31.12.09

mensagem em dezanove palavras

fatias douradas peixinhos dourados anos douro o rio e outros rios do ouro tanto ouro e louros imerecidos também

30.12.09

sonatas e sornas

Adormeci no sofá. Estava a ler as cartas de Virgínia Woolf, uma carta, quando adormeci. Acordei minutos depois - quinze, vinte? - e pareceu-me ouvir uma sonata, pareceu-me ouvir as últimas notas duma sonata para piano, naquela altura em que o pianista abandona os dedos, abandona as teclas, e todos nós fechamos intimamente os olhos. Bom, seja como for, pareceu-me uma sonata. Eu acho que reconheço uma sonata e gosto bastante da palavra sonata.

A sonata estava no fim. As notas a desvanecer-se, eu com a cabeça enterrada entre duas almofadas, um despertar quase perfeito, não fosse o frio que sentia no ombro direito, não, no ombro esquerdo, inadvertidamente destapado. Pormenor do ombro entre parêntesis, o acordar era perfeito, tal como, aliás, o adormecer já o tinha sido: a carta, eu a ver a Nicole Kidman a fazer de Woolf, uma carta do Verão de 1928, ainda tenho a página marcada: "Observo com interesse a instabilidade dos meus sentimentos em relação à França. Leonardo diz que não pode ir. Mas, como anjo que é, acrescenta - mas vai com a Vita. Depois faz de maneira - sem proferir uma única palavra nesse sentido - que eu compreenda quando, sem mim, ele se sente só de um modo insuportável. Chegados aqui eu desisto, até que, de repente, começo a dizer para mim própria que tudo isto é de um sentimentalismo pouco salutar. Mesmo assim, eu irei, depois, imagino-me a dizer-lhe adeus - e já não posso; até ao momento em que vejo um rochedo num vale, Vita numa pousada; e digo, outra vez, que devo ir. E assim por diante."

A dura realidade é que não havia sonata nenhuma. Soube-o mal olhei para a televisão, ecran escuro, escuro; o aparelho estava desligado, nada de mezzo como muitas vezes acontece quando o sono chega, música clássica e vida selvagem são os meus canais preferidos quando o sono chega. Desta vez a música vinha directamente da minha imaginação e na minha imaginação só há sonatas e pouco mais. Foi uma enorme decepção.

29.12.09

palavra do dia

infundice
(infundir + -ice)
s. f.
Barrela feita de urina em que se demolhava a roupa muito suja, para depois se lavar mais facilmente. = infundiça
Confrontar: infundisse.
FLIP

27.12.09

castanhas

Acabei de comer as castanhas mais intragáveis que alguma vez comi na minha vida. Castafiori quis prendar-me, em nome da nossa amizade, com um jantar de Natal, um jantar de Natal à sua maneira, um toque fora do comum. Castafiori adora sair do comum. Foi assim que as castanhas apareceram sobre a mesa, a special touch. Acontece que as castanhas estavam mal cozidas, estavam insonsas, nem sequer sabiam a erva-doce, as castanhas estavam intragáveis.

Castafiori tentou distrair-me e especulou, se tivessem estado mais dez minutos aos lume, se ao menos as tivesse abafado, se o frio não fosse tão intenso, se não tivesse acabado de deitar fora a água onde cozeram, e, já agora, como será o nome latino de erva-doce, deve ter um, não é? Castafiori sabe bem como eu lhe permito certos destemperos e algumas aleivosias, mas castanhas intragáveis são castanhas intragáveis, seja ela, seja a rainha de Inglaterra a fazê-las, sei-o agora, um absurdo em ambas as hipóteses, como absurda é a pergunta sobre o nome latino da erva-doce. Não me contive: "- Mas acha que o nome latino da erva-doce vai alterar alguma coisa?" E ela: "-Ah, pois, eu pus erva-doce mas não se sente, não é?"

Ora acontece que não só não se sentia o sabor da erva-doce, o cheiro da erva-doce, tudo o que a erva-doce provoca na nossa imaginação, como as castanhas estavam intragáveis sob todos os outros aspectos e a pergunta sobre o nome em latim só podia ser uma tentativa grosseira de lançar poeira aos que achavam que as castanhas estavam intragáveis - e que eram todos. Esta parte final corresponde ao que foram os meus pensamentos, silenciosos a partir daquele "eu pus erva-doce mas não se sente." Castafiori, porém, leu o que se passava na minha cabeça como se eu fosse um livro aberto. Disse: "- É que eu gosto muito desse nome, erva-doce." Quase que me comovi. Castafiori conhece-me, sabe levar-me, sabe que eu gosto mais de palavras do que de castanhas.

Agora que cheguei a casa posso confirmar que efectivamente o universo está ao lado de Castafiori e das castanhas intragáveis deste mundo. Erva-doce em latim é um nome encantador: pimpinella anisum.

24.12.09

no tempo do sapatinho

A minha grande missão na minha pequena vida era descobrir onde é que a minha mãe escondia os presentes, escassos mas nem por isso menos esperados. Cada qual tem as suas preferências e havia um certo pai Natal de chocolate que eu sabia que só apareceria no dia seguinte.

Sou do tempo em que se deixava o sapatinho na chaminé. E esperava-se pela manhã seguinte, o dia de Natal, para abrir as prendas. Era uma noite muito mal dormida, uma pessoa não podia fazer a mínima cedência. Nunca se sabe. Não que a manhã fosse fácil para os adultos. Claro que a manhã não era fácil para os adultos.

Muito antes do Sol nascer, já eu tinha ido à cozinha, quero dizer, já tinha visto as prendas na chaminé. Era um momento de grande ambiguidade: era uma honra não ter sido esquecida pelo menino Jesus mas, de certo modo, uma derrota em toda a linha. Como é que, não havendo nada na chaminé à hora de deitar e não tendo eu pregado olho durante toda a noite, como é que as prendas tinham ido parar à chaminé e, vamos ao que interessa, dentro do meu sapatinho? Era altura de começar a acordar o resto da casa e a perguntar se podia abrir as prendas.

