15.3.07

tribas e tribalistas (epis.101)

Subi até ao quarto andar num elevador com capacidade para 12 pessoas e carga máxima de 900 kgs. Faltava ainda um quarto de hora. Desde o dia em que o carteiro tocou duas vezes que eu estava decidida a fazer as coisas como deve ser. Não ia desperdiçar a oportunidade que o destino me dava e o destino tinha-me dado a oportunidade de ser testemunha ao ponto de me ter passado a ver como a testemunha. Daqui para a frente evitarei inclusive falar de mim própria na primeira pessoa. Do singular, esclareço. Convém esclarecer tudo. Quando uma pessoa está numa posição destas não pode deixar nada ao acaso.

No elevador a ATQSE, acrónimo de a testemunha que sou eu, dizia, mesmo no elevador a ATQSE manteve a concentração e só ao fim de segundo e meio é que reparou no Jeitoso com um CPC - código de processo civil, debaixo do braço. Junto do CPC tinha enrolada uma daquelas fardas pretas muito populares nos tribas. O Jeitoso teria pelo menos um metro e oitenta e seis, vestia um fato completo e por cima um anorak com a inscrição rugby portugal. Isto faz a fantasia de qualquer mulher mas ATQSE estava muito concentrada e quase não reparou no Jeitoso, embora tivesse reparado que não usava perfume. Lembra-se, isso sim perfeitamente, de uma personagem que entra à pressa no elevador cuja lotação, não sei se ATQSE já disse, é para 12 pessoas e a carga máxima 900 kgs. A Supracitada entra a correr e pergunta se alguém chamou o 6º. É preciso descaramento. Alguém chamou o 6ª? Se ninguém ia para o 6ª, como é que ela queria que alguém tivesse chamado o 6º ? Chamasse ela, não era ela que queria ir para o 6º? Para além dela, mais ninguém queria ir para o 6º.

Mas é claro que a Supracitada quando pergunta aquilo já se está a rir para o Jeitoso e o Jeitoso retribui-lhe os dentes à mostra. É nessa altura que ATQSE verifica que o Jeitoso não tinha uma voz por aí além. Porém, reconhece que aquela inscriçãozinha no anorak compensa largamente um timbre menos impressionante. Mas, ao contrário da Supracitada, loira, 30 anos, bem disposta daquele género dos programas matinais das rádios, ATQSE está absolutamente concentrada e quase nem repara que o Jeitoso desce no terceiro. Bem feita, pensou ATQSE, olhando para a Supracitada. ATQSE sai no quarto e nunca mais pôs a vista en cima do Jeitoso, nem da Supracitada nem do elevador. Exigia-se concentração. O destino não passa duas vezes pelo mesmo elevador.

ATQSE dorme mal no dia anterior, quer dizer, anterior ao dia que foi ontem, ODQFO. Há mais de um mês que o carteiro tinha tocado duas vezes. ATQSE acorda cedo. Tenho aqui uma cartinha registada. Os pensamentos sucedem-se a um ritmo incontrolável: o que é que eu fiz, o que é que não fiz, alguém me diga, mas tu tens a certeza que não fizeste nada, claro, ora aí está, não fizeste nada, pois não, ai não, pois não fiz nada, mas fizeste ou não fizeste, não, não fiz, é o que eu digo, aí está, tudo tem uma explicação, não fizeste nada, isso também está previsto e punido. PP. Felizmente a notificação judicial torna-a ATQSE. Mas não deixa de ser um aviso. Nessa altura começa a acompanhá-la uma certa inquietação.

É certo que ATQSE nada fez mas alguém fez, no caso, parece que não fez, não interessa, feita ou não, a coisa existe, ou não existe, e nesse caso é uma coisa inexistente, mas que existe como coisa inexistente. Diante da incerteza e dos outras mariquices há séculos que a justiça divina pediu auxílio à imaginação das plantas e animais, minerais e vegetais para poder ajudar os que vão morrer a distinguir o que se faz e o que não se faz, o que se deve fazer e o que não se deve fazer. Assim foram criados os tribunais, daqui para a frente designados por tribas.

