27.12.06

parede branca

Hoje na Biblioteca sentei-me numa mesa encostada a uma janela de guilhotina. Dali posso ver a frontaria da Igreja. Mais à direita, ergue-se o que parece ser um depósito de água. Já me explicaram o que é mas eu esqueço-me sempre. Qualquer coisa a ver com as antenas que o prolongam para o céu.

Em baixo os carros deslizam no alcatrão sem repararem no caminho manhoso que há logo no início da descida. Não sei exactamente onde levará esse caminho, possivelmente a um beco quase sem saída, onde eu imagino que moram muitos dos que pertencem a uma espécie de sobreviventes com quem eu mantenho uma espécie de conta-corrente: os que por vergonha não voltaram para as terras de origem. É ali que vejo um homem que transporta uma garrafa de gás aos ombros. À sua frente, um cão preto com coleira abre-lhe caminho aos saltos. Em nada se distingue dos cães que na sua terra de origem abrem caminho aos saltos.

Por baixo da janela de guilhotina há uma cabine telefónica onde tenho visto pessoas a telefonar, normalmente falam em língua estrangeira. Hoje não está lá ninguém, o que não deixa de ter a sua lógica: há gente por aí que gastou os impulsos todos na noite de Natal. A mim, ainda me sobra a parede em frente, a grande parede branca, com um grafiti quase reduzido a uma assinatura, a de alguém chamado Cajó. Essa parede branca ocupa todo o lado inferior esquerdo do enquadramento da janela. Fica assim justificada a sua importância.

Mas não era nada disto que eu queria contar. O que eu queria contar é que na estante ao lado da mesa encostada à guilhotina, está em evidência um livro: Souvenirs d'Alcobaça et Batalha, de William Beckford, numa tradução francesa, que eu já conhecia. E foi com o sorriso que acompanha o reconhecimento das coisas agradáveis que eu peguei no livro e o folheei como quem baralha um baralho de cartas. Dei por mim a ter saudades desse tempo, do tempo em que conheci William Beckford. Interroguei-me sobre que tempo era esse e a resposta apareceu-me com alguma surpresa sem dificuldade: era um tempo em que eu tinha esperança.

Em 1989 o livro custava 90 francos. Era o nº19 da Collection Romantique. Quanto a William Beckford, visitou os mosteiros de Batalha e Alcobaça em Junho de 1794, durante a sua segunda temporada no nosso país, entre Outubro de 1793 e Novembro de 1795. Boas Festas, Cajó.