Verdade se diga que tudo isto levava o seu tempo. Eu não falava fluentemente, falava como podia, falava aos soluços. Arranques súbitos e hesitações injustificadas, idas para trás e para a frente - desde cedo soube que há palavras manhosas, traidoras, palavras sonsas, palavras pomposas, palavras que só existem para nos arreliar. Às vezes mais vale estar calado. Eram momentos de grande solidão.

Raros são os que estão dispostos a ser acordados de madrugada por uma criança. Ninguém está para ser acordado por uma criança gaga, que nunca mais dizia o que queria, como se eles não soubessem o que eu queria quando o dia de Natal começava. Mas não havia em nada disto má vontade, incompreensão ou negligência. Em minha casa só havia adultos e adolescentes, adultos e adolescentes cansados, que trabalhavam nas pedras e para quem os domingos e os feriados eram sempre uma espécie de milagre. Eu era a única criança, alvo de todos os mimos mas também de todas as partidas dos meus irmãos. Os meus irmãos gostavam particularmente de duas coisas: de dormir e de me contrariar. Ora, eu não gostava nada de ser contrariada. Ainda hoje não gosto.

23.12.09

mensagem em dezoito palavras

(pensamento nocturno:) escrever: feliz natal; (desenvolvimento:) feliz natal em várias línguas; (obstáculo:) isto não é papel de embrulho

22.12.09

o sábado antes do Natal

Quando eu era pequena o Natal era uma coisa simples e imensamente misteriosa, pelo menos na minha classe social era. O Natal começava no sábado antes da noite de Natal. Eu ia com a minha mãe à mercearia da vizinha Zefa, que era à entrada do bairro e fazia esquina com a Azinhaga dos Salesianos. A minha mãe ia-se aviar e eu ia com ela. Nunca me aborrecia.

Na mercearia da vizinha Zefa havia uns maravilhosos recipientes, expositores, não sei o nome, umas enormes caixas com leguminosas. Nada se comparava a uma tarde passada de roda desses expositores, com as medidas do feijão e do grão e do milho sempre a trabalhar, que cansaço. Ali, sem abrir a boca - eu era muito gaga -, aviava muitas clientes imaginárias, inclusivamente, às vezes, dava-me para ser um bocado mãos largas e punha no pacote imaginário uma medida mais um bocadinho, mas só cobrava uma medida. Quando me fartava das leguminosas passava para o bacalhau. O bacalhau era o produto mais perigoso de toda a mercearia, o bacalhau e o petróleo. Eu adorava ficar a ver as manobras da vizinha Zefa com a guilhotina, a cortar às postas o bacalhau e a minha mãe sempre a dizer "Maria sai daí, ó Maria saí daí". O sábado antes do Natal era um grande dia. O sábado antes do Natal era um dia bestial.

21.12.09

LA BELLA SIMONETTA

"...Assim o amor despediu o seu fogo
abrasador
de uns olhos tão doces que inflamam
o coração do homem.
Só por milagre não
fiquei, ao vê-la, reduzido a cinzas."

Angelo Poliziano (1454-1494)

18.12.09

mensagem em dezassete palavras

chove, chove, chove e nos vidros embaciados pode-se escrever coisas, o que parece tentador; mas o quê?

17.12.09

A 2ª lei da termodinâmica

Madame Castafiori foi testemunha num julgamento. Quando me telefonou disse: "Não acredito na juíza."

Como? "É como lhe digo, não acredito na juíza". Sim, já ouvi. Mas não acredita, o que é que isso quer dizer? "Havia de a ver, uma enjoada, muito novinha, cheia de gloss." Mas não acredita que a juíza conheça a lei? Não acredita que seja capaz de discernir um poucochinho? Ou não acredita que a juíza saiba fazer bacalhau à Braz? "Não desconverse, é só o que você sabe fazer, desconversar. Além disso, gosta muito deles, não é, os seus amiguinhos, os dos tribunais". E continuou, continuou.

Eu, pelo meu lado, remeti-me ao silêncio e comecei a pensar na única coisa que valia a pena pensar: no gloss. Comecei a imaginar a juíza lambuzada de gloss, eu embirro um bocado com o gloss, e até pensava que já não se usava gloss, pelo menos tanto gloss, ou que só se usasse na televisão. Estava eu na disposição de dar alguma razão a Castafiori quando recuperei a atenção e ouço a meio do monólogo que continuava imparável do outro lado do telefone: "A minha advogada para aqui, a minha advogada para ali-".

A sua advogada? interrompi imediatamente e sem qualquer ponta de arrependimento, oiça lá, mas você não era testemunha? "Era. Veja lá que nem sequer tinham uns banquinhos para nos sentarmos."

E Castafiori continuou, continuou. Mas algo me dizia que a conclusão (que só ocorreria meia hora depois e que meteu descrição da audiência e uma família ucraniana que ela, Castafiori, encontrou no corredor, mais uns senhores que lá andavam com umas capinhas pretas tipo zorro) seria como a 2ª lei da termodinâmica: há processos que só progridem num sentido, que são irreversíveis. A água não flui encosta acima. Em resumo, Castafiori não acredita na Justiça. E de certa maneira, agora que fui obrigada a pensar bastante sobre o assunto, sobre os banquinhos, os ucranianos e as capinhas, é bem feita: menos gloss e mais bacalhau à Braz e tudo seria diferente. Pelo menos era um princípio para enfrentar a crise da Justiça. Isso e uns banquinhos, claro.

