19.3.09

na serra

Fui à serra da Lousã. Estive colada ao céu, estive lá no cimo, num caminho de torres eólicas imaginei-me a atravessar La Mancha. Desci, e bebi uma água das pedras. Só depois de ler os conselhos da dica da semana visitei uma ovelhinha com a idade de dez dias. Mas o que eu queria contar era que a Primavera chegou.

18.3.09

'horses'

Quando Patti Smtih canta, uma pessoa fica com vontade de ter a sua voz, uma escrita, um palco, correr à campa de Rimbaud e pedir-lhe iluminação para cantar 'horses'.

16.3.09

ouvir e escrever

Não consigo escrever. A francesa do lado oposto do jardim fala desesperada ao telemóvel. Eu ouço. Uma outra mulher, agarrada a um homem em sandálias, cinquentas, alemão, solta risos volumosos, nervosos, desafiadores talvez, não sei, talvez ela pense que sim, talvez ele pense que sim, não sei. Eu ouço.

13.3.09

inícios (23)

E alguém disse:
Fala-nos do Amor.

Khalil Gibran
'poemas de amor e abandono'
(vários; colectânea), edições A Mar Arte, 1999

12.3.09

(a casa onde)

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
lido em livro de João Barrento, de que não me lembro do nome

6.3.09

sobre a paciência

Fragmento do diário de Elf - Empregada de Loja Fina:

"De Kafka não tenho nada a dizer", disse Sartre. Mas depois não foi capaz de ficar calado. Constato isso ao ler um dos livros que uma cliente aqui deixou. A cliente escreve online e prepara uma tese intitulada 'criador e criaturas', acho e, se acho, é porque não tenho a certeza. Eu gosto de certezas. A culpa não é minha. A cliente é de poucas conversas.

Não gosto de poucas conversas. São más para o negócio, são más para a auto-estima e, além disso, fazem mal à pele e ao couro cabeludo. A prova é a cliente - a Fuínhas. A Fuínhas não tem um ar saudável. Muito magra, aqui e ali uma espécie de escamas à flor da pele, e uma indesmentível ruga a anteceder o olhar. A Fuínhas anda sempre com livros, parece que o corpo já não suporta a ausência do papel impresso. A Fuínhas só consegue um brilhozinho nos olhos quando encontra outro cliente também com um livro agarrado ao corpo. De preferência, uma cliente, já reparei.

Primeiro pensei que a Fuínhas olhava para elas por causa do corte das saias, do padrão dos lenços, dos colares, do gloss, mas depois processei as ligações, no dia em que ela cá apareceu com uma amiga. Hoje sorrio da minha ingenuidade. A amiga da Fuínhas é gira, speedada, toda ela Hermès. Uma amiga... Perceber o que é que a Fuínhas vê na Hermès é simples, até eu vejo. Perceber o que é que a Hermès vê na Fuínhas é que não é nada simples. Não admira que a Fuínhas se esqueça do Kafka em cima do balcão.

Umas horas depois telefona-me (a Fuínhas). Antecipei. Eu gosto de antecipar. Tenho mesmo convicções fortes sobre a antecipação. Antecipo sempre, mas dou uma pequena margem de contra-antecipação, neste caso sob a forma de um ponto de interrogação: 'já sei, já sei, é por causa dos livrinhos sobre Kafka que a Sôtora cá deixou? Não se preocupe que estão guardados'. A voz da cliente - voltou a ser a cliente, agora que já desabafei, o meu registo mental de clientes organiza-se em 'antes do' e 'depois do' desabafo e 'segundo o' desabafo, mas sempre por ordem alfabética -, então a voz da cliente mudou quando eu insisti, momentos depois, sobre os 'livrinhos', claro que os tinha guardado, sobre o 'Kafka', claro que estivesse descansada. E a voz da cliente, quer dizer o tom, o não dito, ainda mudou mais quando acrescentei, antes de desligar: 'se quiser posso entregá-los à amiga da sôtora, se a amiga da sôtora passar por cá primeiro que a sôtora, claro'. Quis ser prestável, concisa e produtiva. Se a cliente sobreinterpretou é com ela. Pode sobreinterpretar sentada porque claro que eu vou continuar a ser prestável, concisa e produtiva com qualquer cliente, incluindo ela, Fuínhas, a sôtora.

