9.6.07

chop suey (1)

Madame Castafiori telefonou. Tem tido muito trabalho. E depois, diz-me, começa a estar muito calor, muito calor. Uma maçada, sabe. Não, não sei, pensei. Mas nunca me atreveria a dizer-lho. Como explicar que para mim o calor não é uma maçada. Nasci em Maio e em Julho já estava deitada debaixo de uma figueira, enquanto a minha mãe trabalhava. Qualquer pessoa poderá, ao menos, sorrir de complacência perante estes rumores da minha memória afectiva, mas não Madame Castafiori. Madame Castafiori não é qualquer pessoa. Para ela esta coisa da figueira, do calor, das formigas fará parte do que ela designa pela minha herança neo-realista. Oh tempore! Oh more! Bem se vê que a sua família é de Pontevedra. Isto sou eu a imaginar. A minha coragem resumiu-se a um "hum, hum, pois é, o calor". É para estas coisas que o telefone serve.
Tem andado desaparecida, palpitei então, praticamente não tem saído, não é. Sim, sim, muito trabalho, um trabalho imenso, mas ontem, veja lá a coincidência, saíu. Tinha ido com duas amigas a um restaurante, a um restaurante chinês. Madame Castafiori gosta dos sabores do mundo.
Que bom, ir a meio da semana a um restaurante chinês, atirei como quem rabisca num guardanapo de papel. E o jantar foi bom? Sim, mas um bocado tenso, respondeu. Sorri. Aquele 'mas' era crucial, a partir dali sabia que uma história me esperava e todos sabemos que uma história de Madame Castafiori não é uma historia, é uma aventura, um mar nunca dantes navegado. Tenso ? Mas tenso porquê? Zangou-se com as suas amigas? Atrevi-me a palpitar, em cinco minutos apenas era a segunda vez que me dava ao luxo de um palpite, e Castafiori fez como se faz em casa alheia às crianças malcriadas: não respondeu. Utilizei também a arma do silêncio e recordo aqui que, vai não vai, a utilizo com Castafiori. Tornei-me uma perita. E assim sucedeu, embora por pouco tempo.
Na mesa ao lado, imagine - ah, ei-la de volta ao reino das vozes longíquas -, na mesa mesmo atrás de nós estavam duas pessoas que falavam altíssimo. Detesto gente assim. Mas estavam zangadas, as pessoas? Não cheguei a perceber. Mas de que falavam, as pessoas? Duma vaca, foi a resposta seca de Madame Castafiori. A palavra 'vaca' ouvida da boca de Castafiori não sugere imediatamente esse animal ruminante mas qualquer coisa do submundo, inacessível por isso, ou qualquer coisa só imaginável num universo paralelo. Se quisesse usar o dito fácil diria que tínhamos chegado à vaca fria.
Mas eu estava demasiado intrigada - reconheço que Madame sabe despertar o meu lado felino. Esqueci o dito fácil e mergulhei no assunto. O assunto não podia ser mais prometedor. É o mínimo que se pode dizer do desaparecimento de uma vaca na baixa lisboeta. Na baixa lisboeta?! Articulei com a serenidade possível. Não delire, riu-se Castafiori.
Eu conheço aquele riso. Aquele riso arrastava consigo uma data de possibilidades: a vaca não tinha desaparecido na baixa; ela não estava num restaurante chinês na baixa; ela estava num restaurante chinês mas não na baixa; ela estava num restaurante na baixa mas não chinês, ou ela não estava sequer na baixa e, quem sabe, nem sequer estivesse com as duas amigas. Mas uma coisa aquele riso eu sabia que significava: mais uma vez eu tinha caído na armadilha e mais uma vez Castafiori tinha abusado desta minha tendência para levar as coisas à letra (é que eu sou Touro, de signo, não sei se estão a ver). Claro que a vaca não tinha desaparecido na baixa.
to be continued