azúis da Mia. Lá estava ela à porta do meu quarto. A Vera só apareceu uns minutos depois. Passou por mim como cão por vinha vindimada. De nada valeram os apelos "Vera, ó Verinha" corredor fora, pé ante pé, com uma pensada colocação de voz e um sorriso inevitável. Tanta figura de parva que aquele corredor já viu. A Vera, entretanto, entrincheirou-se debaixo da cama, certamente disposta a dar-me baile, mas fiz das fraquezas forças e não me ajoelhei. Fui para a sala, onde a Mia praticava com toda a sua arte e engenho derrapagens no tapete. O Marítimo marcou de livre directo. A Vera apareceu na sala. Aposto que só para ver a minha cara enquanto a tv passava as imagens ao ralenti. Mas eu troquei-lhe as voltas e olhei para ela e pude, enfim, ver-lhe os olhinhos verdes. Atirei ao ar um papelinho amachocado, acompanhado de um "busca" especial para gatos, e a Vera deu-me o privilégio da sua companhia durante uns minutos. O Benfica empatou. Mas a noite não foi sempre assim tão previsível. À minha espera, no meio de avisos de pagamentos, dois números dos "Brados do Alentejo", convites para estreias que já estrearam e basta publicidade, estava uma cartinha do senhor irs com um cheque da dona direcção-geral do tesouro. Por isso, a primeira coisa que fiz hoje mal pus um pé na rua foi encaminhar os meus passos para o banco.

11.11.03

inícios (4)

Pelas nove da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação de Évora. Nos meus membros espessos, no crâneo embrutecido, trago ainda o peso de uma noite de viagem. Um moço de fretes abeirou-se de mim, ergue a pala do boné:
- É preciso alguma coisa, senhor engenheiro?
Dou-lhe as malas, digo-lhe que há ainda um caixote de livros a desembarcar.
- Então é dar-me a senhazinha, senhor engenheiro.
- Mas não me trate por engenheiro. Sou professor do liceu.

"Aparição", Virgílio Ferreira, Liv.Bertrand

Já li a Aparição várias vezes. Ainda não tinha um ano quando fui para Évora. Saí de lá aos 19. Regressei e voltei a sair. Hoje não é fácil para mim voltar. Não sei se por já não existir a casa dos meus pais, se por a cidade ter à superfície outro andamento. Sei que me custa lá voltar. Mas nunca abandonei Évora. E quando quero visitar Évora leio umas páginas da Aparição.

9.11.03

segredos de cozinha

Desde a uma da tarde que começei a ouvir falar do eclipse da lua. Há mais de quarenta anos que oiço falar de eclipses da lua. Olha, não te esqueças, dia tantos, não te esqueças, amanhã, às tantas horas, ontem, não viste o eclipse da lua?! Já lhes perdi a conta e, pior, já estou um bocado farta de tanto eclipse da lua. Prefiro falar da bela sopa de cogumelos que comi ontem ao jantar. Soube-me tão bem que não resisti e pedi a receita ao cozinheiro. Bom apetite.

Ingredientes, técnicas e notas de rodapé: alho francês, cebola (tudo muito picadinho, especialmente a última) e uma noz de manteiga. Refogar. Laminar cogumelos (daqueles branquinhos e pequeninos, que costuma haver no sítio do costume e de que não faço ideia do nome em latim; em compensação aqui ficam os termos em alemão e holandês, respectivamente: pilze, paddestoelen). Refogar. Juntar água, farinha q.b. e mexer, de modo a engrossar o caldo. Deixar ferver. Juntar natas (mas das boas, recomendou-me um pouco rispidamente o cozinheiro), temperar a gosto (não confundir com agosto, avisou-me a S. do outro lado da mesa). Deixar levantar fervura e está pronta.

Uma última nota, que o cozinheiro omitiu, creio que dolosamente: esta sopa sabe particularmente bem em noites de eclipse da lua. Confirma-se. A lua tem os seus segredos.

7.11.03

viagem à natureza

Quando o dia de folga é durante a semana vou sempre ao banco e ao lidle. Nesse dia resolvi também fazer uma viagem à natureza.

