5.2.06

onde estás, peixinho dourado?


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terapia

Ando chateada com a merda da minha vida. Levaram-me a ver o mar.

30.11.05

glossário: POLAROID ou o perfume de um formato

Com um só clic tirar uma fotografia e ter o positivo– eis o conceito polaroid.

Edwin Herbert Land , fundador da Polaroid Corporation e que em 1929 registara a patente da polaroid, um tipo de folha em plástico sintético utilizado para polarizar a luz, anuncia em 1947 à Optical Society of America a invenção do processo completo de obtenção numa só etapa de uma fotografia em 60 segundos. O termo “polaroid” passa a ser sinónimo de fotografia instantânea, servindo para designar quer a película quer a câmara necessárias ao processo, e que podemos enunciar como película fotográfica concebida para ser usada numa câmara instantânea.

Basicamente, o processo explica-se assim: cada “fotografia”, cada unidade-fragmento de filme (e em regra um cartuxo tem entre 8-10 exposições) contém os químicos necessários para a revelação e, após a captura da imagem, a câmara imediata e automaticamente (em muitos modelos, movida por uma bateria eléctrica incorporada no cartuxo) inicia o processo de revelação ao mesmo tempo que impulsiona o filme para fora. Numa ordem determinada e com tempos de reacção diferentes, os químicos actuam na superfície do filme e a imagem positiva aparece momentos depois.

Decisivo para o desenvolvimento do potencial criativo e tecnológico que nas décadas seguintes este novo (sub) medium fotográfico veio a conhecer foi o encontro entre Land e Ansel Adams, que a partir de 1948 se torna o primeiro de um sem número de consultores artísticos e cuja tarefa consistia em testar as câmaras e as películas no decurso da sua actividade como fotógrafo, em todo o tipo de ambientes e condições de luz. Para Land a criação de uma bela fotografia podia testar os limites da película de uma forma completamente diferente da matriz teórica, do paradigma matemático concebido pelos engenheiros da empresa.

As Polaroid Collections (constituídas por 23 000 fotografias, de 2000 diferentes autores, resultado de colaboração contratual ou posterior aquisição) são testemunho do instrumento para a imaginação e das virtudes expressivas dum material que, surgindo por processos simples e tendo a instantaneidade como traço fundador, se manifesta imprevisível e imperfeitamente, nomeadamente a nível da cor e do foco. E ainda material versátil, quer pela existência de, v.g, vários modelos, tamanhos, sensibilidades, cromatismos, quer pelo sua natureza aberta, de que são prova as experimentações e manipulações de que resultaram técnicas e efeitos mais ou menos populares (v.g, solarização, transferência). Por outro lado, na era da reprodução técnica a polaroid apresenta-se como objecto único, não apenas pelo facto de em muitos dos seus filmes, e simplificando, o positivo e o negativo, a película e o papel, coexistirem inseparavelmente, como porque a seu comportamento caprichoso, nomeadamente a nível da cor, assim o determina inexoravelmente. Mas a polaroid é também um objecto sensorial: uma polaroid ouve-se, uma polaroid tem cheiro, uma polaroid revela-se literalmente diante dos nossos olhos. Depois, a polaroid tem a marca da “verdade”: a realidade vê-se no instante, o espaço e o tempo marginados a branco nas nossas mãos.
Ao longo dos seus quase 50 anos a polaroid não parou de seduziu fotógrafos e outros artistas: para além do próprio A.Adams, recordemos a título de exemplo, Robert Mapplethorpe, Robert Frank, David Hockney, Helmut Newton, Robert Rauschenberg, Andy Warhol, sobretudo no seu período dourado, as décadas de 60 e 70, marcado no âmbito da tecnologia polaroid pelo lançamento da máquina SX-70 e pelo filme Time Zero, e tendo como paisagem artística movimentos, entre outros, como a pop art ou o happening & perfomance. Se podemos afirmar que a qualidade dos produtos e a constante pesquisa da empresa, a política de programas de apoio, contratos e aquisições, as potencialidades expressivas e disponibilidade experimentalista do meio, a aura de objecto único e por domesticar, atraíram muitos artistas, podemos também afirmar que esse fluxo de adesão caucionou a marca e o conceito, e é também ele constitutivo da aura de que a polaroid ainda goza.

