30.11.10

deambulação

Quem sabe quando. Quem sabe onde. Espero-te. A vantagem de não sair do mesmo sítio, esta espécie de passerelle, ter diante dos olhos um mundo que se apresenta já feito, a vantagem de não estar dentro é essa distância, essa mentira piedosa de pensarmos que dominamos e sermos dominados, de pensarmos que esperamos e exasperarmos. A chuva não melhora a visão. Decido aniquilar este momento e rodar sobre mim própria. Daqui vejo um prédio azul, e no rés-do-chão uma videira e isso, sim, melhora a minha visão, e vejo quatro calças de ganga a secar no estendal do primeiro andar e isso, sim, melhora a visão, e ouço um grito na rua e isso também melhora a visão. Deixar de pensar e deixar de esperar, e em seu lugar olhar pelas traseiras. Mas sempre no mesmo maldito sítio. A chuva volta. Não ouço nada. Só ouço a chuva. Não vejo nada, só vejo a chuva. Vou recomeçar. Um dia acerta-se.

29.11.10

bilhete simples

Quando o comboio parou na estação da Pampilhosa eu ouvia um samba. Tudo estava em ordem, o comboio cumpria a tabela, o sol aprareceu e desapareceu atrás das nuvens, alguns passageiros tossiram. Mas com Elis Regina não há sossego. Tentei dormir, tapei os olhos com  o cachecol, procurei o ângulo certo entre a cabeça e o ombro. Inutilidades de domingo. "Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós"

26.11.10

crise

fui ao mini-preço e esqueci-me dos cupões; atravessei a rua, estava  a chover; no caminho vi tudo aos tropelões; ó,  deixei cair o doce de framboesa; o prejuízo foi no total um euro e tal e o lucro cessante incalculável

25.11.10

lapsus (1)

Chris Marques

24.11.10

isto não é uma metáfora

Anda um bando de pássaros nas traseiras da minha casa. Observo-os em voo picado sobre os quintais. Fico assim por momentos, observadora de pássaros em dia de greve geral. Depois lembro-me das gatas e fecho a janela.

23.11.10

interrogação logo ao acordar

Que poderemos nós dizer para além das palavras usadas vezes sem fim? É preciso estar sempre a inventar.

22.11.10

falta

sem manteiga não há torradas

19.11.10

world music

Oiço ópera algures. O meu prédio não é muito dado à ópera. Vejamos. O andar de baixo, não desfazendo na ópera, põe Leonard Cohen acima de tudo. O primeiro, está silencioso desde que o cão morreu. No rés-do-chão varia-se bastante; mas não há perigo de confundir a Vitória de Los Angeles com nem eu sei quem, que também de óperas pouco cheiro. O andar de cima, isso sim, eu sei, prefere definitivamente frango no churrasco. E do quinto, não tenho notícias frescas. Mas donde é que virá o raio da música, que acaba de passar-me outra vez pelos ouvidos? Espera lá, espera lá, mas aquilo é a Carmina Burana, pois é, a Carmina Burana, ó se é, e eu quase a lançar-me numa teoria geral sobre o espaço e a multiculturalidade e vai-se a ver e o que estão a ouvir é a Carmina Burana. Por acaso até vem a calhar, até me resolve o enigma, sendo a Carmina Burana, pode vir de qualquer dos andares. Fortune plango vulnera. Olha e agora estou a ouvir o concerto de Aranjuez. Mas esta gente está a passar-se ou quê? Francamente, daqui a nada chega a vez do Rachmaninoff. E onde é que anda o kuduro e o forró?
(reflexão de ontem à noite, eram prá aí dez e meia)

18.11.10

momento

Ou baixo os estores ou páro de escrever. Não quero incomodar as gatas, animais mimados, sim, mas em cativeiro. Não posso tirar-lhes o sol que entra pela janela. E quererei incomodar-me a mim própria? O sol entra pela janela e eu vejo-me reflectida no écran do computador. Agora.

17.11.10

dito de espírito

"- Como tem andado? - diz o cego ao paralítico.
 - Como vê - responde o paralítico ao cego."

16.11.10

dois olhinhos a brilhar

"Já matámos a ratazana", li na parte de trás do envelope. Primeiro facto: onde dantes era o remetente, estava escrito "Já matámos a ratazana". Segundo facto: acordei. Estava a sonhar. Primeira questão, e, talvez, primeira conclusão: o segundo facto põe em causa o primeiro, anula-o, ou torna-o mesmo inexistente, passando por isso a ocupar o lugar do primeiro, quer dizer, passando de segundo para primeiro - e único facto? A verdade é que acordei, não descansada como devia, por alguém ter liquidado a ratazana, mas assustada. Talvez por saber que elas - as ratazanas - existem. Outras informações que poderão, quiça, esclarecer o caso: o recado foi-me deixado pelo primeiro andar; no meu prédio, que eu tenha conhecimento, não foi vista nenhuma ratazana; recentemente duas pessoas das minhas relações disseram-me ter visto ratazanas. Eu própria, há um mês, mês e meio, vi um animal minúsculo, que não reconheci imediatamente, admito, a entrar no Metro. Não era uma ratazana. Era um ratinho. Mesmo assim, senti um sobressalto. Foi um bocado humilhante. Em minha defesa posso dizer que não era uma ratazana mas era como se fosse. Cinzento, lustroso, com dois olhinhos a brilhar no cinzento do chão do metro, era uma ratinho, bem sei, mas raios me partam se não parecia uma ratazana, cinzenta, lustrosa, com dois olhinhos a brilhar no cinzento do chão do metro. São séculos e séculos a encaramo-nos uns aos outros.

15.11.10

advogados

Castafiori virou-se para mim e disse, De todos os homens que conheci o mais fiel tem sido o meu advogado. Disse-o com sinceridade e quando Castafiori quer ser sincera, é sincera. A emoção andou por ali. Isso fez-me recuar quanto ao menu. É que estávamos num restaurante e vi-me obrigada a afastar automaticamente a hipótese de pedir bacalhau. Teria sido uma comparação de mau gosto.

11.11.10

a fitinha

- Viste a minha fitinha? Se calhar perdi-a.
- A do cabelo ? Perdeste, perdeste. Tu não perdes nada.
- Já a tenho desde os 8 anos.
- Desde os 8?!
- E tenho este blusão desde os 13.
- Tchii. Eu já nem a dos 16 tenho.
- Sou muito apegada às cenas.
- Eu sou o contrário. Um dia destes fui ao hifi e li: feminino, 21 anos. Eu nem me reconheço. Continuo a pensar que tenho 16. Fazem de mim o que querem.
- Eu cá não. Dos 16 só mesmo a cena da roupa.
- Já encontraste a fitinha, eu não te dizia? Tu não perdes nada.
- Tinha caído. Vamos.

10.11.10

facebook

Só acreditei quando ele me disse:
- Há gajos de quem eu não seria amigo nem no facebook.

3.11.10

bens

É um bocado estranha esta sensação: parece que os livros nunca me pertencem. E, no entanto, recuso-me a separar-me deles. Quero-os, como meus, mas sinto-os de passagem, em trânsito, como se não me pertencessem. Talvez por isso raramente lhes ponha o meu nome.

1.11.10

poemas de amor

(...)
a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo que as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei
(...)
Samuel Beckett
(1936)
trad.: M.Esteves Cardoso