Não sei se pelo travo de contrariedade, se pelo apelo do conhecimento, nesse mesmo dia, antes de fazer a caixa, passei pela bibliografia perdida e pus-me a ler Kafka aos bocadinhos. Kafka lê-se muito bem aos bocadinhos. Encontrei uma passagem à minha medida e pensei 'porque será que nos grandes escritores encontramos sempre passagens à nossa medida?' Contive-me, porém, e li, limitei-me a ler. E reli:

"Não é necessário saires de casa. Fica à mesa e escuta. Não escutes sequer, fica completamente quieto e só. O mundo oferecer-se-á para que o desmascares, não lhe resta outra coisa. Arrebatador, contorcer-se-á perante ti."

O meu cérebro começou a trabalhar: se eu substituir a palavra 'casa' por 'loja' e a palavra 'mesa' por 'balcão', ponho-me ao nível de Kafka. O meu problema é ficar quieta e só. Acho que não tenho paciência. Quererá isto dizer que estes diários nunca poderão concorrer com os diários de Kafka? E os Diários de Kafka foram escritos porque ele ficou quieto e só?"

Faz agora um ano que eu não punha os olhos em fragmento algum dos Diários de Elf. Conheci-a no Outono de 2007 e durante largos meses vieram-me parar às mãos, por meios que não interessa para o caso, fragmentos dos seus diários, escritos nos intervalos entre clientes. Depois, o silêncio. Nunca mais soube nada dela. Até que me deparei com este fragmento sobre a paciência (de Kafka). Receio não ter mais notícias de Elf nos próximos tempos. É um pressentimento. Esta comparação com Kafka não lhe foi particularmente favorável.

5.3.09

(queríamos ser)

Queríamos ser como as coisas de barro
No meio de
-----tanto
------ aço
---------sobre rodas

Reiner Kunke, para Jan Skácel
trad.: João Barrento ('Umbrais')

4.3.09

Tokio-GA

Estou no café. Faço um movimento trivial: olho à minha volta. Estou cercada por caixas-de-óculos. Eu própria sou uma caixa de óculos. Não sei porque me lembrei desta afronta infantil. Hoje estou muito infantil. Invejo os morangos que um dos caixas-de-óculos está a comer. Ele começou por lamber a colher, inclusivamente. Inclino-me para ler o título do jornal do homem da frente e soletro ainda inclinada: 'fis-co que-ri-a, não, cri-a, cri-a ca-das-tro-'. Agora já não me apetece ler. Agora quero-me ir embora, agora já não quero ir. Agora quero água, agora só falta atirar-me para o chão como o miúdo do metro no filme de Wim Wenders.

3.3.09

/ eixo cruzado:2



2.3.09

/ eixo cruzado:1



27.2.09

Otar Iosseliani

"P: Disse numa entrevista à Positif que o cinema o ajudou a ter uma consciência. Em que sentido?
R: Não foi isso que eu disse. Nesse tempo pensava que o único instrumento disponível era a consciência, que devíamos usar como uma ferramenta de trabalho. Algo como um bom Stradivarius, que tem que ser mantido com grande cuidado. Percebe-se depressa se o instrumento é mau, se soa fora de tom. O cinema não pode ajudar a manter este instrumento, e à medida que vai sendo utilizado o instrumento deteriora-se a pouco e pouco. A consciência é algo que temos de estar sempre a testar; de outra maneira não sabemos se a temos ou não. Uma das maneiras de testar a consciência é ter uma profissão que nos incite a perdê-la. O cinema é um ofício muito perigoso para a consciência. É como aquilo que aconteceu a Paganini quando teve que tocar só com uma corda. As outras tinham sido cosidas e, durante o concerto, rebentaram. Paganini continuou a tocar só com uma corda. Somos pressionados rumo ao conformismo, à deformação das nossas ideias e à sua adaptação às circunstâncias. às vezes somos obrigados, por falta de tempo, a negligenciar a clareza da linguagem, e tudo isto vai comendo a consciência. A pouco e pouco transformamo-nos num maestro preguiçoso, inchado de orgulho, altivo. E a nossa consciência diminui. É um bom exame, é como uma batalha constante. O cinema exige qualidades cavalheirescas."
"Otar Iosseliani"
Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