E todavia, o símbolo de modernidade que ostentou na sua idade de ouro fere-a agora de morte anunciada. A era digital tornou-se avassaladora também na fotografia e a polaroid, como fotografia instantânea, resistirá, para além das respostas de mercado como a câmara Image 1200, se encontrar artistas capazes de a fazer viver com produtos capazes de os fazer viver.

Até hoje foram vendidas 150 milhões de câmaras instantâneas polaroid. Nenhuma à minha gata Mia. Passo a contar. A Taschen editou recentemente um belo livro – The Polaroid Book – que vem embalado e hermeticamente fechado como um cartuxo de filme polaroid, numa cobertura de papel plastificado/metalizado. Comprei o livro e, deserta por chegar a casa, apanhei o metro a correr, subi a rua cheia de emigrantes brasileiros e carros mal estacionados, meti a chave na porta e eis-me perante o momento mais delicado do dia: abrir a tal embalagem metalizada, pela qual tinha dado 30 euros, quer dizer um pouco menos do que um modelo popular de câmara polaroid, quer dizer mais ou menos dois cartuchos de filme. Tomei uma decisão. Resolvi abri-la como uma polaroid: à mão, rasgando-a, preparada para mordê-la se preciso fosse. O ruído despertou uma inusitada agitação motora, acompanhada de vibrante mas monótona agitação sonora, por parte da minha gata Mia. Clic. O ruído da embalagem polaroid sugeria a abertura das embalagens de biscoitos, dos seus amados iams cat food rico em galinha. Então pensei: qual digital, qual carapuça, a polaroid nunca deixará de produzir momentos.

introdução à teoria do campo





Imaginemos que o TPC era assim.

23.11.05

última hora

Vejo o público última hora: a Isabel de Castro morreu. Não sei o que dizer.
Volto ao público última hora: a Isabel de Castro morreu.
Só me apetece chorar. É para isso que as lágrimas servem.

10.6.05

dia de Portugal

Hoje é o dia de Portugal e eu piquei-me numa micaia. Mas não faz mal. Apanhei o catimbeiro e fui comprar uma capulana. Parei no Continental e pedi uma 2zm. Recebi o troco em meticais e subi a Avenida. No Centre Franco Mozambicain liguei-me à net et voilá! Hoje é o dia de Portugal.

13.5.05

hoje

Hoje é sexta-feira, treze. Hoje é o dia dos meus anos. Hoje parto para Moçambique, hoje não olharei para trás.

moulinex

Nessa manhã fizera contas à vida.
Uma insónia despertara-a com a cor da madrugada. Pisou o soalho com cuidado e fumou um cigarro à janela, virada para as traseiras adormecidas, naquela parte oriental da cidade.
Por um momento hesitou, mas o cheiro do cigarro acabado de fumar fizera-a tomar uma decisão: não iria voltar para a cama.
Fez café na velha moulinex que a mãe lhe oferecera uma vez pelo Natal. Vivia então em Benfica, num rés-do-chão de paredes cor-de-mel. O aroma do café invadiu a casa. O dia tinha começado.

12.5.05

o leste, o oeste e o brasil

Avistei-os mal saí do metro. Para dizer a verdade, primeiro avistei a caixa. Depois sim, vi-os. Um dum lado e outro doutro transportavam a televisão numa caixa em papel canelado que tinha impressa a azul a marca japonesa e um desenho omnipresente.
Os dois homem caminhavam em passo largo, falavam, pareciam contentes. O da esquerda era mais baixo, tinha o cabelo claro. Ambos usavam calças de gangas e camisas de verão. Não tinham parado de falar desde que os vi. E tudo levava a crer que já vinham a falar antes.
Imaginei-os emigrantes. Sim emigrantes, mas emigrantes donde? De leste. De leste ou do Brasil: ao aproximar-me vi que o loiro do cabelo não eram uniforme, apresentava uma espécie de nuances feitas com escassos meios e menor técnica, pensei.
Como eu não transportava nenhuma televisão, naturalmente aproximei-me um pouco mais. Mas não conseguia perceber o que diziam. Eram 4 e meia e a rua é das mais movimentadas da cidade.
Imaginei-os em frente à televisão, a amarrotar, uma após outra, as latas de cerveja compradas no lidl. Em chinelos e calções amarelos se fossem brasileiros, ainda com os blusões vestidos se fossem de leste. Nisto pararam, pousaram na calçada a caixa da televisão de 22 polegadas e trocaram de posição: o que estava na esquerda foi para a direita e o que estava na direita não teve outro remédio senão ir para a esquerda. Este interlúdio foi suficiente para que eu os ultrapassar. Ouvi-os falar: leste.