16.12.09

mil

Este é o meu post número mil. Não poderei dizer com toda a segurança que não esperava chegar aqui quando, a 29 de Setembro de 2003, abri esta loja com start. Talvez sim, talvez não. Nessa segunda-feira ainda não tinha almoçado e, como se sabe, a fome aumenta a incerteza. Mas hoje que já almocei, e chove, e verifiquei que cheguei, estou contente e digo ainda bem. Sem a loja não escreveria como escrevo, não me teria deixado encantar pela fotografia, não teria tornado personagens as pessoas com que me cruzo, não teria lido certos poetas, não teria reparado em certos movimentos das sombras, nem em certas provocações, uma atmosfera, como esta travagem súbita que me chega agora mesmo da rua. Tudo isso aconteceu porque não estou sozinha. Não sei quantas pessoas visitam a loja. Tirei o contador há muito tempo. Mas a todas estou grata pela atenção e a amabilidade com que entram e saem. Se outra vida houver para além desta, lembrar-me-ei da loja como uma das belas aventuras que não vivi em vão.

15.12.09

(exactamente)

A natureza, ao que parece, é o jogo popular
para milhares e milhares e milhares
de partículas que jogam o seu jogo infinito
de bilhares e bilhares e bilhares.
Piet Hein

14.12.09

Ora aí está

A menina quer saber mais alguma coisa? Eu nasci em Celorico da Beira, concelho de Celorico da Beira, mas estou aqui há muitos, muito anos, tantos que podíamos dizer como se dizia quando eu andava na escola - o tempo pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem e o tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem. A menina quando eu vim para aqui ouvia-me dizer isso e queria dizer como eu dizia mas enganava-se sempre quando chegava à segunda parte do tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem. Enquanto estava na pergunta a coisa vai que não vai mas quando chegava à resposta espalhava-se ao comprido, com licença da menina. Não percebia que a pergunta era a mesma que a resposta ou que a resposta era a pergunta, mas a menina nessa altura era ainda muito pequena e não tomava muita atenção no que dizia, ou tomava de mais porque se a gente se põe a pensar espalha-se, a arte do artista está em seguir o ritmo e a partir daí não há coisa mais fácil de dizer que essa do tempo pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem e o tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem. Mas isso já foi há que tempos e nem eu sei bem porque é que vim agora com esta conversa sobre uma coisa tão antiga como esta do tempo em que andava na escola e até parece que estou a ouvir a voz da minha professora, já lhe falei dela, não falei? Era a Dona Arlete dos olhos azuis, a minha professora chamava-se Arlete, eu acho que já nem há esse nome, que isto dos nomes é como as modas das saias compridas e das saias curtas, não sei se me explico, para depois andarem de toda a maneira e feitio. Até em Celorico da Beira é assim, que eu bem as vejo na televisão. Ora aí tem uma grande coisa - a televisão! Estava-me a perguntar que grandes coisas é que tinham aparecido durante a minha vida e eu digo-lhe mais essa, ora aí está. A menina quer saber mais?

11.12.09

bens e males

Pensar nos proprietários de coisas. Quem o disse? Só ter bens, só ter males.
BREVES NOTAS SOBRE AS LIGAÇÕES
Gonçalo M. Tavares

10.12.09

inícios (23)

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus; e a tarefa do monge fiel seria repetir cada dia com salmodiante humildade o único imodificável evento cuja incontroversa verdade se pode asseverar.

O NOME DA ROSA
Umberto Eco

9.12.09

inícios (22)

Foi no Domingo de Páscoa que se soube em Leiria que o Pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia.

O CRIME DO PADRE AMARO
cenas da vida devota
Eça de Queirós

8.12.09

utilidades

Hoje de manhã, ao acordar, tive o seguinte pensamento: as janelas embaciadas estão cheias de poesia e de impressões digitais. Mal sabia eu que uma constipação me impediria de produzir outro que fosse. Comi sopa e arroz branco, feijão com atum e salsa picada; ao lanche, pão com pesto. Também bebi chá e dois cafés para ver um filme e vários episódios armazenados na zonbox. Os dias inúteis têm a sua utilidade.

7.12.09

às vezes

Às vezes na biblioteca pego em livros de que não percebo nada, népia, zero. Isso não me pára. Zero. Não devemos recear os livros. Às vezes gosto apenas de lhes tocar, de passar os dedos pela capa. Às vezes é só por causa duma palavra e, às vezes, nem é preciso ser uma palavra, basta-me a forma da letra. O de hoje tinha no título a palavra "mimésis". Chamava-se "Mimésis e Negação". Via-se logo que não era coisa para mim. Peguei-lhe.

À terceira ou quarta folha encontrei uma dedicatória: "Em memória de José Marinho, Mestre de Verdade, que conversava à noite com os anjos e de manhã não acreditava neles". Este livro estava-me destinado, embora não o consiga ler. Sei lá eu o que é a Negação. Anjos e caixas de fósforos, estrelas e neblinas.

4.12.09

sennep

Parti hoje um pequeno vaso em porcelana que tenho há anos e que nunca utilizei a não ser para guardar as pilhas descarregadas. Era um recipiente peculiar, uma espécie de chávena de café sem pega. Nunca soube o que significava a palavra que ressaltava no branco sujo, impressa a azul, em letras largas: sennep. Hoje não resistiu a uma arrumação mais temperamental e caiu no soalho sem apelo nem agravo, como diria o Gabriel Alves. E quando apanhei os fragmentos tive uma sobressalto antes de despejar a pá em que os recolhi. Parei, voltei a fechar do balde do lixo e não resisti a juntar os restos, e formei quase letra a letra a palavra que remediava estava: sennep. Sennep quer dizer mostarda em dinamarquês. Só o soube esta tarde.

3.12.09

distinção

No seu círculo de amigos discutia-se se ele era ou não gay . Ninguém se admirou quando o distinguiram com o grau de gay honoris causa.