25.2.09

é carnaval

É Carnaval, ninguém leva a mal. Fui comprar batatas, venderam-me cebolas. Cá fora alguém gritou 'pópó!' Virei-me e vi uma motorizada ao ralanti. Cheirou-me a coentros, lembro-me perfeitamente - ou seriam pimentos assados? Tinha passado uma hora (e picos) desde que saíra de casa pela porta do quintal. A minha mãe ralhou comigo e mandou-me outra vez à mercearia na rua A. Desci a rampa ao pé coxinho. Era no tempo do escudo e eu levava três e quinhentos na mão fechada.

24.2.09

espólio encontrado

Um carro alucinado, um aviso, uma frase, uma constipação, uma canção brasileira, um castelo entre Limoges et Aubusson, um cartão expirado, 'quando eu morrer não quero choro nem vela quero uma fita amarela gravada com o nome dela'. Começando pelo princípio: um carro alucinado, comprado em segunda mão no stand das grandes oportunidades barra facilidades de pagamento ponto um quarto para as três vírgula circulamos com um atraso de dezoito minutos por causa dos trabalhos na linha fim

23.2.09

assim e assado

Um dia claro, mais claro do que o dia anterior, disseram-me, um dia frio, mais frio que o dia anterior, disseram-me, mais longo, do que o dia anterior, já sei, um dia não são dias.

20.2.09

perdida

Já viu, diz aqui 'Anita', diz aqui, 'estou perdida', viu? Pois. Ainda devem faltar aí uns dez minutos, sabe, ao domingo há menos autocarros, passa um assim para enganar e depois tem que se estar à espera não sei quanto tempo. E agora como é que vão encontrar o cão? Agora, olha, apanhem-no, sim, não sei se vão encontrar o cão, sabe-se lá por onde andará o cão, se calhar alguém já o apanhou, pode ser que alguém o tenha apanhado, não me admirava nada que alguém tivesse apanhado o cão. 'Tá aqui um número de telemóvel mas eu só pergunto: agora onde é que vão encontrar o cão? A cadela. Pois, a cadela. Eu não lhe dizia que isto ao domingo até que passe um vou ali já volto? Cá para mim, o cão está mas é na baixa, sabe, foi por aí abaixo, a descer todos os santos ajudam, não é o que se costuma dizer?, cá para mim está na baixa, vai ver. E se estiver na baixa o canil encontra o cão, o canil da câmara, a baixa também não é assim tão grande. Acha que aquele autocarro passa no palácio de justiça? Para onde é que quer ir? P'ra baixa.

19.2.09

nem tudo o que luz é piercing

Tinha um piercing na orelha direita, um piercing na orelha esquerda, um piercing no nariz. Vestia um casaco verde oliva o rapaz alto. Agora todos os rapazes são altos e, alguns, usam piercings. Muitos também vestem casacos verde oliva. Neste dia, os grandes botões cor de prata reflectiam a luz do sol que nos desamparou neste Inverno. Uma espécie de perdão, por assim dizer.

17.2.09

POSTKARTEN

tudo começou com uma história estúpida de sobretudos trocados
no restaurante Rosetta: (e com aquela tua corrida cega, para lá dos
escritórios
da Alitalia, distraída, abstrata):
eh, não há muito que rir, minha querida,
a nossa identidade, as nossas roupas, os sinais particulares, os pontos
de referência, a orientação, o bom senso:
(uma vez mais estamos perdidos
no mundo, cada um como pode: e como merece):(e se te escrevo
do aeroporto
de Capodichino, à partida para Amsterdão, com os voos AZ424 e
AZ382,
é já por pura superstição, ao fim e ao cabo; e não por outra coisa,
realmente, por nada):

EDOARDO SANGUINETI
trad.:Egito Gonçalves
Assírio&Alvim

10.2.09

FRANCÊS

Muitas vezes
são apenas três, quatro
palavras, como se já

não valesse a pena
continuar a falar
mas apenas

ficar ali
dar-lhe
as costas

para ele lhe
poder desapertar
o soutien

acaba de fumar
o Stuyvesant
a beata cheira

ao que cheiram as beatas
de cigarros, pensa ela
como é que se diz isto em

francês?