Saí do hotel à hora em que o sol deixa a piscina. Sigo ao longo do rio em direcção ao mar. Jordan & Nunn landmark, sinais de stop e cataplanas xxl. Encontro o bomba superliga quase debaixo da última ponte e eis-me na Rua das Salinas. Vêm-me à memória “A um Deus Desconhecido”.

Um enorme placard publicitário anuncia “o último paraíso”. Por detrás, uma antiga fábrica. Interroga-me se terá alguma coisa a ver com Jordan & Nunn landmark. Vigilante, a um dos portões surge um jovem gato. Faço o melhor que posso: o melhor sorriso, o melhor olá. Nada. Não obtenho resposta. Apenas uns olhos espantados e um recuo estratégico. Vá lá, vá lá, não fugiu. Adeus gatinho. Contorno uma baia direccional. Há água dos dois lados da estrada. Na curva, aproxima-se o comboio turístico em sentido contrário ao meu e eu aproximo-me cada vez mais da natureza.

Há muito que deixei a Rua das Salinas mas isso não impede que me lembre de “O Leopardo”. Adiante. A linha do horizonte, a vegetação mediterrânica, a água e, confesso, mesmo as nuvens, vão tomando conta do cartão de 64MB da câmara digital. Avisto uma cadeira de verão que jaz no meio da água. Enquadro um pouco indecisa, tantas as possibilidades de belo efeito. Disparo. Nada satisfeita, afasto-me do objecto e quando vou para reenquadrá-lo eis que leio no visor “mémoire insuffisante” (o menu em francês é a minha pequena homenagem a Proust). Mas quem me conhece sabe que eu nunca iria para uma viagem à natureza sem estar prevenida quanto baste. Saco, pois, do cartão de 32MB. Hesito na resolução. Não. Aquela cadeira merece a mais alta resolução. Mas a natureza é indomável. Nessa altura uma nuvem tapa completamente o sol e sem luz não há palhaço. Um passarinho piu-piu começa a enervar-me.

Espero. Atrás de mim passa um automóvel da categoria de ligeiros a ultrapassar o limite máximo de velocidade instantânea. Aproveito para fumar um cigarro desactualizado (diz simplesmente “os menores não devem fumar”). O sol liberta-se da nuvem e eu volto à minha cadeira. Já está.

Continuo na direcção ao mar. Mas é nos detalhes que mora o segredo da viagem e eu substimei os detalhes. É certo que cheguei a tempo do último barco mas como sou a última e única passageira
e do outro lado já não há passageiros, o homem do leme traça-me o destino em duas penadas: se quiser ir, pois vá, vá, mas mal terei tempo de pôr o pé em terra porque ele regressará logo a seguir. As contas não eram difíceis de fazer: eu não poderia exclamar como pensei durante todo o caminho: Ah! O mar! Que espectáculo colossal. “Venha cá amanhã”. “Amanhã não posso, estou a trabalhar”. Boa tarde, mar. De modo que volto para trás, vejo o sol a pôr-se por detrás de uma palmeira e lembro-me estupidamente de “Palmeiras Bravas”.

Passo pelo placard ao pé da antiga fábrica e traduzo quase instintivamente: “the last paradise”. Procuro o jovem gato e não o vejo. Estou outra vez na Rua das Salinas. Vêm-me à memória “A um Deus Desconhecido”. Hora mágica. O letreiro da galp já está iluminado e eu gasto o último MB desta viagem porque se há coisa bonita neste mundo é uma bomba de gasolina iluminada.

Já na cidade, entro numa mercearia, taberna, drogaria e, até, um pouco estância que me faz lembrar a minha infância. Não há Ventil Ligth e compro um ramo de oregãos. E assim quando entrei no cybercafé trazia dentro da mochila a natureza. Ainda ali está, no bolso exterior do saco de viagem.

1.11.03

dunas

NO LIMIAR DA CASA

Estar sentado nas dunas. Não ver
Senão sol. Não sentir senão
Calor. Não ouvir
Senão quebrar as ondas. Entre duas
Pulsações acreditar: Agora
Há paz.

GUNTAR KUNERT