21.3.08

o paradigma

Hoje, eu e milhões de portugueses comeremos bacalhau. Deve ser por isso que, num inquérito realizado sobre as preocupações dos portugueses, os problemas ambientais ocupam a 2ª posição, muito perto da primeira (a violência). 21% versus 24%, segundo a investigação duma instituição universitária de ciências sociais. Li isto ontem, num jornal de distribuição gratuita, mesmo antes de chegar à estação dos Restauradores e ir à loja do cidadão levantar o bilhete de identidade. De tal maneira o estudo e a revelação tiveram impacto sobre mim que decidi ocupar a viagem de volta a pensar sobre 'o paradigma científico'. E já não apanhei o metro na mesma estação. Desci até ao Rossio. Obviamente precisava de apanhar sol antes de me pôr a pensar no paradigma. Ia quase a entrar no acesso pela Praça da Figueira quando olhei para a esquerda e me ocorreu: vou visitar a igreja de S.Domingos. E entrei. Eterna e efémera ali estava e ali fiquei numa paz momentânea vinda não sei donde e que a beleza assustadora da ruína parecia alimentar. Não voltei a pensar no paradigma. Só hoje voltei a pensar nele, quer dizer, no bacalhau.

20.3.08

à margem

E dou por terminada a minha visita a Marvão.
O nome de Carrilho Videira, que leio na esquina de uma rua, recorda-me tempos afastados, velhos tempos do apostolado republicano, ainda eu estudava medicina.
Por Cerros e Vales
Brito Camacho

Carrilho Videira, Marvão, 6 Novembro de 1845-Marvão, 25 de Agosto de 1905
Brito Camacho, Aljustrel, 12 de Fevereiro de 1862-Lisboa, 19 de Setembro de 1934

Eu, Carrilho Videira e Brito Camacho temos um caso. Um caso sem importância. Um caso. Gosto deles. É esse o caso. Eles não sabem. E eu própria mal os conheço.

Sei que são alentejanos e republicanos como eu. É pouco. Nunca serão marcos teóricos, vá (agora que começo a dar os primeiros passos na metodologia de qualquer coisa, convém-se praticar certos termos, ainda que a despropósito). Mas eu não me ralo com isso, quero lá saber que eles não sejam marcos teóricos. É um capricho que eu tenho, gostar de Carrilho Videira e Brito Camacho.

Não me vou esmifrar na argumentação. Admito que a minha relação com eles se resuma a uma palavra, talvez um pouco tonta para este efeito: simpatia. Pronto, já disse. É a minha forma de admiração histórica, ter assim uns heróis, uns heróis minoritários, quase esquecidos, os meus heróis de culto, que nasceram sob o mesmo sol que eu nasci, que respiraram o mesmo ar, o mesmo pó, que encontraram ao nascer uma paisagem onde interrogar os olhos.

E depois a minha rua tem o nome de um deles, vejo, pois, o nome de um deles colar-se a mim todos os dias; e de tempos a tempos folheio os livros de Brito Camacho e com ele parto pelo seu e nosso Alentejo, talvez na esperança de um dia escrever um argumento a partir daí.

E além disso, confesso, que remédio tenho eu senão confessar, quando se entra na espiral das confidências só resta esperar que não esteja muita gente a ouvir, Brito Camacho faz-me rir e é dos livros que as mulheres não resistem aos homens que as fazem rir. Mesmo agora, quando procurava as datas de nascimento e morte, fui ter a um link da revista da marinha portuguesa, onde é narrada, lá para o meio do artigo, a história do treino do leão.

19.3.08

páscoa

Ontem comi umas amêndoas tão boas, tão boas que as comi todas. Foi Madame Castafiori quem as trouxe. Madame Castafiori regressou.

18.3.08

às coisas simples

"A mútua transferência de direitos é o que os homens chamam contratos."

THOMAS HOBBES
Leviatã (1651)

13.3.08

sugestão

RECICLAJE

Mi aliento

corta el día en trozos

que la noche consume

VIVIANA BENZ, Chile

12.3.08

a sopa empresarial

Entrei. Eram duas da tarde e estava esganada, num estado de espírito só comparável ao da minha gata Mia quando lhe dou comida ligth.
- Tem sopa?
- Não. Mas temos sandes de fiambre, de queijo, de mortadela, de presunto, de paio, de salpicão, temos bifanas, pastéis de bacalhau, rissóis, croquetes, empadas, panados de perú e sandes de carne assada.
- Mas sopa não tem?
- Não. Nós costumávamos ter sopa mas agora não temos.
- Dê-me uma bifana.
- Quer mostarda?
- Não, obrigada. Empreste-me aí o Correio da Manhã, faz favor.

Espero pelo Correio da Manhã e pela bifana. Entra outro cliente.

