1.1.09

a tia de Castafiori e a passagem do ano

Castafiori tem uma tia que viaja. Já viu a muralha da China, as pirâmides do Egipto, imaginou sacrifícios em templos incas, viu correr o Ganges em Calcutá, dancou a valsa em Bratislava, e gritou 'olé' numa tourada. Eu sei lá o que a tia de Castafiori não viajou! Castafiori não viaja como a tia. Mas falam muito ao telefone. Ontem telefonou-lhe.

A tia de Castafiori recordou a passagem de ano em frente à ópera de Sidney, recordou uma noite gelada e branca na Boémia, outra sob a chuva de Edimburgo, e duma tequilla enganadora na cidade do México. Eu sei lá onde a tia de Castafiori não passou o ano! Era isto que me contava ontem madame Castafiori quando, pouco passava da hora de almoço, quis saber das minhas melhoras. E confessou-me o seguinte: onde ela gostava de estar era no Funchal, num hotel de 5 estrelas, muito quentinha, ela insistiu, 'muito quentinha', a ver o fogo de artifício duma varanda sobre a baía, com os lábios molhados em Don Perignon.

Qual não foi, pois, a decepcão de Castafiori quando a tia lhe disse que bom, bom, era o fogo de artifício do Funchal, sim, mas visto do mar, coisa que ela, tia, evidentemente já tinha experimentado. Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo, acrescentou (a tia foi professora de Português ainda no tempo dos Lusíadas).

Castafiori condescendeu, depois de perceber que aquele 'muito quentinha' não era evidente - alguém lhe explicou que entre a Madeira e a Europa central há muitas coisas semelhantes, mas não o clima. Durou, porém, pouco a possibilidade. Os fantasmas habituais de Castafiori começaram a cercar-lhe a cabeça: viu-se no meio de uma multidão, a apanhar um barquinho pequenino, com pessoas a espirrarem para cima dela, outros a deixarem cair a cinza do charuto às doze badaladas, mulheres a desejar pelo telemóvel 'boas entrada e melhores saídas' às amigas em Ermesinde, flashs, muitos flashs, ah, os flashs, os sorrisos, os beijos, os abraços para os flashs. Não, nunca trocaria a sua varanda de luxo, donde lograria, 'muito quentinha', a visão do fogo a rasgar a noite atlântica, por um bote de passagem do ano no meio da baía. Eu concordei: "- Ainda se fosse no Queen Elizabeth...". Kung hey fat choi, Castafiori!