19.2.08

sobre a dogmática (diários de Elf)

O Cliente é um pequeno investidor dum conhecido banco. Vive do seu trabalho, portanto. O seu trabalho é estar atento. Foi o que melhor conseguiu depois da reforma. Tem opiniões e faz as palavras cruzadas. O Cliente é um conversador.

Gosta de tudo bem embrulhado da mesma forma que gosta de tudo bem explicado e, sobretudo, gosta de ser ele a explicar tudo. Tudo tem uma explicação. Esta tarde, quando passou pela loja, ao mesmo tempo que a Cliente de Saco Azul (não quero fazer insinuações, mas já não é a primeira vez), deu-lhe para se pronunciar sobre o estado da Justiça, com letra grande, apesar de tudo, como ele diz.

Quanto a ele (o Cliente foi muito veemente neste particular) a palavra crise é uma palavra forte. Não é que não goste de palavras fortes. Adora-as. Mas prefere usar outra palavra tão forte quanto a primeira mas menos meditática e por isso mais sólida. Quanto a ele há um estado, a justiça tem um estado, que é precisamente o estado da Justiça. E acrescentou: - Não sei se me fiz explicar?

Neste passo, o Cliente deparou-se com o meu mutismo, um mutismo profissional, calculado, temperado. Pois é, mas com certeza - e mais não disse. Só por um momento estive para o quebrar, leia-se o mutismo. Foi quando o Cliente Pequeno Investidor se afastou um passo da caixa e colocou a voz (talvez para ser ouvido pela Cliente do Saco Azul que, vi-a pela câmara de segurança, estava ao fundo da loja): - Sabe o que eu lhe digo? Nos Tribunais brinca-se ao Direito e esquece-se a Justiça. Satisfeito consigo próprio, fez uma pausa introspectiva e disse: - Esta agora saiu-me sem eu querer, nunca tinha pensado nisto. E repetiu grave: - Nos Tribunais brinca-se ao Direito e esquece-se a Justiça. E sorriu. Para a Cliente do Saco Azul, caso houvesse dúvidas. Estou a ouvir os passos da patroa na escada do armazém. Vem aí. Stop.

Mão amiga fez-me chegar mais uma remessa dos diários de Elf, a Empregada de Loja Fina que me tem acompanhado nesta estação de Outono-Inverno. O que eu não daria para saber que teria dito Elf ( "Só por um momento estive para o quebrar, leia-se o mutismo") se o Cliente não fosse tão lesto e tão sucinto e tão certeiro na sua análise do estado da Justiça. Ou terá sido o talento para juntar numa só frase ( "nos Tribunais brinca-se ao Direito e esquece-se a Justiça") a jurisprudência, a dogmática jurídica e a política criminal?