5.6.08

o lapso

Castafiori estava esquisita. Eu adoro espinafres e não compreendia porque é que ela não comia espinafres. Teria compreendido que em cada garfada não pusesse empenho comparável ao meu mas daí até praticamente não lhes tocar entrava para mim na ordem do incompreensível. Cheguei a pensar: lá está ela mais os seus caprichos de morgadinha mas, quem come consente, e nada disse a respeito de. Apenas: "mas coma um bocadinho" e mais à frente: "para lhe falar com franqueza não percebo como é que se pode não gostar de espinafres". Não descansei enquanto não levei a coisa ao detalhe estatístico: "não há semana que passe que eu não coma espinafres". A minha insistência começava a chatear? Talvez. Mas não em vão. Castafiori disse-me que não lhe faria bem comer espinafres. Nada bem, mesmo. Claro que me escandalizei de imediato. Indignei-me, inclusivamente. Mas os espinafres fazem mal a alguém ou a alguma coisa?! Castafiori foi obrigada a calar-me com a autoridade de quem está na posse de segredos insondáveis: "eu sei muito bem o que estou a dizer, conheço muito bem o meu corpo". Receei que qualquer pedido de explicações pusesse a reserva da privacidade em causa. Nada disse. Mas o silêncio é de ouro. Castafiori acabou por acrescentar: "Eu ouço o meu corpo." Como? Quando lancei a palavra fi-lo por puro tique coloquial, mais a pensar na viagem do dia seguinte do que no tema acidental da nossa conversa. "Eu ouço o meu corpo e gosto de o ouvir."