12.10.11

Outubro, ao rubro: Kafka, beijos e fantasmas

"Há muito que não lhe escrevo, Frau Milena, e mesmo hoje estou a escrever só em consequência de um incidente. Não tenho de me desculpar pelo meu silêncio, pois bem sabe como detesto cartas. Todas as desgraças da minha vida - não o afirmo para me queixar, mas sim para daí retirar uma lição de interesse mais geral - resultam, digamos, de cartas ou da possibilidade de as escrever. Nunca fui, por assim dizer, enganado pelos homens, mas pelas cartas sempre; e, na realidade, não só pelas cartas de outras pessoas, mas pelas minhas. No que me diz respeito, há aqui um desgosto pessoal sobre o qual nada mais direi, mas há também uma desgraça geral. A grande facilidade de escrever cartas deve ter introduzido no mundo - do ponto de vista puramente teórico - uma terrível desintegração das almas. É, de facto, uma relação com fantasmas, não só com o fantasma do destinatário, mas também com o nosso próprio fantasma, o qual cresce entre as linhas da carta que se escreve e, sobretudo, numa sequência de cartas onde uma corrobora a outra e a refere como testemunha. Como poderá ter surgido a ideia de que as pessoas conseguem comunicar umas com as outras através de cartas? Pode-se pensar numa pessoa distante, pode-se ir ter com uma pessoa que esteja próxima - tudo o mais está para além da força humana. Escrever cartas significa despirmo-nos diante dos fantasmas, e eles aguardam avidamente esse gesto. Beijos escritos não chegam ao destino, os fantasmas bebem-nos pelo caminho. É graças a este alimento abundante que eles se multiplicam enormemente. A humanidade sente-o, e luta contra ele; e para tentar eliminar o mais possível o elemnto fantástico entre as pessoas e criar uma comunicação natural, restaurando a paz das almas, inventou o caminho-de-ferro, o automóvel, o aeroplano. Mas isso já não serve de nada, pois estas são, evidentemente, invenções feitas no momento da queda. O adversário é de tal maneira mais calmo e mais forte: depois do serviço postal, ele inventou o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios. Os fantasmas não morrerão à fome, mas nós, nós pereceremos."


(carta de Franz Kafka a Milena Jesenská; a carta continua); tradução de M. Frias Martins ("Canone Ocidental"- H. Bloom), que em nota diz ter-se socorrido da tradução inglesa de P.Boehm e da tradução francesa de A.Vialate