2.12.09

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
Carlos Drummond de Andrade

1.12.09

le rouge absolu

Quem pensa que um pacote de açúcar só de açúcar é feito engana-se. Temos o acúcar, temos o pacote, temos sabedoria popular e por pouco não temos Nara Leão. "Para limpar nódoas de batôn passar um algodão embebido em éter"- chave d'ouro dixit. Que aventuras estas ao balcão do Lido, que saudades que eu já tinha de ler pacotes de açúcar. Amanhã volto outra vez.

30.11.09

divagação

Verão rima com Teerão, noite com escuridão, tanto tempo o tempo tem.

27.11.09

problema

Uma pessoa que pára de escrever por não ter a caneta certa não pode ser levada a sério.

26.11.09

s/título #1



25.11.09

mensagem em desasseis palavras

é tão complicado fazer a trouxa e zarpar, é tão complicado subtrair o mapa aos despojos

24.11.09

cenas nocturnas



IMG_6511.JPG; IMG_6563.JPG© fatima ribeiro2009

23.11.09

sensibilidades

- Ainda há curso de Botânica nas Universidades?
Foi assim que Castafiori me interpelou ontem há noite. Eu estava quase a deitar-me, estava cansada, estava chateada. E também não gosto que o telefone toque a partir das onze. Respondi.
- Não sei. Jardins botânicos sei que há.

Castafiori ignorou o meu tom e continuou, o que, como se verá, pode ser perigoso.
- Estava aqui preocupada com a evolução das plantas. Será que a linha evolutiva das plantas é a mesma que a do homem?

Eu fiz de conta que não percebi, o que não andava longe da verdade, mas ela continuou:
- Sabe como me custa adormecer com uma pergunta na cabeça e todo o dia a pergunta de vez em quando, zás, a aparecer-me, 'tá a ver?
- A um domingo?
- O que é que tem o domingo, não é um dia igual aos outros?

Sinceramente, já começava a ser demais.
- Não, é domingo.
Disse eu, e contei com que qualquer pessoa perceberia que eu não estava com disposição para conversas. Nunca me passou pela cabeça que Castafiori me respondesse:
- Sabe, se ocupasse a sua mente com coisas mais importantes que jogos de palavras talvez conseguisse fazer alguma coisa da sua vida!

Ora bem, também eu tenho a minha própria sensibilidade. Contive-me, apesar disso.
- Isso é uma crítica?
- Não, mas gostava que por uma vez respondesse a sério.
- Ai é? Então olhe: Darwin, esse nome diz-lhe alguma coisa? E a viagem do Beagle, etc , etc?
- Etc, etc? Mas você está mal disposta?
- Por acaso até estou. Hoje é domingo e o Benfica perdeu.
- Ah, já me podia ter dito, não é? E perdeu com quem?

"Já chega! ", pensei, era o que me faltava perder e ainda ter de falar de futebol com Castafiori, daqui a nada está-me a pedir para lhe explicar a lei do fora-se-jogo. Respondi secamente:
- Com o Guimarães, para a Taça.

Preparava-me para me despedir e deixar o incidente desvanecer-se por si. Castafiori não conhece, porém, qualquer espécie de silêncio tácito. Por isso, ouvi-a dizer:
- Que se lixe a Taça. Durma bem.

20.11.09

bosque inglês

Queria ter um lago de peixes vermelhos como a Virginia Woolf, e queria um jardim e uma boquilha onde pudesse fumar cigarros violentos; podia inclusivamente ouvir Debussy e pensar de um modo mais sistemático porque não? "What a born melancholic I am!"

19.11.09

mensagem em quinze palavras

era uma vez um cão, era uma vez um ão, era uma vez um não

18.11.09

mensagem em catorze palavras

foi lá e veio fazer o quê bateu com a cabeça nas paredes figurativamente

17.11.09

ontem à tarde






IMG_6101.jpg; IMG_6113.JPG;IMG_6118.JPG; IMG_6129.JPG

16.11.09

Romântica FM

Às segundas de manhã, oiço a Romântica FM. A Alice chega e sintoniza. Nada como começar a semana com uma direcção, uma pista decisiva. O Top Romântica nunca falha. Hoje é segunda-feira. A Alice não veio. Logo hoje que chove e escureceu às duas da tarde e há musgo pelas paredes dos prédios.

15.11.09

domingo à noite

farta de me ver reflectida na janela, fecho a cortina

13.11.09

alta tensão

eu gosto dos venenos mais lentos
dos cafés mais amargos
das bebidas mais fortes
e tenho
apetites vorazes
uns rapazes
que vejo passar
eu sonho
os delírios mais altos
e os gestos mais loucos
que há
e sinto
uns desejos vulgares
navegar por uns mares
de lá
você pode-me empurrar p'ro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.

BRUNA LOMBARDI

12.11.09

mensagem em doze palavras

passou pesarosamente pela porta porém parece pormenor parcial para posterior pesquisa pá

9.11.09

paradis.16.

7.11.09

paradis.15.


IMG_5974a.jpg© fatima ribeiro 2009

6.11.09

5.11.09

paradis.13.


IMG_5829a.jpg© fatima ribeiro 2009

paradis.12.


IMG_5713a.jpg© fatima ribeiro 2009

4.11.09

3.11.09

31.10.09

paradis.9.


IMG_5430a.jpg© fatima ribeiro 2009

30.10.09

paradis.8.


IMG_5368a.jpg© fatima ribeiro 2009

29.10.09

paradis.7.


IMG_5326a.jpg© fatima ribeiro 2009

28.10.09

27.10.09

paradis.5.


IMG_5176a.jpg© fatima ribeiro 2009

26.10.09

24.10.09

23.10.09

22.10.09

paradis.1.



IMG_4934.JPG© fatima ribeiro2009

a esteira

Só há uma coisa que Castafiori odeia tanto quanto as comédias: o sushi. Para começar, detesta a mostarda wasavi. Para começar, não está mal. Depois não pode com aquela algazinha preta. Ninguém imagina como a enerva a algazinha. A única coisa a que Castafiori admite achar graça é à esteira, 'esteirinha' como ela diz.

