Ouvi a primeira frase já a meio: '- tive um namorado alemão, tive um namorado vietnamita -' (a outra interrompeu-a):
'-Vietnamita?'.
'- Não falo chinês, que eu saiba não falo chinês, mas 'tou a ver que parece, senão já me tinhas explicado onde é que está a admiração da tua filha ter um namorado moçambicano.' '- Não é a mesma coisa, pois não?' Ela concordou: '- Felizmente para ti, não é. O que a minha mãe não deve ter passado. Apresentei-lhe alguns. A minha mãe sempre foi muito liberal-' (a outra volta a interrompê-la) '-Liberal a tua mãe?' (mas ela não faz caso) '- Ainda hoje com 84 anos fala de vez em quando 'naquele rapaz belga, tão jeitoso', como se os outros não fossem jeitosos, graças a Deus sempre tive bom gosto'. '-Belga?'. (voltou a não fazer caso) '- Sabes, de quem eu gostei mesmo foi do escocês.' '-Do Bloom?'. '- Sim, do Bloom, conheci-o em Torremolinos. Mas estávamos de férias. Não tínhamos tempo para mais nada.' Fez-se um silêncio intenso, breve.
(A outra desta vez interrompeu o silêncio) :'- Pensava que ias falar do brasileiro que conheceste em Nova Iorque-'. '-Olha, esse estava-me a passar. E tu não fujas com o rabo à seringa: qual é o problema do rapaz ser moçambicano? Um palop, giro, sem necessidade de tradução'. A outra respirou fundo. Finalmente conseguira que a outra respirasse fundo. Houve uma espécie de trégua.
A trégua envolveu outra vez o silêncio, mas desta vez acompanhado de olhares alheados, gestos repetidos, como mexer inutilmente no dedo anelar, uma tensão consentida.
Estranhou. Ela relembra num relance a última réplica e não vê motivo para tensão alguma. Teria sido a acentuação da palavra 'problema', a ligação sem pausa entre 'passar' e 'e tu não fujas'? Nada conclui e fica sem saber o que terá levado a outra a respirar profundamente. O curioso é que ela própria se sentiu afectada. Lembrou-se do dia em que se despediu de Bloom. Bloom tinha-se levantado para meter o troco no bolso, tinham acabado de tomar o pequeno almoço, e ela murmurou em português:'-Nunca mais te vou ver.' Ele disse quando se sentou: '- What you say?'. Ela respirou fundo e sorriu. Então ele disse: ' - What you say just can't be true' . Com tantas horas que o dia tem, e tantos minutos que as horas têm e tantos segundos também, tinha de ser exactamente naquele instante, no instante em que ela recordava os lábios de Bloom, o torso magro, os ridículos calções, o cheiro, os olhos azúis de Bloom que a outra resolveu falar. A interrupção é um vício. E afinal o que é que a outra tinha para dizer? Isto: '-Não queiras comparar, os tempos eram outros.'
Conteve-se e trincou a torrada e com a boca cheia disse: '-A verdade é que depois disto tudo casei-me com um gajo de Castro Marim'. '-Por favor, não chames gajo ao teu primeiro marido. Não vale a pena descer o nível da linguagem. Antes a nostalgia.'
Ela não deixava de ter razão. Mas prometi a mim mesma não voltar a pensar no Bloom.