Estas reflexões terão tranquilizado por mais de uma ocasião ATQSE mas, como se verá já a seguir, muito superficialmente, pois chegada a este ponto, ATQSE cai no pecado da dramaturgia clássica em que se viciou há largo tempo e vai entrar em confidências. Temos então ATQSE a declarar neste preciso momento que passou parte da sua juventude ao lado dessas plantas e animais, minerais e vegetais que tentam discernir e fazer-nos discernir o que se faz e o que não se faz, o que se deve fazer e o que não se deve fazer. Tudo isto in illo tempore. E mais confidencia ATQSE que viveu, e quiçá ainda viva, ou mesmo que viva cada vez mais, perseguida por essa espécie de dívida para com todas as plantas e animais, minerais e vegetais que tentam discernir e fazer-nos discernir o que se faz e o que não se faz, o que se deve fazer e o que não se deve fazer. Mas atenção, se ATQSE é capaz de confidenciar isso não é, contudo, capaz de reconhecer isso. ATQSE é o género de pessoa que usa um fio com um crucifixo e diz que não é católica.

Como também se pode verificar aconteceu o previsto. A porra da dramaturgia clássica dá sempre para o sentimento. Ora acontece que ATQSE não é uma sentimental. É nessas circunstâncias que percorre o corredor com um OPI na mão, o post-it que tinha colado atrás da porta da rua desde o dia em que o carteiro tocou duas vezes e onde assentou a marcador e letras bem legíveis vários números, todos eles correspondentes a alguma coisa. ATQSE detesta escrever coisa inúteis. Assentou então: a data, a hora, a vara, a secção, o processo, a referência, e um nome. Mas porquê o OPI ? Avisada como é, ATQSE receou que a notificação se extraviasse, o que veio a acontecer efectivamente. Por isso, quando no dia, que foi ontem, ODQFO, saíu de casa ATQSE leva consigo um post-it, o post-it, OPI.

Mas leva apenas o OPI? Mas não, claro que não. Nesta altura ATQSE imagina-se LTQJS, isto é, imagina-se francesa a dar esta resposta. Em francês, esclareça-se. Convém esclarecer tudo. Mais non são palavras muito mais prolongativas, quero dizer expansivas, digo extensivas, digo já não sei o que digo, do que mas não, por isso, e por momentos, ATQSE teve necessidade de se imaginar francesa, o que a deixa um bocado perplexa, porque toda a gente sabe que ATQSE nunca gostou de franceses a tal ponto que quando visitou Paris, coisa que conseguiu adiar até aos trinta e muitos anos, então quando visitou Paris ATQSE exclamou: filhos da puta, esta merda é mesmo bonita, mas ATQSE não vai voltar a entrar em confidências. Já se viu que dão mau resultado.

ATQSE não leva, em resumo, apenas o OPI consigo. Quando saíu de casa ATQSE leva na mala: um porta chaves, uma carteira com os documentos do cliozinho, um player mini-disc sony, vários mini-disc uns sony, outros não, uns head phones, 2 cartões magnéticos de transportes públicos, uma embalagem de dez lenços-pañuelos de papel renova kid's mas só com dois lenços, um deles já usado, um porta moedas com vinte cinco euros também já usados, duas facturas, uma pen drive de 512MB misteriosamente desformatada, três esferográficas, duas azúis, uma encarnada, e um lápis Faber-Castell mordido pela sua gata Mia, uma garrafa de água de 33 cl , um postalfree com uma seta, a dizer cineuropa, si vous aimez le cinéma européen cliquez ici, um caderno quadriculado comprado no Lidl por causa do nome top secret, o 1º volume das peças de Harold Pinter, o livro os anões e outras peças de Harold Pinter, uma edição bilingue de poemas de Harold Pinter e vinte e duas páginas impressas numa HP Deskjet D2360, contendo diálogos para corrigir, escritos pela ATQSE à maneira de Harold Pinter, mas para melhor, claro.

Então e o telemóvel?

Pois é, a mim não me apanham, pensa ATQSE, enquanto sobe no elevador que, não sei se a ATQSE já disse, tem capacidade para 12 pessoas e carga máxima de 900 kg. O telemóvel, o jovem siemens, está no bolso, porque ATQSE é muito respeitadora dos tribas e dos tribalistas e, portanto, já tinha escolhido a opção vibras. Sem segundas intenções, que não as de participar na vida da cidade, e aposta que ao contrário da Supracitada que não deve ter mais nada para fazer a não ser entrar à pressa em elevadores, ATQSE chega com dez minutos de antecedência à porta da secção tal da vara tal e tal onde está o processo tal e tal com a referência tal e tal. Quando uma pessoa está numa posição destas não pode deixar nada ao acaso. ATQSE afasta a porta e entra.