11.5.05

metacognição

Para fazer um intervalo, peguei num livro sobre Física, que ali estava desde manhã, exposto nas novidades da biblioteca, mesmo à minha frente. Pensei que tivesse bonecos. Se tivesse bonecos já me distraía um bocadinho, não é? Foi só esticar o braço. Pois bem, em vez de bonecos, e entenda-se por bonecos os desenhos, as fotografias, os esquemas, as gravuras, as fórmulas, enfim, tudo o que estiver impresso sem precisar de ser lido, em vez de bonecos encontrei diálogos. Diálogos num livro de Física? Havia é claro o grande inconveniente de ter que os ler. Mas não se pode ter tudo. Foi um belo intervalo.

E. - Ouçam lá! A gente quando está a pensar nesse plano tem consciência de que está a pensar ?
....
E. - Ou é assim uma coisa que ocorre automaticamente sem a gente se aperceber ?
N. - Às vezes, quando uma situação é nova, um gajo tem de estar a pensar muito mais.
E. - Mas como é que tu tens consciência de que estás a pensar ?
N. - Como é que tenho consciência ?
...
E. - Por exemplo, tu estás a pensar no plano. Como é que sabes que estás a pensar no plano e não, por exemplo, na praia ?
N. - Pronto! Estou à procura duma resposta, estou a pensar fazer aquilo...
E. - Quando tu estás a resolver um problema, sozinho, achas que se está a travar uma espécie de diálogo ?
N. - Estou a falar comigo mesmo: "Agora tenho de fazer aqui assim. Depois tenho de pegar naquele..."
E. - E ouves-te ?
N. - Ouço (rindo)
E. - Mas como é que te ouves, se tu não falares ?
N. - Às vezes falo ! (ri-se)
E. - Vocês têm ideia de que há qualquer coisa lá dentro, na vossa cabeça ?
R. - Sim, a funcionar.
N. - Sim.
E. - E o quê, o que é que vocês chamariam a isso ?
N. - As sinapses.

a camisola

INFANTÁRIO DA ROSÁRIO, EXT-MANHÃ

Ao ver chegar o rapazinho pela mão daquela mulher sem graça, socorreu-se de umas palavras amenas, já testadas noutros embates matinais:

- Tão bem que fica essa camisola ao Ricardo!
- Ai Rosário, não é por ser meu filho, mas ao meu Ricardinho tanto ficam bem as cores claras como as cores escuras.

10.5.05

(quase) despedida


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correspondência (também)


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(ainda) Areeiro-Amadora-Areeiro


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no metro

Entraram no Saldanha e sentaram-se em frente a mim. Ele, um rapaz de cabelos compridos, escorridos, risco ao meio. Barba a dissimular umas borbulhas vermelhas. Ela usava saias acima do joelho e umas meias bordeaux floridas. Não falaram nem olharam um para o outro. Vestiam os dois de escuro. Ele trazia a tiracolo um saco verde do exército, ela um saco talvez indiano. Não me lembro dos brincos dela, mas lembro-me dum casaco preto de malha lisa. Quase ao chegar à estação de Entrecampos, ela encostou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos.