21.10.09

audio

Pombos na rua, gatos nas traseiras e no café uma torrada a sair e na minha imaginação pouca terra pouca terra pouca terra. Recuo sem parar.

20.10.09

estação das chuvas

Está a chover. Não se fala noutra coisa.

19.10.09

o sonho

Ontem de manhã lembrei-me de lhe telefonar. Mais valia que não me tivesse lembrado. Foi uma imprudência, eu sei, mas não podia adivinhar. Percebi-o assim que ouvi Castafiori do outro lado do telefone: "- Estava a sonhar com Nova Iorque", disse-me ela com voz de domingo à tarde . Dentro da minha cabeça ainda hesitei, mas as palavras já estavam no ar, previsíveis como a água que chega à foz do Hudson : "-Mas você nunca esteve em Nova Iorque", ao que ela ripostou triunfal: "- Mas vejo muita televisão".

16.10.09

mensagem em onze palavras

três latas de atum, três sílabas; juntar as claras em castelo

15.10.09

FOLHA

Mudei de estação: o Outono ficou para trás e as minhas malas.
Agora o céu é duvidoso, como uma mentira inábil.
Na primeira taberna terei de esquecer
A carta melancólica que me tirou o sono.
Ocioso, arrasto-me pela rua, entre escritórios.
As andorinhas partiram e as máquinas de escrever ficaram.
No horizonte há uma grande trombeta de fumo.
Foi há pouco inventado um avião tão pequeno como uma borboleta.
Bravo! É um bom sinal.
A primeira folha de Outono cai no meu chapéu.

RADE DRAINAC
Sérvia, 1899-1943

Trad.: J.A.Oliveira
"Rosa do Mundo"
Assírio&Alvim

14.10.09

com a janela aberta

As pessoas não estão habituadas a que se diga: 'não, não é essa a pergunta'. Erradas só as respostas. Ou então dizem 'não é essa a pergunta' mas apenas para escolher a pergunta que caiba na sua resposta. Não deixam de ter uma certa razão. Porque uma outra atitude exigiria ter de começar pelo princípio e, muitas vezes, o princípio já não existe. É preciso, então, inventar outro princípio. E isso ainda dá mais trabalho.

9.10.09

visões subterrâneas




IMG_4329.JPG/IMG_4355.JPG/
IMG_4376.JPG/IMG_4379.JPG© fatima ribeiro2009

8.10.09

que confusão!

estranha impressão esta de fotografar a preto e branco em digital: o display está a preto e branco e uma pessoa olha para o objecto fotografado, olha para quem está ao lado, olha para quem está atrás, imagina quem vai chegar e tudo é a cores, nada é a preto e branco. nada excepto o display da máquina; vou tentar explicar.

hoje pela primeira vez fotografei a preto e branco com uma máquina digital. claro que já o tinha feito em película. a última vez há exactamente dez anos, no funeral de Amália. desde então, raramente fotografei em película. aliás, antes do digital, raramente fotografava o que quer que fosse. entretanto, as minhas gatas, uma delas ou as duas, não sei, resolveram o assunto por mim, e pim, pam, pum, deitaram a máquina ao chão. quilharam a objectiva, nobre nikon. não lhes perdoei completamente, mas hoje reconheço-lhes alguma razão, uma sabedoria no gesto, digamos. rendi-me ao digital. mas sempre a cores. excepcionalmente, terei passado uma ou outra para preto e branco à posteriori.

um dia destes pensei, soterrada numa nostalgia bem comportada: tenho saudades do preto e branco, vou tirar umas fotografias a preto e branco na digital, deve ser giro. foi hoje. procurei no menu e mudei o menu. eis-me então à janela, virada para as traseiras, com uma correnteza de casas, de sol, de nuvens, de roupa estendida e um assobio masculino e luminoso nuns andaimes mais abaixo. uma cena lisboeta. tirei umas fotografias e logo aí comecei a sentir-me muito esquisita, mas mesmo muito esquisita. olhava para o display da máquina e faltava-me o azul do céu, o branco das parabólicas, o traço a verde das escadas de serviço, faltava o armazém, e até os gatos vadios se tinham escapado sem um olhar.

na máquina convencional, pelo visor eu via as cores, e se olhasse para o lado, para cima, ou se fechasse os olhos, eu continuava a ver a cores. só depois via a preto e branco o que a película tinha registado. na digital, pelo display, eu vejo logo a preto e branco, tudo e todos, não me posso queixar, mas a realidade apresenta-se logo transformada e eu transtornada, para me ficar pelo fim do alfabeto.

apanhei o metro turvo e disparei, disparei e voltei a disparar. sempre a preto e branco, e sempre a verificar o que já sabia que ia encontrar: tudo estava a preto e branco e, todavia , eu via a cores, eu vejo a cores. quero explicar e não consigo, é estranho, não tem importância, é infantil, como repetir palavras até à exaustão, até que percam o sentido, desassossega, faz-nos duvidar. experimentem. é quase kafkiano.

7.10.09

duas páginas

Hoje virei duas páginas na minha vida. A primeira, quando deitei fora os cupões de desconto do minipreço, meses de agosto e setembro, e que muita corrente de ar apanharam à entrada da porta. A segunda, quando mudei a lâmpada do tecto do meu escritório. Estou à espera do resultado dos testes com carbono 14 para saber quanto tempo o tecto esperou para estar iluminado. Isto - duas páginas num dia só - pode querer dizer duas coisas: ou que a minha vida vai mudar ou que eu vou mudar a minha vida.

