20.6.10

RIP Saramago

Há precisamente um mês que José fora convidado. Acabou por aceitar. Por isso não percebeu o porquê daquela espera. Não estava certo. Ele, José, embora não aspirasse a toda a cerimónia, não renunciava a toda a cerimónia. Gostava de ser tratado com alguma cerimónia. Era um homem claro. Sentia-se enfadado, ali, como se estivesse num corredor da misericórdia, como um vegetal, uma maçã calibrada. Mas não precisou de invocar qualquer protocolo para desfazer o enfado. Ouviu uma voz. Tomou-a como a voz de Deus. Era com Deus que o encontro tinha sido marcado. Nunca antes ouvira a voz de Deus mas nem ele, José, duvidou por um instante que fosse de Deus a voz que dizia: não te enfades, José, a tua hora está a chegar. E a partir do momento em que José se levantou sumiram-se-lhe as palavras. Deus ainda brincou: o gato comeu-te a língua, José? e José ainda sorriu, mas já não foi capaz de explicar porquê, nem para quê, nem para quem. Também o elementar se fora com ele.

Deus é cruel como as crianças e as crianças caprichosas como os gatos. Mas nem uns nem outros amam as palavras como José, porque só José ama as palavras como um deus. E era precisamente isto que Deus tencionava dizer-lhe. Não disse. Só pensou. E José não ouviu. Nessa noite já não sonhou com Deus. Sonhou com o sabor dos pêssegos e com o rio que passa na sua aldeia. E pronunciou uma palavra que ninguém conhecia e descreveu uma cidade coberta de cinza e imaginou um grande pássaro sob um céu descoberto. Foi tudo.