3.5.05

a mulher da pradaria

A minha vizinha do andar de baixo, em linguagem de arrendamento urbano, a minha vizinha de baixo, detesta as chamadas tarefas domésticas, ou a lida da casa, como lhe chama a mulher do rés-de-chão do prédio ao lado, dona dum gato pardo que observa o universo enquanto ela ajeita um gancho. Ao pressentir a minha passagem, dirá: ai menina que dores nas costas, estou a ver que não acabo a lida da casa, dixit. Não sei bem porquê, também eu prefiro a expressão, talvez por me fazer lembrar o Lidl, instituição tutelar da minha vida doméstica.

Pois ela, a minha vizinha de baixo, não gosta de cozinhar, pois ela não gosta de aspirar, pois ela não gosta de passar a roupa a ferro, pois ela não gosta de pôr a loiça suja na máquina nem sequer de rodar o botão para pôr a máquina a trabalhar. Não, não e não, três vezes não, não as vezes que for preciso, a minha vizinha de baixo detesta as tarefas domésticas.

Há todavia uma coisa que a minha vizinha recomenda às empregadas que não façam, que nunca obriga as filhas a fazer, há uma coisa que a minha vizinha de baixo não dispensa, uma coisa que adora fazer: estender a roupa.

E como é que uma coisa tão básica, não sei como dizer, porque é que uma coisa tão simples, e às vezes tão irritante estatisticamente, sobretudo para quem deixa cair mais de quarenta por cento das molas, como é que uma coisa tão Caneças look pode deixar a minha vizinha de baixo à beira de um êxtase um pouco menos que celestial?

Interroguei-a a esse propósito.

Ainda não caí em mim. Não que a explicação não tenha lógica, claro que tem. Mas fui apanhada de surpresa. E senti-me mesmo um nadinha estúpida. É assim que eu me sinto sempre que as explicações não me passam pela cabeça. Estúpida, estúpida, estúpida. Bastava ter parado por um segundo, claro que tem lógica, e mais, muito mais do que lógica: tem um potencial poético merecedor da atenção dum poeta, pelo menos, portuense, e embora padeça de algum desfasamento geopolítico e embora historicamente deslocada a explicação faz sentido, eleva o horizonte estratégico de um prédio que, sem isso, se diria vulgar, cria todo um ambiente que em muito ultrapassa a velha polémica do caixote do lixo (afinal, quem põe o caixote do lixo da rua e quem repõe o caixote do lixo no prédio, eis a questão), um pathos, uma âncora de sugestão que me pode deixar assim, pouco precisa e volátil, mas que confere à vida quotidiana do número 8 uma dimensão cósmica.

A minha vizinha de baixo adora estender a roupa porque se imagina nada mais nada menos do que na pradaria, repito, na pradaria.

Convém explicar que o nosso prédio se situa no topo de uma espécie de colina rectangular, cuja inclinação ligeira nos põe, repensando agora todas as coisas, a nós, número 8, acima dos outros mortais, e suficientemente longa para não vermos a mulher do prédio do extremo oposto a sacudir o pó, quer dizer, o número 8 tem horizontes.

Ao entardecer, o céu fica laranja, rosa, salmão, conforme as leis e os caprichos da natureza. Os aviões rasgam o mundo diante dos nossos olhos com uma frequência que nos poderia servir para aulas práticas, caso quiséssemos ali instalar uma escola de controladores aéreos.

Os elementos que o nosso prédio atrai enchem a nossa glamorosa vida de contemplação e aventura. O vento faz baloiçar as cordas das roupas e desde logo as próprias roupas. Costumo ser fustigada, enfim, não eu pessoalmente, mas os vidros da minha marquise, com os lençóis do andar de cima. Há um, sobretudo um, verdinho com umas risquinhas branquinhas que me põe doida, talvez sejam as bainhas com excesso de dobras, sei lá, as operárias têxteis já não são o que eram desde que ao pesadelo das falências fraudulentas se veio juntar o pesadelo chinês. O tal verdinho bate com tal impacto nos vidros que nos dias de maior ventania penso seriamente num seguro de vida ou mesmo numa extensão ao seguro de acidentes de trabalho, já que a lida da casa também é trabalho.

Bom, mas não quero entrar em polémicas jurídicas e volto à minha vizinha de baixo. Ao entardecer, não há cá soturnidades nem melancolias tais. Ao entardecer, há apenas roupa lavada, seca ou húmida, mas não roupa metafísica. Ao entardecer, no nosso prédio, há uma bela vista sobre a pradaria e, se acaso alguém, entrando pela cozinha adentro, perguntar à minha vizinha de baixo debruçada sobre o estendal:

- Então o teu cowboy está para chegar?

ela responderá com a coragem resignada de um certo tipo de mulher da pradaria:

- Hoje é dia de índios.