6.10.09

pólo

A quantos quilómetros fica o círculo polar ártico? Quando lá chegar hei-de ouvir o vento, tenho quase a certeza que vai fazer uma ventania desgraçada, e hei-de levar uns phones também. Uns phones não pesam quase nada e Deus queira que eu não me esqueça deles porque quando lá chegar hei-de ouvir a Amália cantar e sempre é melhor ouvir a Amália cantar nos phones do que só dentro da minha cabeça, porque quando lá chegar, que disso não restem dúvidas, a Amália vai comigo. A Amália vai comigo para todo o lado.

2.10.09

preferências

Sempre preferiu o sol à lua, o verão ao inverno, o café ao chá, os cães aos gatos, a tempestade à neblina -, mas gostava de ver o outono a aproximar-se.

1.10.09

novas oportunidades

"Votou e andou" foi o que eu escrevi sobre mim mesma - na terceira pessoa, como fazem os jogadores de futebol nas conferências de imprensa e os utilizadores do Facebook para descrever o seu estado -, domingo passado, dia de eleições. Votou e andou. Esta frase teve algum sucesso junto dos meus amigos.

Os galos não são modestos. Pelo menos, os do horóscopo chinês. E das capoeiras que conheci - evoco aqui as minhas origens rurais - não recordo, de facto, galos modestos. Nós os galos não somos modestos. Não é, pois, de admirar que tenha pensado que ali estava um slogan quase perfeito. Votou e andou.

Talvez a explicação esteja no facto de me ter tornado espectadora agradecida da série "Mad Men", que o canal 2 transmite nas noites de sexta-feira. Talvez o meu agradecimento revista a humana forma da imitação. O certo é que dei por mim ontem, no intervalo de um desafio de futebol, a fazer zapping e depressa cheguei a um produto impossível: como publicitar, junto duma audiência portuguesa, um canal russo sem legendas? "Veja o canal vesti e não diga que vai daqui. Posição 236 na zon tvcabo. Quem está zon está mesmo zon". Agora é só trabalhar na ideia. Não faltarão compradores, tenho a certeza.

30.9.09

momento

Via os carros a abrandar e continuei a olhar, a olhar. Estavam quase parados, os carros; tinham parado e eu continuava a olhar. Não sabia o que fazer. Foi um momento, maior que um relâmpago, menor que o seu som, só durou um instante, mas foi o suficiente. Estava numa passadeira. As passadeiras servem para atravessar. Atravessei.

29.9.09

mensagem em dez palavras

saltou a mensagem em dez palavras como saltava à corda

28.9.09

motivação

Trim. Trim. Trim.
- Sim?
- Boa tarde. Fala do citi. Posso falar com a dona fulana de tal ?
- Do citi? Qual citi?
- Do citibank. Como está dona fulana de tal?
(pausa, A conta mentalmente até cinco)
- Estou bem, obrigada. (sem pausa; em tom seco) Diga então o que é que quer?
- Dona fulana de tal, o meu nome é sicrana de tal, mas deixe-me dizer-lhe antes que esta conversa poderá estar a ser gravada por motivos de segurança-
(A interrompe B)
- Por motivos de segurança? Mas eu não tenho nada a ver com o Citibank, pois não?
- Queria dar-lhe conta de uma promoção
(A interrompe B, novamente)
- Ficamos por aqui. (a rosnar) Por motivos de segurança.

Depois de desligar, A esteve tentada a ligar para a esquadra e perguntar se tinha havido algum assalto ao citibank.

25.9.09

diálogos

Não paro de me inspirar nos diálogos das novelas:
"- O que é que tens?
- Nada. Porquê?
- 'Tás diferente. Passa-se alguma coisa?"

É tão bom ter a televisão ligada.

24.9.09

outro tempo qualquer

Às vezes penso que poderia viver em África, terra que me encantou como nenhuma outra, e que poderia desaparecer em África e que isso seria um final, um final sem ser um fim, que é como eu acho que devem ser os finais. Então eu desaparecia e pronto. Quando conheci África, apenas uma parte dela, num outro hemisfério, num outro oceano, pensei logo em largar o passado e prender-me ao futuro: eu poderia morrer ali, ali estava uma terra onde eu podia morrer. Não estou a ver maior elogio que alguém como eu, que já nasceu, possa fazer. Ou então podia ser a América latina. Não seria a mesma coisa, mas agora que estou a ler "O Velho expresso da Patagónia" tornou-se uma hipótese. Penso na Guatemala, no México, na Argentina, tudo belos nomes, e eu gostaria de morrer debaixo de uma bela palavra. Podemos ou não desaparecer sob as belas palavras? Aparentemente sim e eu digo sim. Mas pergunto-me se aguentaria o anonimato dessa morte. E quem diz o condicional diz outro tempo qualquer.

22.9.09

Jorge de Sena, poema de 1965

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amor o amor de amar não sabem

como não amam se de amor não pensam

os que amar o amor de amar não gozam.

Amor, amor, nenhum amor, nenhum

em vez do sempre amar que o gesto prende

o olhar ao corpo que perpassa amante

e não será de amor se outro não for

que novamente passe como amor que é novo.

Não se ama o que se tem nem se deseja

o que não temos nesse amor que amamos

mas só amamos quando amamos ao acto

em que de amor o amor de amar se cumpre.

Amor, amor, nem antes, nem depois,

amor que não possui, amor que não se dá,

amor que dura apenas sem palavras tudo

o que no sexo é o sexo só por si amado.

Amor de amor de amar de amor tranquilamente

o oleoso repetir das carnes que se roçam

até ao instante em que paradas tremem

de ansioso terminar o amor que recomeça.

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amar o amor de amar não amam.

Jorge de Sena,

Peregrinatio ad loca infecta

21.9.09

adeus Lucas



Morreu o Carlos Lucas, electricista. Ia fazer 42 anos. O seu nome pode ser encontrado no genérico de fim de muitos filmes portugueses.