9.5.05

linha 2


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5.5.05

uma dentadinha paranormal

A perplexidade invadiu a vida da Madame Castafiore. Hoje está arrependida de ter passado por ali, pelo lado obscuro da cidade, quando teria bastado uma palavra, vá lá, três, para o taxista ter virado à direita. Se o tivesse feito, em vez de virar à esquerda, não teriam encontrado aquela camioneta e aquele camionista a descarregar duas sacas de batatas e umas cebolas velhas diante da mercearia. E se aquelas batatas e aquelas cebolas velhas não tivessem tido aquele destino, também não teriam ficado a marcar passo mais à frente, esperando que o homem do gaz acabasse alegremente de fazer marcha atrás como se a rua lhe tivesse sido deixada em herança por uma tia da província. E se o Ken tivesse tido como instrutor Mr. Brown e tivesse feito marcha atrás segundo os preceitos do Código, lentamente sim, senhor, mas no menor espaço possível, teriam passado pela paragem antes, muito antes do autocarro lá chegar e, desse modo, nunca Madame Castafiore a teria visto, ou melhor, os teria visto. Porém, viu-a, ou melhor, viu-os e desde então a imagem do que viu – uma mulher, ou melhor, uns brincos, ou melhor ainda, os brincos – nunca mais a largou, a ela, Castafiore.

Os brincos são constituídos, cada um, por duas argolas em ouro. Uma é uma argola simples, na outra existe um pendente, também em ouro, em cuja base, sempre em ouro, está incrustado um pequeno dente, um dente de leite.

Em resumo, temos um dente humano, que por definição pertenceu a um ser humano, a ser exibido, transportado, passeado, arejado por outro ser humano.

A partir do momento em que ela, Castafiore, tomou consciência da condição humana do dente, um turbilhão de pensamentos a assaltou, a ponto da existência se ter tornado um tanto fatigante. Mas todos eles, os pensamentos, derivavam ou coincidiam para uma questão particular: a quem teria pertencido aquele dente?

À própria, isto é, à dona dos brincos, que teria encontrado o dente de leite numa caixinha bege da ourivesaria lordelo, onde a mãe o guardou há quarenta e nove anos atrás ? A um filho, por exemplo, o filho do meio, o seu preferido, que veio mais tarde a partir um dente incisivo quando trincava com mais entusiasmo um teclado de entrecosto num orbitur, algures no litoral alentejano? Ao marido, sim, porque não, ao próprio marido que durante anos usou o dente ao pescoço juntamente com a chapa do grupo sanguíneo, num fio de prata que comprou na tropa e de que ela se recorda muito bem, pois se ele nem na lua de mel largou o fio, o dente e a chapa, e de que a muito custo só anos mais tarde abandonou, subornado por um cordão de ouro comprado a prestações no Martim Moniz ? A um afilhado nascido na serra como ela e que depois emigrou para a Alemanha mas que nunca se esquece de lhe telefonar pelo Natal? A um netinho, por exemplo, o neto mais velho que não desfazendo tem os olhos claros como o pai dela, e que lhe dá aquele ar fino ?

Seja a quem for, e todas as hipóteses são comoventes, o que transtorna Madame Castafiore é, como direi, não quero ser brutal nem prescindir por um instante da nobre capacidade de compreensão, mas há uma certa promiscuidade pressuposta naquele dente, dum lado e doutro da corrente, dum lado e doutro como os carapaus fritos, no ex e no actual proprietário, duma boca humana para uma orelha humana. Acho que Madame Castafiore tem razão. E depois há sempre a hipótese do sobrenatural ou a das energias ocultas ou a dos pequenos anjos e demónios nos visitarem de mansinho e devolverem a funcionalidade plena àquele dente e a todos os dentes de leite desactivados e ultrajados que percorrem em orelhas alheias as ruas portuguesas, ou os que jazem envoltos em algodão amarelecido, ou os simplesmente esquecidos em açucareiros chineses, cuja asa partida numa mudança de casa destinou a depósito de pequenas coisas inúteis, ou os perdidos em gavetas de escrivaninhas que só o acaso restitui à luz do dia, ou os que servem hoje para meter medo a crianças de chuchas chico dependuradas sobre babetes com restos de sopa de cenoura, etc., etc. Pelos cálculos de Madame Castafiore, só na área metropolitana de Lisboa deve haver milhares.

