29.10.03

efeitos colaterais

“O fumo contém benzeno, nitrosaminas, formaldeído e cianeto de hidrogénio”. É o que está ali escrito, ali, mesmo à minha frente no Ventil Ligth, ao lado de duas chávenas de café. Pelo sim, pelo não, verifico se no pacote de açúcar há algum aviso. “Desejamos-lhe um óptimo café Nicola”, “açúcar granulado distribuido por Nutricafés”, “consumidor@nutricafés.pt”, “Empacotado por:sugapack”. Do outro lado do pacote uma grata surpresa matinal: “Se um Nicola agrada a muita gente, dois Nicolas agradam a muito mais”, assinado: Bombeiros AutoEuropa. Aparentemente o pacote de açúcar não contém nenhum aviso. Azar o meu: fumo e não ponho açúcar no café quando o que estaria certo seria não fumar e pôr açúcar no café. Vou passar a estar mais atenta aos avisos. É que há efeitos colaterais verdadeiramente devastadores. No trabalho, por exemplo. Ando a registar num caderninho azul petróleo com espirais pretas palavras que nos saem da boca para fora em ocasiões de abuso de trabalho:

.ao telefone (no quarto, a olhar para o despertador a menos de 6 horas da alvorada, converso):
- E que nome é que destes ao gato?
- Ramesés.
- RAM quê?
- Ramesés, a dinastia dos faraós, não conheces?
- Conheço. De nome.

.na rua (de regresso ao hotel, pergunto):
- Vais jantar?
- Não sei. Eu chego ao quarto e penso: deixa-me tomar banho que eu vou morrer.”

.no carro (por volta da meia-noite, a caminho do restaurante, sob chuva intensa, com a janela aberta, respondo):
- ´tás com calor?
- Preciso de apanhar ar. Tenho o cérebro um bocado acamado.

.na carrinha (à hora de almoço, antes de recomeçar a trabalhar, ouço):
-E o teu namorado donde é? Não é de lá?
-Não.
-Não me digas que conheceste o gajo na noite?! Que horror!

.no bar do hotel (fora de serviço, sem empregado, apenas com as cadeiras disponíveis, após 18 horas de trabalho, um estagiário que não se quer sentar):
-Desculpem lá, mas eu ainda não percebi: o que é que vocês estão aqui a fazer?

.no mesmo bar, pouco depois, alguém que chega atrasado:
-Fazer cócó é tão bom!

A minha vida está cheia de benzeno, nitrosaminas, formaldeído e cianeto de hidrogénio. Mas está cheia de pessoas e isso dá-me prazer. Não sei se poderá parecer pretensioso escrever que viver é um vício. Teria que pensar melhor no assunto. Pensar cansa, como diz o Fernando. E viver também cansa, como diz o José. E fumar também cansa, digo agora eu a olhar para a folha de serviço. Começo a trabalhar daqui a uma hora. Interior/Exterior - Noite. Até amanhã.