ROLF DIETER BRINKMANN
trad: Judite Berkemeier e João Barrento
"O Cinema em Palavras /Poemas-Piloto"
Fenda Edições

9.2.09

como se diz cinzento em alemão?

Nestes dias cinzentos, nos dias cinzentos como o de hoje, imagino-me na Alemanha - já estive na Alemanha no Inverno - e penso no dia da partida, no dia em que chegarei a Portugal, no dia da felicidade. Parece que é amanhã ou depois de amanhã, vá lá - voilà, em francês.

/a seta 1






DSCN9654© fatima ribeiro2009; DSCN9671© fatima ribeiro2009;
DSCN9672© fatima ribeiro2009; DSCN9675© fatima ribeiro2009

7.2.09

criptograma

cafe montanha
mesa 8 clientes 0
1 cafe 0,60
obrigado
pela visita
sab 07 fev 2009 11:24
foi atendido por: opera 2
nao serve de factura

5.2.09

follow me

Follow me, e repetiu baixinho, follow me. Olhou para trás, desiludido com a chuva torrencial. Que outra explicação poderia haver para estar só?

4.2.09

moleskine acabado- restos

a terceira lei da dinâmica de Newton:
"a toda acção corresponde uma reacção igual
e contrária, ou seja,
as acções mútuas de dois corpos
um sobre o outro são sempre iguais e
dirigidas em sentidos opostos", palavras do velho Isaac

(que nessa altura não era velho)

"migas ripadas"
seguido de receita,
(para experimentar)
"preconceitos/encaixar as coisas"
(story line)
login e password

um poema de Ezra Pound
"From Another Sonnet"
(verificar)
919873347 alex ou é 96?

"nigeriano a vender girafas
à porta do luso-francês", ideia, sublinhada
leitura edp
próxima semana
o poema começa assim:

Thy Fingers move again
Teus dedos novamente percorrem
o meu rosto
(transcrição inacabada)
"Sobre o Amor e a Morte" 117.61/SUS
(requisitar)

taxi 8, 5 euros
ir e vir
"já fui a minha imaginação"
(procurar entrevista)
ler outra vez:

3.2.09

recomendação

A mulher explicou à empregada: "-Assim que como este pão faço logo, já há três dias que não fazia, não imagina, mas assim que o como faço logo; recomendo-o a toda a gente, e digo sempre: assim que como este pão faço logo". Eu pensei logo em dar-lhe os parabéns.

2.2.09

no sofá de Castafiori

Enterrada no sofá de Castafiori, jornal aberto, tédio à solta, ia desfolhando várias possibilidades de espectáculos. De vez em quando lia um título, um comentário, um horário, qualquer coisa que pontuasse uma "Traviata" de 58, cantada pela Callas no S.Carlos, e que já me estava a irritar. "O Estranho Caso de Benjamin Button"? "-Nem pensar", foi o comentário de Castafiori. "Frost/Nixon? A Duquesa"? Talvez. A Duquesa talvez, ouvia-a dizer.

"O filme conta a vida da Duquesa de Devonshire...que viveu de 1757 a 1806 -"(neste ponto sou interrompida) "-Não, não, não me está a apetecer ouvir pipocas no século XVIII". Sigo desalentada jornal fora. Talvez música ou dança a interessasse. Ora vejamos. Leio distraidamente: "procurámos criar emoções para as pessoas, fazê-las sentir. Sonhar um pouco. O mistério também tem o seu atractivo. E as pessoas entendem aquilo que quiserem-"(sou de novo interrompida): - "Ouça lá, está a ler algum programa do 9º ano?"

Tudo aquilo se começou a apertar à minha volta: a traviata, o estranho caso, as pipocas, as interrupções de Castafiori, a chuva, a vareta do guarda-chuva que tinha partido no dia anterior. Mas não me fui embora, sem a esclarecer: "Não. Estava a ler o anúncio dum espectáculo na Culturgest".