23.1.04

quatro piscas

O cliozinho foi passear. Ao cimo da Morais Soares fez uma birra e parou. Os outros senhores começaram a apitar. Tentei arrancar e nada. Os apitos continuaram. Primeiro encolhi os ombros, depois liguei os quatro piscas. Os senhores passaram. O problema foi quando se aproximou o 42 e, atrás dele, mais uma catrefada de senhores munidos de buzina.

No meio desta confusão, o telemóvel tocou. Era o Carlos: "Então, ainda estás muito longe?". Pedi-lhe para esperar mais 2 minutos. Mas que ligasse ele, que eu estava sem crédito. Entretanto, o 42 parou atrás de mim. Quanto mais eu tentava convencer o cliozinho a sair dali, mais ele cheirava a gasolina. Foi então que surgiram os 3 rapazes. "Precisa de ajuda? A gente empurra". E lá foi a voiture até à beira do passeio. Nessa altura passou a minha vizinha do 4º andar com o lord pela trela. Eu começei a sentir as orelhas a arder mas respirei fundo e agradeci aos rapazes. A ordem pública estava restabelecida, porém, eu e o meu baccara tínhamos um destino e já estávamos demasiado atrasados.

O Carlos volta a telefonar. "Queres que vá aí com o meu carro?". Claro que queria, mas uma pessoa tem o seu brio. Quando o Carlos chegasse não nos encontraria ali deprimidos mas sim prontos a arrancar. Começo a olhar para os peões e escolho uma vítima com perfil de mecânico. "O senhor não se importa de experimentar pôr o meu carro a trabalhar?". Não se importava. Mas o cliozinho importou-se e continuou impávido e a cheirar a gasolina que até fazia impressão. O homem pediu-me para abrir o capôt: primeiro aperta um botãozinho na bateria, "Tá a ver, tinha isto desapertado, mas a bateria está boa". Pausa. " A senhora tem que mandar limpar o motor antes do Verão." Nem pestanejei e prometi. Mais descansado, o homem começa a fazer saltar umas molas duma caixa oval, tipo caixa de bolachas familiar em promoção no Mini-Preço. "O que é isso aí?", perguntei eu. Um filtro, já não me lembro bem de quê, se do ar, se da água, se da gasolina. Enfim, de café é que não era. Felizmente a coisa está apertada com três parafusos, felizmente ele não tinha ali nenhuma chave. Deu por concluido o inquérito preliminar e pronunciou-se: é preciso chamar um mecânico. Agradeci-lhe, o homem foi à sua vida e eu começei a ver o meu brio a andar para trás.

Chega o Carlos com a mulher. O Carlos manda-me fechar o capôt, entra dentro do carro, ignição, acelerador, e o certo é que o cliozinho se pôs em sentido e começou a trabalhar. "Tás a ouvir o ralanti, o gajo não se aguenta em ralanti". Mais um pontinho de ar, menos um pontinho de ar, devidamente geridos pelo Carlos, quais senhas de racionamento durante a 2ª Guerra Mundial, e lá fomos nós até à prisão da Trafaria. Enquanto atravessava a Ponte e o sol na cara me apaziguava o espírito, não me saía da cabeça a imagem do cliozinho quando cheguei ao pé dele hoje de manhã: estava cheio de cagadelas de pássaro. Eu vi logo que aquilo não era um bom presságio.

Por outro lado, à noite soube que a matrícula do cliozinho seria valiosíssima na China, porque dela consta o número 88. Pensando bem, talvez se deva a isso ter tido tanta sorte. Obrigada rapazes, obrigada homem do filtro, obrigada Carlos.