18.9.09

loja chinesa

Hoje duas desilusões na minha loja chinesa da Morais Soares: não encontrei nem champô para cabelos brancos - sim, deixei de pintar o cabelo - nem uma protecção para o cotovelo - sim, um desconforto que me persegue há alguns dias. (Sim, tudo sinais de envelhecimento). Que maçada! Quem me dera chamar-me Liú. Liú quer dizer salgueiro. O salgueiro é uma árvore que cresce mesmo plantada ao contrário. (Mas o que é que isto tem a ver com a desilusão? ) É muito perigoso procurar champô numa loja chinesa.

17.9.09

caril

À primeira garfada, ficar com o nariz a suar. Nisto consistia o critério decisivo na prova do caril, segundo o velho senhor. As meninas sensíveis comem arroz branco.

16.9.09

biografia

Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-te na luz, no mar, no vento.
Sophia de Mello Breyner Andersen

15.9.09

ovo estrelado

Ontem apanhei uma grande arrelia. Ontem apeteceu-me um ovo estrelado. Raramente como ovos estrelados. Mas ontem era dia de ovo estrelado. Estava-me mesmo a apetecer. Andei a manhã toda com água na boca. E quando a hora de almoço chegou por volta da uma da tarde estava pronta para comer um ovo estrelado. Ao partir a casca tive um pressentimento. Infelizmente já era tarde. Bem me esforcei para impedir que o ovo se pegasse à frigideira. De nada me serviu. Como é que o fundo daquela frigideira já estava naquele estado?! Contrariada, comi o espectro dum ovo estrelado. Eu não mereço uma coisa destas, pensei. Deu-me uma veneta e saí para comprar uma frigideira. Só para ovos estrelados. É pequenina, diz que é anti-aderente, é muito querida. E ai de quem lá cozinhar outra coisa sem ser um ovo estrelado! Vou estreá-la em breve. Ontem já não deu. Já tinha comido um ovo estrelado feito em fanicos. Espero que tenha sido o último.

14.9.09

de regresso

De regresso a casa, hoje ao acordar deparei com uma obra num dos prédios do lado direito das traseiras. Andaimes, pedreiros, berbequins, cimento, cimento, histórias talvez.

12.9.09

ó tempore

O mundo está a mudar. Hoje, queria dar um mergulho e não havia uma onda.

11.9.09

manhã

Nevoeiro. Esperar pela tarde. Com vento, com sol ? Afastar a chuva do pensamento é suficiente. Por agora.

10.9.09

bacalhau uma vez mais

"- Porque será que o bacalhau do Natal não é igual ao outro?" Com esta interrogação, a mulher do lado pôs-me em sentido. Ali estava uma observação perspicaz.
Não foi tão feliz uma das amigas cujo contributo para a tertúlia foi este: "- Será por ser bacalhau da época?"
A terceira interveniente, ainda aqui não citada, não se conteve - e eu acho que com uma certa razão - e disse: "- Da época? Mas há bacalhau da Noruega todo o ano."

Estava dada a volta à mesa. A primeira tomou a palavra, como era devido: "- Aliás, o meu falecido pai até comprava bacalhau inglês."

9.9.09

hesitante

Não sei, não sei. O mar puxa, o mar chama, o mar enrola. O mar é frio.

8.9.09

no ar

Na mesa ao lado, numa esplanada sobre o mar, na praia da Apúlia:
- ó maie, olha um abioue taue grande!

7.9.09

sol e sombra

Ofir-Apúlia-Ofir. Contra-relógio Matinal. Para lá pelo lado do Sol, para cá pelo lado da Sombra. (À Noite logo se vê).

4.9.09

uma boa notícia

Hoje acordei em Ofir com raios de sol reflectidos na parede branca do quarto. Pouco passava das oito da manhã e abri a janela. Pareceu-me que nestas circunstâncias era a única coisa a fazer.

3.9.09

palavra do dia

vaginha | s. f.
(vagem + -inha)
s. f.
Mad. Bot. O mesmo que feijão verde.

Confrontar: vagina.
flip

1.9.09

palavra do dia

talingar | v. tr.
(talinga + -ar)
v. tr.
Mar. Alar ou ligar com talinga.

talinga | s. f.
(origem obscura)
s. f.
Mar. Cabo; amarra.

28.8.09

três canadianas e um bacalhau

O velho agarrado às duas canadianas caminhava ao lado da velha, que só tinha uma canadiana. Mas o que dava nas vistas era o bacalhau, o bacalhau inteiro que a velha levava na mão livre, à saída do Lidl, em dia de promoções. Fiquei a ver as suas figuras desenhadas pelo Sol ainda agreste. Lá iam eles, os velhos, as canadianas e o bacalhau seco. Pus-me a imaginar só os velhos e as canadianas. Desolação. Tive pena dos velhos. Não podia ser.

Acrescentei-lhe o bacalhau. Agora sim. O bacalhau tinha mudado tudo. O bacalhau muda tudo.

27.8.09

Infância

Eu gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".

Guilherme de Almeida
(Brasil, 1890-1969)

26.8.09

ementa

Vou fazer fanecas com arroz de feijão. "Ah faneca!" ou "Há faneca", ou até "À faneca" - eis a questão.

25.8.09

o cão cantor

Encontrei um cão na papelaria chamado Sting. Mas não cantou. Pelo menos enquanto eu lá estive.

20.8.09

mensagem em nove palavras

atenção máquina do tempo arranca sem aviso prévio stop

19.8.09

lapsus linguae (INVERSO)

o INVERNO também é verdadeiro

18.8.09

instantes decisivos

Estava eu a ver o dvd de "Slinding Doors", com Gwyneth Paltrow, quando Castafiori chegou a minha casa. Tínhamos combinado ir ao King ver um filme francês. Castafiori gosta do cinema francês. Não sou eu que a vou criticar. Eu também gosto. Mas Castafiori tem outros gostos para além do cinema francês.

