"Há muito que não lhe escrevo, Frau
Milena, e mesmo hoje estou a escrever só em consequência de um
incidente. Não tenho de me desculpar pelo meu silêncio, pois bem
sabe como detesto cartas. Todas as desgraças da minha vida - não o
afirmo para me queixar, mas sim para daí retirar uma lição de
interesse mais geral - resultam, digamos, de cartas ou da
possibilidade de as escrever. Nunca fui, por assim dizer, enganado
pelos homens, mas pelas cartas sempre; e, na realidade, não só
pelas cartas de outras pessoas, mas pelas minhas. No que me diz
respeito, há aqui um desgosto pessoal sobre o qual nada mais direi,
mas há também uma desgraça geral. A grande facilidade de escrever
cartas deve ter introduzido no mundo - do ponto de vista puramente
teórico - uma terrível desintegração das almas. É, de facto, uma
relação com fantasmas, não só com o fantasma do destinatário,
mas também com o nosso próprio fantasma, o qual cresce entre as
linhas da carta que se escreve e, sobretudo, numa sequência de
cartas onde uma corrobora a outra e a refere como testemunha. Como
poderá ter surgido a ideia de que as pessoas conseguem comunicar
umas com as outras através de cartas? Pode-se pensar numa pessoa
distante, pode-se ir ter com uma pessoa que esteja próxima - tudo o
mais está para além da força humana. Escrever cartas significa
despirmo-nos diante dos fantasmas, e eles aguardam avidamente esse
gesto. Beijos escritos não chegam ao destino, os fantasmas bebem-nos
pelo caminho. É graças a este alimento abundante que eles se
multiplicam enormemente. A humanidade sente-o, e luta contra ele; e
para tentar eliminar o mais possível o elemnto fantástico entre as
pessoas e criar uma comunicação natural, restaurando a paz das
almas, inventou o caminho-de-ferro, o automóvel, o aeroplano. Mas
isso já não serve de nada, pois estas são, evidentemente,
invenções feitas no momento da queda. O adversário é de tal
maneira mais calmo e mais forte: depois do serviço postal, ele
inventou o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios. Os
fantasmas não morrerão à fome, mas nós, nós pereceremos."
(carta de Franz Kafka a Milena Jesenská; a carta continua); tradução de M. Frias Martins ("Canone
Ocidental"- H. Bloom), que em nota diz ter-se socorrido da tradução
inglesa de P.Boehm e da tradução francesa de A.Vialate