25.6.11

analogia

quando não sei o que hei-de comer, digo que não sei o que hei-de comer, quando não sei o que hei-de escrever, digo que não sei o que hei-de escrever

23.6.11

entretenimento

Liguei a televisão e estava um gajo a dizer a uma gaja que a amava. Eu acreditei. Há pessoas que acreditam em tudo.

21.6.11

No meio do caminho tinha

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade

20.6.11

inícios (26)

Eveline sentou-se perto da janela espiando o anoitecer que vinha invadindo a avenida. Quando a sua cabeça tocou as cortinas, desprendeu-se destas um cheiro de tecido poeirento. Eveline sentia-se cansada.
"Gente de Dublin", James Joyce
(trad.: B. de Carvalho)

16.6.11

Passeio em Ponta Delgada (3)


Passeio em Ponta Delgada (2)

O todo e as partes - foi a primeira ideia que me atingiu quando, a uns metros de distância, avistei aquela árvore, uma árvore da borracha, uma ficus elastica, e como são bonitos os nomes da plantas em latim, como se o latim tivesse sido inventado para dar nome às plantas. E aos astros, e às cláusulas contratuais e aos 206 ossos do corpo humano. Mas aquela árvore, ficus elastica em latim, projectou sobre os meus passos uma imagem plena de completude e incompletude que me fez caminhar para ela. E, agora, que aquela imagem - a de um corpo aspirando, de braços estendidos, ao céu aberto e agarrando-se com todas as suas forças à terra que o sustém -, agora que aquela imagem me fez parar no caminho, tenho de pensar nela, nela na imagem, nela na árvore, como se fossem ambas uma coisa só.

Imaginou-a a crescer, sempre a crescer, a desenhar e a construir incessantemente o seu próprio corpo. Nasceu há muito mais anos do que eu e, salvo uma fatalidade improvável, ali viverá por muito mais anos do que eu viverei neste mundo. A natureza cria-se e recria-se em perpétuo movimento. Mas talvez haja um erro metodológico neste pensamento tão primário e tão civilizado. Não o erro de comparar-me a um ser de outra natureza, não esse, mas o erro de comparar-me a um ser que é muito maior do eu, seja qual for a natureza onde eu o quiser encaixar, essa mania humana a que ordinariamente recorremos para pararmos de nos interrogar, Nós, sim, nós, somos matéria que se pensa, e tu, ó árvore, o que és?

Aquela árvore abriga-me a mim e às formigas, alimenta-me a mim e às formigas, contempla-me a mim e às formigas. E não faz distinção entre mim e as formigas. Talvez por, na natureza, ser evidente como tudo e todos, incluindo eu e as formigas, acabamos, com maior ou maior esperança, em pó, que é uma forma suprema de harmonia.

"Serán cinza mas tendrá sentido,
Polvo serán, mas polvo enamorado".

Ah, a natureza, sim, a natureza, que belo princípio explicativo. Melhor que ele só há um outro, que nada explica e que tudo explica. Porque não sei como, e quem me dera saber, mas não sei como é que, quando estou diante dela - dela, da natureza -, não sei como não pensar na hipótese de Deus.

15.6.11

Passeio em Ponta Delgada (1)

Saio da Residencial Alcides. Atravesso a rua que tem o nome de um dos meus heróis, Machado Santos, e prossigo rente às paredes brancas. Vou pelo passeio do lado esquerdo.

Do lado direito as rodas dos carros roçam na berma e bastam os espelhos e os puxadores das portas para ocupar toda a largura do passeio, de tão estreito que é. São difíceis de utilizar os passeios da Pedro Homem. É assim que se chama a rua que eu melhor conheço em Ponta Delgada.

Vou então encostada ao passeio do lado esquerdo, também ele estreito, mas livre de estacionamento.  Quando um carro passa, viro-me ligeiramente para a parede, não vá o condutor confiar num golpe de vista menos feliz e arrastar-me com ele, como certos guarda-redes em tardes para esquecer.

Olho à direita e à esquerda. Parece-me que reparo sempre nas mesmas coisas: o post-it amarelo com a contagem da água, colado numa janela, o jardim botânico selvagem que cresceu nas ruínas de uma casa e que se pode observar por uma porta em vidro que, com as janelas, se mantém estranhamente intacta.

Ao chegar ao Rotas, o restaurante da Catarina, onde jantarei esta noite, consulto o menu afixado nas vidraças e atravesso a rua e, ainda a hesitando entre o risotto de cogumelos e o risotto de espargos, viro à direita numa travessa que me leva à Rua d' Agoa. Assim, com esta grafia, agoa. Não sei se por causa do nome, se por causa do trânsito se fazer em sentido contrário, sinto uma espécie de alívio. Posso caminhar com normalidade, um pé depois do outro. Mas esta tarde, em vez de, chegada ao cimo da rua, virar para o lado direito, como habitualmente, sigo em frente. Vou entrar numa zona desconhecida.

Observo uma casa antiga a desfazer-se e onde um placard de uma empresa de construção parece estar a mais, como uma piada de mau gosto. Ou talvez seja mais simples, um contrato-promessa por resolver, uma licença que tarda. Deve ter sido uma casa cheia de vida e poder. Gostava de conhecer o quintal, penso enquanto acabo de subir a rua. Terá provavelmente um limoeiro. Um limoeiro coberto de musgo, um limoeiro com limões, uns nos ramos por podar, outros no canteiro que o rodeia. Se eu tivesse um quintal havia de ter um limoeiro. Atravesso a estrada. E entro no Jardim. São dois euros. Felizmente tenho trocado. (cont.)

14.6.11

folhetim filosófico (3)

A todo o momento, em todo lado, com qualquer pretexto fabricamos sentido. Somos fabricadores de sentido. Pelo menos, os que nasceram no ano em que eu nasci. Nesse ano, nascemos e houve uma erupção vulcânica na ilha do Faial.

13.6.11

folhetim filosófico (2)

Então porque é que, não tendo como, os relaciono? Porque é que não deixo de os juntar mesmo que pense neles isoladamente?

12.6.11

folhetim filosófico (1)

No ano em que eu nasci, houve uma erupção vulcânica na ilha do Faial. Por mais que tente relacionar os dois factos não consigo. (continua)

4.6.11

filologia

culpa e dívida é a mesma palavra em alemão
schuld

3.6.11

reflexão

Tentei tirar nabos da púcara e saber em que partido votará Castafiori. Telefonei: - Então amanhã é dia de reflexão, disse eu, como quem não quer a coisa. Resposta: - Acha? Eu trago todo o ano um espelho na mala. Assim mesmo, sem dó nem piedade, sem apelo nem agravo, como se dizia na casa da suplicação e nos relatos desportivos, assim mesmo me respondeu Castafiori. Ou é da minha vista ou Castafiori está a tornar-se impertinente. Se é que não o foi sempre e só eu é que não via.

2.6.11

firefox

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