- Tem sopa?
- Não. Nós costumávamos ter sopa mas agora não podemos ter. Só se for fornecida por uma empresa.
- Uma empresa de sopas?
- Uma empresa. Nós não podemos vender sopa feita aqui.
- E o que é que tem?
- Temos sandes de fiambre, de queijo, de mortadela, de presunto, de paio, de salpicão, bifanas, pastéis de bacalhau, rissóis, empadas, panados de perú e sandes de carne assada.
- E croquetes?
- E croquetes.
- Dê-me uma bifana.


Ouço o homem dizer "saem duas bifanas" e depois virar-se para mim:

- Tinha-me pedido o Correio da Manhã, não tinha? E para beber, o que é que vai ser, freguesa?
- Um copo de água. Respondi só com um bocadinho de vergonha. Interiormente já tinha justificado o pedido: aproveitemos enquanto se pode pedir um copo de água da torneira. Bem vistas as coisas, a minha atitude pode ser considerada uma atitude romântica.

11.3.08

o banquete

Uma, duas, três tolhas estendidas sobre uma, duas, três mesas coladas umas às outras. Chegaram os convidados que não eram três, mas um, dois, três vezes seis vezes seis. Feitas as contas faltava uma cadeira.

Não podia ser ninguém da família da noiva a ficar de pé. Tinham vindo de longe, do outro lado do país. Não que o país fosse grande, mas não ficava bem, os mais contundentes, os que têm sempre opinião, diriam até que ficava mal. A mãe e a avó do noivo estavam fora de causa, e os tios também: um era almirante, outro CO, outro desembargador. Nenhum deles podia ficar de pé.

Nem eles nem as respectivas esposas. Ainda se pensou no veterinário. Esperou-se por ele, esperou-se de pé, mas o telegrama chegou com palavras sucintas que diziam impossível comparecer vaca terminal felicidades. Não havia crianças, não havia antigos empregados, não havia amigos. Poder-se-á objectar, então se não vinha o tal da vaca terminal, sobrava uma cadeira e o equilíbrio orçamental entre as cadeiras e as pessoas restabelecia-se automaticamente.

Mas, mas, há sempre um mas a baralhar as contas, eis que aparece alguém, um colega do CO, um americano, o Joe. E as regras do equilíbrio orçamental dizem que as despesas ordinárias devem ser cobertas pelas receitas ordinárias e as depesas extraordinárias pelas receitas extraordinárias porque se se cobrissem despesas ordinárias com receitas extraordinárias, nos anos em que não houvesse receitas extraordinárias, havia o quê? Havia défice. E se se cobrissem despesas extraordinárias com receitas ordinárias, nos anos em que não houvesse despesas extraordinárias, havia o quê? Nada. Porque superavit é coisa que nunca há.

Não foi, contudo, preciso argumentar com a regra do equilíbrio orçamental, até porque o desembargador a quem coube explicá-la nem sempre se mostrou seguro e se há coisa embaraçosa é um desembargador embargado. Mas uma saltava diante dos olhos de todos: não se ia deixar em pé o gajo do FBI. Restava o noivo e o pai do noivo.

Quid iuris?

6.3.08

mí horóscopo

Abro o mail e vejo Tu horóscopo del jueves, 6 de marzo. Tem 4 frases, todas sobre o mesmo tema - a culpa. Em todas sou aconselhada a pedir desculpa por alguma coisa que fiz e que a outros afectou. Vejamos porquê: la culpa es básicamente una emoción inútil de la que deberías deshacerte lo más pronto posible.

5.3.08

infâncias

"- Tinha 6 ou 7 anos. Lembro-me de haver falta de pão e outras coisas." "- Então quantos anos tem?" "- 72." "-Não parece nada. Não parece mesmo nada. O senhor não vivia em Lisboa, pois não?""- Não, só vim para Lisboa em 52". "- Pois eu lembro-me bem. A Guerra acabou no dia 8 de Maio de 1945. Eu tinha 10 anos. Foi numa terça-feira".

A capitulação alemã foi assinada a 7 de Maio e o dia seguinte foi declarado como o dia da vitória na Europa, 5 anos, 8 meses e cinco dias depois do início da guerra que arrasou praticamente um continente - o nosso - e que só passada a primavera terminaria noutras paisagens, "Sem cor sem perfume, Sem rosa sem nada", num inesquecível verão radioactivo. Unforgettable é como se diz em inglês.

4.3.08

SE AMAS O NEGRO

SE AMAS O NEGRO
Se amas o negro
Das noites de orvalho
Abominas a manhã.
Se te perdes no vermelho da tarde
Suspiras à mesa
Afastas a taça
Dos lábios.
Se não amas os prazeres da caça
Não te seduz a fama
Nem o clamor das batalhas.
Se as flores murcham
No teu peito mais depressa
Do que é normal
O sangue invade-te
palpitante o coração.

Karoline Von Gunderode
Alemanha, 1780-1806

3.3.08