17.12.03

relatório médico-legal

Uma pessoa deita-se descansada e, quando acorda, os problemas são mais que muitos. Fui à cozinha e não havia pão. Pelas vidraças da marquise, vi que o dia estava muito, mas mesmo muito mal encarado. Na rádio, um comentador com voz fúnebre analisava o caso da absorção da Somague por um grupo espanhol ( aliás, com o sugestivo nome de Vallehermoso), dando razão a uma amiga de Madame Castafiore que acha que o outro lado da fronteira tem como desígnio nacional vingar 1640. Mas o melhor estava para vir: a prova de que a jovem Mia não gosta do Natal.

Espalhados pelo chão, e olhando-me com ar de poucos amigos, como se eu lhes devesse dinheiro, todos os berloques e bonequinhos com que alguém resolveu decorar as portas da casa. O felpudo pai natal, fabricado na china, metia dó. Não darei pormenores. Direi apenas que estava reduzido a algodão e pequenos fios encarnados, quer dizer, estava esventrado. Os raminhos de azevinho, à primeira vista sem danos de maior, não aguentaram um exame mais profundo, quer dizer, estavam estraçalhados. As árvores de natal feitas de pasta de papel e feltro dourado estavam irreconhecíveis, quer dizer, feitas num oito. Um massacre. Só não percebi por que terá escapado o barrete do pai natal.

E para acabar a manhã em beleza, quando procurei "A Estepe", minha companhia de ontem à noite e que adormeceu ao mesmo tempo que eu, não a encontrei. Procurei debaixo das almofadas primeiro, debaixo da cama depois, e acabei por me resignar. "A Estepe" desapareceu durante a noite. Não estou certa que tenha sido a Mia. Inclino-me mais para a Vera. A Vera é uma gata rebelde e anda farta de ver o amanhecer da janela de um 3º andar. Também eu, Vera, também eu. Por isso, aqui fica o aviso: "A Estepe", uma novela do meu mais que tudo Tchekov, vai ter que estar na almofada ao lado da minha depois do Académica-Benfica. Tens sete horas, Vera. Nem mais um minuto.