3.5.05

a mulher da pradaria

A minha vizinha do andar de baixo, em linguagem de arrendamento urbano, a minha vizinha de baixo, detesta as chamadas tarefas domésticas, ou a lida da casa, como lhe chama a mulher do rés-de-chão do prédio ao lado, dona dum gato pardo que observa o universo enquanto ela ajeita um gancho. Ao pressentir a minha passagem, dirá: ai menina que dores nas costas, estou a ver que não acabo a lida da casa, dixit. Não sei bem porquê, também eu prefiro a expressão, talvez por me fazer lembrar o Lidl, instituição tutelar da minha vida doméstica.

Pois ela, a minha vizinha de baixo, não gosta de cozinhar, pois ela não gosta de aspirar, pois ela não gosta de passar a roupa a ferro, pois ela não gosta de pôr a loiça suja na máquina nem sequer de rodar o botão para pôr a máquina a trabalhar. Não, não e não, três vezes não, não as vezes que for preciso, a minha vizinha de baixo detesta as tarefas domésticas.

Há todavia uma coisa que a minha vizinha recomenda às empregadas que não façam, que nunca obriga as filhas a fazer, há uma coisa que a minha vizinha de baixo não dispensa, uma coisa que adora fazer: estender a roupa.

E como é que uma coisa tão básica, não sei como dizer, porque é que uma coisa tão simples, e às vezes tão irritante estatisticamente, sobretudo para quem deixa cair mais de quarenta por cento das molas, como é que uma coisa tão Caneças look pode deixar a minha vizinha de baixo à beira de um êxtase um pouco menos que celestial?

Interroguei-a a esse propósito.

Ainda não caí em mim. Não que a explicação não tenha lógica, claro que tem. Mas fui apanhada de surpresa. E senti-me mesmo um nadinha estúpida. É assim que eu me sinto sempre que as explicações não me passam pela cabeça. Estúpida, estúpida, estúpida. Bastava ter parado por um segundo, claro que tem lógica, e mais, muito mais do que lógica: tem um potencial poético merecedor da atenção dum poeta, pelo menos, portuense, e embora padeça de algum desfasamento geopolítico e embora historicamente deslocada a explicação faz sentido, eleva o horizonte estratégico de um prédio que, sem isso, se diria vulgar, cria todo um ambiente que em muito ultrapassa a velha polémica do caixote do lixo (afinal, quem põe o caixote do lixo da rua e quem repõe o caixote do lixo no prédio, eis a questão), um pathos, uma âncora de sugestão que me pode deixar assim, pouco precisa e volátil, mas que confere à vida quotidiana do número 8 uma dimensão cósmica.

A minha vizinha de baixo adora estender a roupa porque se imagina nada mais nada menos do que na pradaria, repito, na pradaria.

Convém explicar que o nosso prédio se situa no topo de uma espécie de colina rectangular, cuja inclinação ligeira nos põe, repensando agora todas as coisas, a nós, número 8, acima dos outros mortais, e suficientemente longa para não vermos a mulher do prédio do extremo oposto a sacudir o pó, quer dizer, o número 8 tem horizontes.

Ao entardecer, o céu fica laranja, rosa, salmão, conforme as leis e os caprichos da natureza. Os aviões rasgam o mundo diante dos nossos olhos com uma frequência que nos poderia servir para aulas práticas, caso quiséssemos ali instalar uma escola de controladores aéreos.

Os elementos que o nosso prédio atrai enchem a nossa glamorosa vida de contemplação e aventura. O vento faz baloiçar as cordas das roupas e desde logo as próprias roupas. Costumo ser fustigada, enfim, não eu pessoalmente, mas os vidros da minha marquise, com os lençóis do andar de cima. Há um, sobretudo um, verdinho com umas risquinhas branquinhas que me põe doida, talvez sejam as bainhas com excesso de dobras, sei lá, as operárias têxteis já não são o que eram desde que ao pesadelo das falências fraudulentas se veio juntar o pesadelo chinês. O tal verdinho bate com tal impacto nos vidros que nos dias de maior ventania penso seriamente num seguro de vida ou mesmo numa extensão ao seguro de acidentes de trabalho, já que a lida da casa também é trabalho.

