13.3.07

dentro das possibilidades

Tudo estava a correr bem. Dentro das possibilidades, tudo estava a correr bem. Se é que se pode dizer que tudo estava a correr bem quando se tem a cabeça cheia de tinta durante p'raí uma meia hora, e não estou a contar com quase p'raí mais outra meia hora que é quanto leva a aplicação da tinta.
Então, tudo estava a correr bem dentro das possilibidades. Ao fim dessa espera de meia hora, é preciso tirar a tinta da cabeça e como é preciso tirar a tinta, já que se tira a tinta, lava-se a cabeça, incluindo o cabelo e a tinta. Esta é uma parte muito agradável, mesmo muito agradável, porventura a mais agradável. Uma pessoa fica ali, de olhos fechados, de olhos bem fechados, a água é morna, às vezes fria, às vezes muito quente, mas acaba quase sempre bem temperada, agora está boa, sim, agora está boa, então a água é morna, e o shampoo, o shampoo não sei, pergunte, não é preciso, deve ser para cabelos pintados, claro, deve ser para cabelos pintados. Os dedos deslizam com suavidade às vezes, às vezes com firmeza, não vou esconder o que acontece, porque o que acontece é que, de olhos bem fechado, a água morna e umas unhas mais determinadas provocam uma sensação bastante agradável. Então estava eu nesta espécie de limbo quando se produz no ambiente uma brusca transformação.
A música, até aí a Adriana Calcanhoto mais a lição de francês, passa para um hit nacional que inclui na sua letra confissões como 'eu não sei o que me aconteceu, que feitiço é que me deu'. Não que o volume estivesse alto, ou a água subitamente esfriasse ou o manso arranhar me perturbasse o começo da tarde. Mas é que isto é o refrão e o refrão passa várias vezes e uma pessoa começa a ter alguma dificuldade em fingir que não está a ouvir nada, é que sim, está-se a ouvir, a ouvir eu não sei o que me aconteceu, que feitiço é que me deu.
Mas o verdadeiro problema, dentro das possibilidades que eu tenho em considerar isto um problema, aparece quando a rapariga começa a trautear o refrão, isto é, a cantar aos meus ouvidos eu não sei o que me aconteceu, que feitiço é que me deu. Não me queixo da afinação nem do timbre, não é bem isso, tenho até alguma dificuldade em explicar, mas dentro das minhas possibilidades pensei que eu não sei o que me aconteceu, que feitiço é que me deu começava a ser um preço demasiado alto para umas arranhadelas em água morna ao princípio da tarde. Mordi os lábios, abri os olhos e contei até cinco, um, dois, três, quatro, cinco, acho que já chega, hoje estou com pressa. E o creme? Raios partam isto, pensei, ainda falta o creme, tá bem, o creme, ponha lá o creme. E em silêncio acrescentei para mim própria: mas não cante. E o creme, sabe qual é o creme? Não, não sei, deve ser para cabelos pintados.