8.10.09

que confusão!

estranha impressão esta de fotografar a preto e branco em digital: o display está a preto e branco e uma pessoa olha para o objecto fotografado, olha para quem está ao lado, olha para quem está atrás, imagina quem vai chegar e tudo é a cores, nada é a preto e branco. nada excepto o display da máquina; vou tentar explicar.

hoje pela primeira vez fotografei a preto e branco com uma máquina digital. claro que já o tinha feito em película. a última vez há exactamente dez anos, no funeral de Amália. desde então, raramente fotografei em película. aliás, antes do digital, raramente fotografava o que quer que fosse. entretanto, as minhas gatas, uma delas ou as duas, não sei, resolveram o assunto por mim, e pim, pam, pum, deitaram a máquina ao chão. quilharam a objectiva, nobre nikon. não lhes perdoei completamente, mas hoje reconheço-lhes alguma razão, uma sabedoria no gesto, digamos. rendi-me ao digital. mas sempre a cores. excepcionalmente, terei passado uma ou outra para preto e branco à posteriori.

um dia destes pensei, soterrada numa nostalgia bem comportada: tenho saudades do preto e branco, vou tirar umas fotografias a preto e branco na digital, deve ser giro. foi hoje. procurei no menu e mudei o menu. eis-me então à janela, virada para as traseiras, com uma correnteza de casas, de sol, de nuvens, de roupa estendida e um assobio masculino e luminoso nuns andaimes mais abaixo. uma cena lisboeta. tirei umas fotografias e logo aí comecei a sentir-me muito esquisita, mas mesmo muito esquisita. olhava para o display da máquina e faltava-me o azul do céu, o branco das parabólicas, o traço a verde das escadas de serviço, faltava o armazém, e até os gatos vadios se tinham escapado sem um olhar.

na máquina convencional, pelo visor eu via as cores, e se olhasse para o lado, para cima, ou se fechasse os olhos, eu continuava a ver a cores. só depois via a preto e branco o que a película tinha registado. na digital, pelo display, eu vejo logo a preto e branco, tudo e todos, não me posso queixar, mas a realidade apresenta-se logo transformada e eu transtornada, para me ficar pelo fim do alfabeto.

apanhei o metro turvo e disparei, disparei e voltei a disparar. sempre a preto e branco, e sempre a verificar o que já sabia que ia encontrar: tudo estava a preto e branco e, todavia , eu via a cores, eu vejo a cores. quero explicar e não consigo, é estranho, não tem importância, é infantil, como repetir palavras até à exaustão, até que percam o sentido, desassossega, faz-nos duvidar. experimentem. é quase kafkiano.