Vou dar um exemplo: chega sempre, pelo menos, meia hora antes. Irrita. Irrita um bocado. Pelo menos a mim irrita-me. Não tanto como se chegasse meia hora atrasada, mas irrita ficcionar-se assim um atraso que não existe, uma transferência. Uma pessoa sente-se culpada, sente que está atrasada, o que não está certo, porque simplesmente eu não estava atrasada. E para mais, num domingo quente como o domingo passado, o que é que se vai fazer meia hora antes para o King? Mas eu só queria acabar de fazer o que estava a fazer. Foi isso que lhe disse. Talvez um pouco secamente.

Castafiori sentou-se um bocadinho contrariada. Puxou de um leque. Puxou do telemóvel. Puxou dum jornal. Os domingos em Lisboa são puxados. Mas os gestos e fragmentos vão-se extinguindo. Começo a sentir o peso duma certa quietude. Pelo canto do olho, pude constatar que Castafiori estava a ver o filme, com a Gwyneth Paltrow. Eu também estava a ver o filme, com a Gwyneth Paltrow. OK. Não deixava de ser intrigante, os segundos passavam e Castafiori sem dizer palavra. Tudo tem uma explicação e ela chegou:
- Não me importava nada de ter uma carinha assim.
Eu olhei para ela. Mas ela não me estava a ver. Continuou:
- Uma sarda aqui, uma sarda ali.

Gostei do detalhe. Voltei ao filme. Já agora acabava de ver o filme antes de me enfiar numa sala escura a ver um filme francês num domingo de Agosto. Porém, tive dificuldade em concentra-me. Castafiori reincidiu:
- O que me vale é que com a idade fui melhorando.

17.8.09

linha vermelha

A linha vermelha esteve encerrada sábado e domingo, os dias em que se pode andar de bicicleta no metro. Desta vez pedalei ao longo do rio, entre o acesso à expo e alcântara. O nosso rio é lindo. Não falta nem versos imortais no alcatrão nem jovens remadores sob a ponte, não falta nada ao nosso rio e na minha terra não corre nenhum rio. Além disso a linha vermelha estava fechada.

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

O Tejo tem grande navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.

E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

ALBERTO CAEIRO

14.8.09

mensagem em oito palavras

"Amor é fogo que arde sem se ver"

13.8.09

mensagem em sete palavras

vaidade, inveja, ira, preguiça, avareza, gula, luxúria

12.8.09

fidelidade

Vi o Puma Branca com umas adidas. Brancas.

11.8.09

mensagem em seis palavras e uma vírgula

unhas de gel, línguas de gato

10.8.09

as escadas

O pior são as escadas. Há escadas por todo o lado. Há escadas para sair de casa, para descer ruas, há escadas para contorná-las. Há escadas suspensas e escadas por debaixo da terra. Por exemplo, as escadas no metro. Escadas de mármore, escadas de metal, escadas de cimento, escadas proibidas, escadas permitidas. Não vale a pena perder mais tempo. Escadas é uma palavra bastante exacta. A vida de uma ciclista não é fácil.

7.8.09

"A GUERRA DOS BALCÃS"

Um homem velho e doente seguia por um caminho fora. Quatro rapazes assaltaram-no e despojaram-no dos seus haveres. O velho seguiu contristado o seu caminho. Mas no cruzamento seguinte viu, com grande espanto seu, que três dos ladrões assaltavam o quarto para lhe tirarem o produto do roubo. Este, no entanto, caíu no chão durante a refrega. Cheio de alegria, o velho juntou-o e apressou-se a sair dali. No entanto, foi detido na cidade mais próxima e levado à presença do juíz. Os quatro rapazes lá estavam e apresentaram queixa contra ele, agora de novo unidos.
O juíz, porém, decidiu da seguinte maneira:
O velho tinha de devolver todos os seus bens aos rapazes. "Caso contrário", disse o sábio e justo juíz, "os quatro indivíduos ali presentes poderiam causar distúrbios no país."

BERTOLD BRECHT
HISTÓRIAS DE ALMANAQUE

6.8.09

mensagem em cinco palavras

cinco vezes cinco vinte cinco

5.8.09

mensagem em quatro palavras

lentilhas negras, suores frios

4.8.09

mensagem em três palavras

Declaro que sorri.

2.8.09

jantar em Ayamonte

Encontrei-me com Castafiori no Algarve e fomos a Ayamonte jantar. Boquerones, champiñones, pimentada, gambas al alijo, queijo manchego, patatas bravas, yo qué sé. Depois do café, Castafiori declarou: " Chega de Espanha. Vamos para o nosso país".

1.8.09

adeus, cliozinho

Já passava das seis. Eu ia feliz. Janelas abertas, John Coltrane, calor, mapa dobrado, John Coltrane. Mas havia uma coisa a perturbar-me na estrada entre o Torrão e Vila Nova da Baronia, uma coisa que esvoaçava no carro, e que eu tentei imobilizar. Despistei-me. Um pontão de águas residuais no caminho, o alcatrão de novo. Tudo durou menos do que as palavras que usei na descrição. Não me aconteceu nada a mim. Ao cliozinho sim, é agora um VFV, um veículo em fim de vida, um veículo para a sucata. O meu clio era velho, já cheirava a gasolina, gastava bastante - era um 1400, 80 cavalos, 1992 - a tinta estava a estalar no capôt, mas tinha um arranque sensacional, um ar de classe em extinção e transmitia-me a ilusão de que poderia ir com ele daqui a Vladivostok. Era só querer. Não iremos a Vladivostok. Tudo e todos os que eu amo acabam no Alentejo. Eu sei que é estúpido dizer isto assim, mas eu amava o meu clio.

25.7.09

ir e voltar

IMG_0731.JPG© fatima ribeiro2009IMG_0731.JPG© fatima ribeiro2009
Agora que a rodagem acabou, vou uns dias para o Algarve, que é uma bela terra, com uma cor e um cheiro e um mar onde apetece estar, é um facto. À bientôt!