Bom, mas não quero entrar em polémicas jurídicas e volto à minha vizinha de baixo. Ao entardecer, não há cá soturnidades nem melancolias tais. Ao entardecer, há apenas roupa lavada, seca ou húmida, mas não roupa metafísica. Ao entardecer, no nosso prédio, há uma bela vista sobre a pradaria e, se acaso alguém, entrando pela cozinha adentro, perguntar à minha vizinha de baixo debruçada sobre o estendal:

- Então o teu cowboy está para chegar?

ela responderá com a coragem resignada de um certo tipo de mulher da pradaria:

- Hoje é dia de índios.

28.4.05

o IVO FERREIRA está preso no Dubai/cronologia dos acontecimentos

O Ivo Ferreira, realizador português de 29 anos, filho do actor e encenador Cândido Ferreira, está preso no Dubai por consumo de haxe. A situação dura quase há um mês, e apesar das diligências da família e de outras pessoas, nomeadamente e desde a primeira hora do Joaquim Leitão, o Ivo continua preso, preso e só, num país que começou para ele por ser um país de esperança e se está a revelar agora um país incompreensível, como incompreensível se está a revelar as autoridades do seu próprio país, tão lentas e hesitantes a agir, apesar de, por exemplo, ser tão gritante a desproporção entre os factos de que é acusado e a situação de detenção prolongada e, no domínio das provas, a ausência de garantias de contraditório. Dado estes e outros contornos de ordem civilizacional e política, que tornam ainda mais insuportavelmente precário o equilíbrio pessoal do Ivo, peço a todas as pessoas que possam directa ou indirectamente ajudar a ultrapassar esta situação que o façam.
cronologia dos acontecimentos:
5/Abril - detenção do Ivo no Dubai (onde Portugal não tem embaixada)
7/Abril - no Dubai,  os amigos tomam  conhecimento da detenção, i.e, o Ivo é mantido incomunicável 3 dias; os amigos telefonam para o Negócios Estrangeiros e pedem para que a família do Ivo seja avisada;
9/Abril -  a família contacta o Gabinete do Secretário de Estado das Comunidades;
10/Abril - o Embaixador português na Arábia Saudita (encarregue do assunto) diz que tomou conhecimento do caso;
16/Abril - o Embaixador desloca-se à prisão;
18/Abril - o Embaixador entrega o relatório da sua intervenção;
19/Abril - com o fim de se obter um pedido de clemência, uma exposição do caso dá entrada no gabinete do Primeiro-Ministro;
27/Abril - o Ivo é interrogado no Dubai pelo Procurador e, a pedido do Embaixador português, é visitado pelo Embaixador de Espanha;
28/Abril,hoje - continua-se sem notícias positivas e a família do Ivo resolve tornar público o seu caso.

22.4.05

a dois passos

hoje tenho de ver o mar

21.4.05

sondagem

Ontem de manhã, na pastelaria:

- Eu logo vi! Eu logo vi! Assim que ele chegou à janela, logo achei que era muito simpático!
- Os alemões costumam ser muito simpáticos...

Entra na pastelaria uma outra cliente e atira para o ar, antes mesmo de dizer qualquer coisa parecida com bom dia:

- O que é que vocês acham do nosso Papa?

17.4.05

em duas palavras

Tudo se passa numa paragem de autocarro, entre a Rosário, uma mãe e dois filhos. Um deles - Artur , de seu nome, com 6 anos de idade e um azul-esverdeado nos olhos - frequentou o infantário onde a Rosário trabalha, numa zona quente da cidade. Ao vê-los, e há que tempos os não via, pois, entretanto, a família mudara-se, a Rosário pergunta, confessou-me ela que com algum contentamento, se assim se pode chamar ao olhar sorridente com que as duas partes se encararam:

- Então, já não está em Campolide, mora outra vez aqui ?!

Enquanto a mulher procura um nadinha transtornada as palavras no meio dos sacos pousados sobre o banco escavacado da paragem, ao jovem Artur as palavras saem-lhe ligeiras e breves:

- Fomos corridos!

11.4.05

segunda-feira, dia de folga


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8.4.05

noite americana


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7.4.05

hoje há muito mar

Conversas de donas de casa. Esta manhã, na pastelaria:

- Hoje há muito mar.
- O mesmo que ontem...
- Ontem não o ouvia, e hoje ouço-o lá na minha casa.
- Foi o vento que mudou.
- Vento norte ou nordeste?