(fim do primeiro episódio da primeira temporada)

13.3.07

o telhado em frente

O telhado em frente ao prédio de Madame Castafiori está em obras. As obras têm levado o seu tempo e nos meses que duram, e já são alguns, o que se pode dizer das obras não é muito. As obras têm estado quase sempre paradas. Telhas levantadas, algumas vigas à mostra, um andaime em bolandas, pouco avanço mas muito romance, enfim. Há cerca de uma semana, após dois meses de paragem, as obras recomeçaram. Madame Castafiori gosta de seguir as obras com os seus próprios olhos, gosta de apreciar os avanços e de criticar os recuos. Todos os dias ao fim da tarde, diz ela, olha para o telhado do prédio em frente. É uma rotina como outra qualquer. O mais provável é que goste de ver o azul do céu em contraste com as lusas telhas. Talvez. Mas isso em nada diminui o sentido prático que a caracteriza. Ontem, ao fim da tarde, vi-a chegar à janela, espreitar, parar três segundos e dizer: - Num dia inteiro de trabalho só fizeram isto? Depois, virou-se para mim e sorriu. Apesar de tudo, sempre me surpreende um bocadinho.

dentro das possibilidades

Tudo estava a correr bem. Dentro das possibilidades, tudo estava a correr bem. Se é que se pode dizer que tudo estava a correr bem quando se tem a cabeça cheia de tinta durante p'raí uma meia hora, e não estou a contar com quase p'raí mais outra meia hora que é quanto leva a aplicação da tinta.
Então, tudo estava a correr bem dentro das possilibidades. Ao fim dessa espera de meia hora, é preciso tirar a tinta da cabeça e como é preciso tirar a tinta, já que se tira a tinta, lava-se a cabeça, incluindo o cabelo e a tinta. Esta é uma parte muito agradável, mesmo muito agradável, porventura a mais agradável. Uma pessoa fica ali, de olhos fechados, de olhos bem fechados, a água é morna, às vezes fria, às vezes muito quente, mas acaba quase sempre bem temperada, agora está boa, sim, agora está boa, então a água é morna, e o shampoo, o shampoo não sei, pergunte, não é preciso, deve ser para cabelos pintados, claro, deve ser para cabelos pintados. Os dedos deslizam com suavidade às vezes, às vezes com firmeza, não vou esconder o que acontece, porque o que acontece é que, de olhos bem fechado, a água morna e umas unhas mais determinadas provocam uma sensação bastante agradável. Então estava eu nesta espécie de limbo quando se produz no ambiente uma brusca transformação.
A música, até aí a Adriana Calcanhoto mais a lição de francês, passa para um hit nacional que inclui na sua letra confissões como 'eu não sei o que me aconteceu, que feitiço é que me deu'. Não que o volume estivesse alto, ou a água subitamente esfriasse ou o manso arranhar me perturbasse o começo da tarde. Mas é que isto é o refrão e o refrão passa várias vezes e uma pessoa começa a ter alguma dificuldade em fingir que não está a ouvir nada, é que sim, está-se a ouvir, a ouvir eu não sei o que me aconteceu, que feitiço é que me deu.
Mas o verdadeiro problema, dentro das possibilidades que eu tenho em considerar isto um problema, aparece quando a rapariga começa a trautear o refrão, isto é, a cantar aos meus ouvidos eu não sei o que me aconteceu, que feitiço é que me deu. Não me queixo da afinação nem do timbre, não é bem isso, tenho até alguma dificuldade em explicar, mas dentro das minhas possibilidades pensei que eu não sei o que me aconteceu, que feitiço é que me deu começava a ser um preço demasiado alto para umas arranhadelas em água morna ao princípio da tarde. Mordi os lábios, abri os olhos e contei até cinco, um, dois, três, quatro, cinco, acho que já chega, hoje estou com pressa. E o creme? Raios partam isto, pensei, ainda falta o creme, tá bem, o creme, ponha lá o creme. E em silêncio acrescentei para mim própria: mas não cante. E o creme, sabe qual é o creme? Não, não sei, deve ser para cabelos pintados.

12.3.07

indignação

Eu estava na mesa. Tinha começado a ler "Um Mundo Sem Medo", de Baltasar Garzón. Então ouço o homem ao balcão. O homem estava indignado.' - Fui pedir um cigarro àquela otária e sabes o que é que a gaja fez ? Agarrou na carteira. A gaja olhou para mim e agarrou na carteira'. Intimamente, fiquei solidária. Voltei então a ler o princípio : 'Todas as coisas tem um começo e este livro também. Uma ideia pode surgir-nos em qualquer momento, em qualquer momento'. Assim são os posts.