6.4.05

o farol visto da praia do norte


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com uma ligeira névoa, eram sete e tal da tarde, depois de ter sabido o que era o jantar: croquetes com arroz de cenoura. acho que prefiro os restos do almoço se ainda houver: entrecosto no forno. evidentemente há uma hipótese bem mais radical. e vou parar com isto dos croquetes e das névoas, porque o que eu tenho na cabeça é o suicídio da rapariga de 22 anos, hoje, aqui, bem perto da praia do norte.

4.4.05

orgulho e preconceito

Passei a tarde a tratar da minha viagem a África. Gosto de referir-me assim às 7 semanas que em Moçambique vou passar a trabalhar. Passaporte, visto e vacinas. Cheguei ao Instituto de Medicina Tropical quase em cima das 5. Estacionei com sorte e a ajuda de um dos três arrumadores presentes naquela dúzia de lugares. Retribuí com os meus mais sinceros agradecimentos e cinquenta cêntimos.

Corri até ao Instituto, preenchi uma ficha, paguei e deram-me uma das vacinas. Tudo estava a correr como o planeado. Só me faltava ir receber um trabalho que estava a pagamento também ali na Rua da Junqueira. Fui a pé.

Quando voltei ao local de estacionamento, tinha-se passado uma hora, mais minuto menos minuto. Procuro as chaves na mala e sou interrompida por um dos arrumadores que me chama. Não o meu arrumador, mas um rapaz de cabelo claro e um blusão verde garrafa. Vejo-o agitar algo e reconheço logo a seguir o porta-chaves vermelho com o símbolo da Renault, comprado numa loja de indianos aqui ao pé de casa. Mas não nos dispersemos.

Tinha sido o condutor do carro ao lado a dar pela chave na porta, e acrescentará o rapaz: pouco depois da senhora ter atravessado a rua. Como eu não aparecia, já estavam um bocadinho aflitos. Talvez tenha sido por isso que senti, não sei, alegria ? na forma como o rapaz de verde me chamou. Não que não tivessem tudo previsto, no caso de eu não aparecer. Se eu não aparecesse: a) entregavam a chave à guarda do segurança do hospital ali em frente; b) deixavam-me depois um recado no carro a explicar o sucedido. Muito e muito obrigada e depois bebam uma cervejinha por conta da casa. Obrigada, rapazes. E enquanto fazia a manobra para sair dali, sempre com a ajuda diligente do par, um deles, o que não estava de verde, ainda declarou orgulhoso: isto é para a senhora ver que os arrumadores não são o que dizem por aí!

Foi um fim de tarde feliz para todos. Acho eu. Eu livrei-me de boa, eles sentiram-se, não sei como dizer, pareceu-me que por momentos pairou por ali o lema da revolução francesa. Não sei quanto tempo vão vocês viver, aliás, tão pouco sei quanto tempo vou eu viver. Mas quando passar na Rua da Junqueira hei-de levantar a mão e dizer: olá, rapazes. E agora vou ouvir talvez Radio Head, Doves, sei lá, se for preciso Sonic Youth, para compensar os violinos no céu. Ou então regresso ao Vou-me embora, um livro divertido que encontrei perdido no sofá da sala ontem quando regressei a casa. Amanhã já cá não estou.

3.4.05

na beira da estrada


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2.4.05

junto ao farol


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1.4.05

citações em cadeia

Para onde ir agora, pergunto, depois de não possuirmos em nós a soma bastante de delírio? A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. Precisamos de escolher: mentir ou morrer. E eu nunca consegui matar-me.

Viagem ao Fim da Noite
Céline

citação encontrada em Onde está J?, de Julieta Monginho, que também cita Conrad, citado, por sua vez, em Os Papéis do Inglês, de Ruy Duarte de Carvalho :

Compreender num clarão de luz que não se alcança a felicidade através da moral. Esta revelação foi terrível. Viu que nada do que sabia importava minimamente. Os actos dos homens e das mulheres, o êxito, a humilhação, a dignidade, a derrota - nada disso importava. Não era uma questão de mais ou menos sofrimento, desta alegria, daquela dor. Era uma questão de verdade e de falsidade - era uma questão de vida e de morte.

Histórias Inquietantes
Conrad